terça-feira, 19 de agosto de 2014

De post e de circo


Todo mundo vive de pão e de circo.
Todos têm razão com seus belos motivos.
Pobre de mim, perdi dois amigos
 num dia épico de overdose. 
Era falta de pão e muita cirrose.
Menos eu, todos são príncipes - dizia o poeta.
Devoro Pessoa, com se fosse profeta.

Pensava perguntar, do alto do prédio, como faz o suicida:
Por que insistir em viver?
Suicidar-se significa enganar a morte, que dizem ter dia e hora marcada para nos visitar?
Hoje em dia, perguntas assim não emocionam ninguém.
Muita gente só quer ser curtida no facebook. Virar celebridade. Abrir as janelas da privacidade, escancarar-se para o mundo. Fazer sua dança, apresentar seu número. Mostrar a mais nova tatuagem, as fotos do casamento, as alianças do noivado, a aquisição do carro.
Inclusive o suicida, a maioria implora pra ser notada.
Saídas de emergência. Gritos desesperados: Olhem, estou aqui!
Apenas o eco, solidário, responde. Nossos gritos são garrafas jogadas em alto mar.
Quanto mais esperneamos para chamar a atenção, os outros dão a mínima para isso. Boiamos no mar confuso da solidão. Subimos e descemos ao sabor da maré do desamparo.
Privacidade jogada aos leões.
Cada um por si, maquiando as tatuagens ao redor do umbigo. Se preciso for, com muita dor. Mas dói muito mais se ninguém liga pra isso. Compartilhamos (virtualmente, claro) o bolo da mamãe. Os primeiros passos do filho. Os sentimentos e a inteligência de nosso cão. O início e o fim da festa. O aniversário. A viagem. A formatura.
Tem prazer maior do que as curtidas que visualizamos depois, em nossa página?
Tem sofrimento maior do que a indiferença para com nosso post, inteligente, original, criativo?
Somos e não somos o centro do mundo. Depende do tamanho de nossa ilusão. Somos e não somos o início e o fim de tudo. Depende da imaginação. O problema são os outros. Boa parte de mim resulta do que me fizeram. Nasci livre, mas me deixaram prisioneiro. Mas eu o permiti. Agora, ao reclamar, não passo de eco.
Teses e teses. Meras pretensões de verdade. E a verdade lá fora, disfarçada de qualquer coisa, ri da nossa cara, e se afasta quando estendemos a mão.
Aqui estou, com estes fragmentos, cheio de pretensão para que se torne um texto, lido por muitos. Também quero ser curtido, escutado, comentado. Igual todo mundo.
Rabisco estas linhas nos guardanapos do bar, enquanto aguardo o início do jogo. O jogo vai terminar empatado, vitória de um time ou de outro. O texto talvez não passe de vaga mensagem, presa numa garrafa, boiando solitária em alto mar.


sexta-feira, 15 de agosto de 2014

As impressões digitais - Eduardo Galeano


Eu nasci e cresci debaixo das estrelas do Cruzeiro do Sul.
Aonde quer que eu vá, elas me perseguem. Debaixo do Cruzeiro do Sul, cruz de fulgores, vou vivendo as estações de meu destino.
Não tenho nenhum deus. Se tivesse, pediria a ele que não me deixe chegar à morte: ainda não. Falta muito o que andar. Existem luas para as quais ainda não lati e sóis nos quais ainda não me incendiei. Ainda não mergulhei em todos os mares deste mundo, que dizem que são sete, nem em todos os rios do paraíso, que dizem que são quatro.
Em Montevidéu, existe um menino que explica:
- Eu não quero morrer nunca, porque quero brincar sempre.

(Do livro: O livro dos abraços. L&PM POCKET).

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Minha cadela se chama Tina



Tenho uma boxer que chama Tina e um vira-latas que chama Arthur. Três vezes por semana separamos nossas armas, coleiras e focinheiras, afinamos os cheiradores e vamos passear. 
Posso ser pedinte, virar o lixo e ser imundo, mas no meu íntimo sou o dono do mundo.
Meu tio abraçou as convenções para se acostumar com o som do seu nome. A acústica, o tom da voz, lembram sempre seu continente, tão vasto e tão algoz.
Quando entoavam sua pronúncia, as pedras uivavam e abafavam o seu silêncio de nuvem derradeira. Foi assim que fracassou na décima primeira missão de curar a dor das pedras.
Hoje meu tio ouve a música do seu nome com orgulho, pois tem uma cadela que chama Tina e um vira-latas que chama Arthur. Conhece todas as pets da cidade, e quando ouve os cães uivarem seus olhos de ET se enchem de luz.
Mas eu não consigo me acostumar completamente, com o fato de os bichos aceitarem o meu desejo de se tornarem gente. Se eu quero um dia voltar pro mato, por que eles precisam vir pra cidade, e me imitar?
Já não liguei, quando estava no bar com amigos, ceiando e brindando às pencas, e os vira-latas se aproximavam com seus olhares humildes, orelhas, pulgas e pelos, a implorar não só comida mas também carinho.
Repentinamente eu vi, com estes lindos olhos que a terra há de comer, que também sou vira-latas catando abraços, olhares e suspiros poéticos. E o que agora me preocupa é nem ligar pra isso.
Sei que estou pretensioso demais ao ver com certo medo os bichos se tornarem gente. Embora eu também seja guaipeca que fugiu das vitrines e correu até os lugares apinhados de gente, a implorar um novo lar.
Mas me soa estranho minha cidade ter quase o mesmo número de animais do que de gente. E minhas orelhas empinam quando vejo humanos passarem mais necessidade do que os bichos. Nessas horas lembro de um pedaço de uma música do Caetano: “Algo parece estar fora da ordem, da nova ordem mundial...”.
Temo pelos animais domésticos. Tenho pesadelos quando penso numa possível revolução dos bichos. E sofro também por mim, que me tornei doméstico.
Mas sei também que se eu forçar até o limite do meu olhar, até o limite da minha compreensão, se eu dobrar as vontades mais urgentes, então compreenderei feliz que não sou mais do que aranha, cobra, gato, cão e carrapato, pois todos nós temos nossos humores, manhas e artimanhas, para sobreviver pelo menos até amanhã de manhã.

O que me consola é que tenho uma boxer que chama Tina e um vira-latas que chama Arthur. Três vezes por semana agarramos coleira e focinheira e, faceiros como as árvores e os postes, deslizamos a passear.


TIRADAS do Teco, o poeta sonhador

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Existe educação ideal?


Penso na educação ideal. Penso muito sobre isso, afinal sou pai e professor.
Penso na idade ideal para se alcançar a aprendizagem ideal. Repito tanto a palavra “ideal” porque é esse o objetivo (e sonho) de nós adultos.
Alguém já perguntou às crianças sobre qual é o seu ideal?
Abrimos um pouco mais os olhos, tentamos outros ângulos de observação, e percebemos chocados que a gurizada pouco está ligando para esse ideal dos adultos. Então, esperneamos e chegamos à conclusão (meio resignada) de que o futuro deles vai ser uma catástrofe.
Outro dia um pai queixou-se do seu filho, de 12 anos de idade. As velhas e conhecidas dificuldades: notas baixas, repetência de ano, déficit de atenção, enfim, o menino manifesta grande indiferença para com a escola.
Com sofrimento desenhado pelos pés de galinha em torno dos olhos, o pai desfiou uma ladainha de preocupações a respeito do futuro do rebento. O menino não serve pra nada, é um inútil – e essa conclusão é reforçada ao comparar a “performance” de seu filho com o desempenho de alguns filhos de amigos e vizinhos.
Os pais sonham e projetam nos filhos, muitas vezes, aquilo que eles não alcançaram. E investem, inclusive boa grana, para que os filhos realizem o que eles não puderam realizar.
Parece-me cada vez mais comum: quanto mais a família, a escola e a sociedade apertam o cerco, impondo regras de utilidade, mais se fazem notar crianças e jovens “inúteis”.
Nessas horas vemos coisas interessantes. A criança pode ter déficit de atenção e aprendizagem, mas não de alegria e de poesia. E procura ganhar fôlego indo à biblioteca, e mergulhar nas histórias dos livros, para respirar um ar mais leve.
Porém nós adultos, obcecados pela ideia de utilidade, não percebemos esses sintomas – e um deles é o de rejeitarem esse alimento que não lhes apetece. E é por isso que a escola esperneia, tentando empurrar goela abaixo aqueles saberes que podem ser “úteis” a esse modelo de sociedade, mas que dão pouco prazer a quem deles se alimenta.

No fundo no fundo, estamos bastante desamparados. Pais, professores, crianças e jovens. E então nos agarramos com desespero à primeira corda de salvação que nos jogam. Carentes de luzes (próprias) que mostrem quais possíveis caminhos escolher, agarramos com unhas e dentes o que a sociedade utilitarista oferece. Com muita renúncia, estresse, e quase nenhum prazer.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Como é bom ser brasileiro


Brasileiro pede tanto a Deus, é uma colcha de retalhos que vira manto do tamanho do céu para pedir que não chova, ou faz do pranto água santa pra regar a terra seca.
Brasileiro tem tanta força no olhar que chega a espantar a luz do sol.
Agora eu sei por que Deus é brasileiro.
Brasileiro lê pouco mas em compensação pede muito. Compra compra livros de autoajuda que Deus ajuda, ajuda tanto tanto, e por isso é tão bom viver aqui.
É tanto sol é tanta chuva e frio e calor que ser brasileiro cai como luva como o relógio suíço e a pontualidade britânica.
No Brasil cabe tanta alegria e tanto amor porque todo mundo pede implora paz saúde prosperidade e chega a ser uma pena tantos pedirem e tão poucos serem os escolhidos no sorteio da loteria.
Como é bom ser brasileiro. Casado divorciado e solteiro, sou como todo mundo quero quero grito delibero autorizo reivindico fico torto de tanto pedir é tanto ensaio e teatro que meu corpo virou depósito das dores do mundo. É dor na coluna reumatismo ciático aflição ansiedade e consultório apinhado de gente pedindo espaço pra ficar doente. Como é bom viver aqui e poder pedir.
Deus, não me abandone no meu canto não me esqueça no teu céu ou em qualquer canto saiba que peço de maneira genuína eu imploro canto grito e às vezes até choro.
Eu sei que você tem tanto problema pra resolver. Palestinos e israelenses teimam em brigar. Russos e americanos vivem a se insultar. Aqui mesmo é tanto crime tanta droga tanto vício que imagino você louco pra largar de mão, bem feito pra ti deu liberdade a esse tal de ser humano e olha no que deu.
O primeiro verbo que aprendi foi “pedir”. Acredito piamente no que peço e se levo no tranco essa carreira solo é porque falta o teu sopro pra mim decolar.
Não invejo não odeio não rejeito as próximas basta que os mais próximos estejam embriagados de tanto pedir, insatisfeitos com o que já têm. Não bebo não fumo não mato por isso peço tanto e sei que estou bem na foto credenciado a sentar ao teu lado convicto de que aprendi no catecismo da vida que você é brasileiro e sempre vai olhar pra mim.

Valha-me Deus! Ajudai-me, e eu amanhã prometo que vou tentar lembrar de te agradecer.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Não me abandone papai



Papai, não me deixe só aqui neste balão de ensaio.
Não permita que os pesadelos apaguem a luz do meu quarto.
Não movimente as mesmas peças de ontem
quando você se esqueceu de mim para cuidar dos negócios.
Papai, você não podia abandonar teu menino.
Hoje ele é teu mas depois vai crescer e será do mundo.
Seja pai, cuide dos negócios e também do filho.
Teu filho dormia o sono dos anjos no banco do carro.
Mas no meio dessa noite de sonhos ele acordou.
Estava sozinho num mundo gigante a viver seu percurso estranho.
Papai, sinta a dor do menino jogado em meio a essa louca engrenagem.
Papai, você não devia esquecer do menino.
Negócios são apenas negócios.
Filhos são outros quinhentos.
Viver como pai como filho como amigo viver assim são outras engrenagens.
Negócios se esquecem.
Tragédias marcam pra sempre.
Não deixe elas voltarem seja as dez da manhã ou as cinco da tarde.
Viver é uma aventura constante. Mas não me deixe aqui sozinho.
Adultos querem currículo emprego e passar no vestibular.
Basta à criança poeta ensaiar na roda gigante do parque com adrenalina e frio na barriga a marcarem sua vida.
Papai, hoje teu filho teve olhar de terror.
Aprendeu de vez a dor da solidão.
Papai, nunca mais abandone o teu filho.
Acorde. Evite o pesadelo de o menino te abandonar amanhã.

sábado, 12 de julho de 2014

Ela disse que sou mala


Ela perguntou meu signo, de pronto eu disse gêmeos. Um elogio eu aguardei, afinal eu via nela brilhante inteligência, que sabia interpretar os recados do zodíaco.
Mas ela apenas disse: Chiii, isso é muito case!
Na hora eu não liguei, mas depois fiquei grilado por não saber a tradução da palavra no velho e bom português. Humilhado, decidi finalmente estudar inglês. 
Em casa, voei ao dicionário: case é “causa”, “questão”, e mais outros adjetivos... Até que veio a revelação: case também significa “mala!”.
Penei pra assimilar que ela (num cruzado em minha cara) disse que eu sou um delirante mala!
A star nunca ligou para os meus sonhos de ganhar na loteria, estudar algumas línguas e pelo mundo viajar.
Tão brabo eu fiquei, a ponto de inventar mil defeitos daquela megera cheia de dedos.
Como pode falar do poeta, uma garota que se exibe na passarela cheia de tatuagens e piercings, como se fosse imitação barata de Gisele Bündchen?
Nunca chamaria de mala se soubesse que tenho planos secretos de escrever grande obra que abrirá todas as portas e me fará pertencer à Academia de Letras.
Meu consolo é saber que posso superar sua crítica com muita força de vontade: ser um mala pra ela e um virtuoso pra comunidade!
Tarde eu descobri os motivos pra ser tão mala. É que ela volta e meia diz:
Não te faça de difícil. Não invente um roteiro, não critique meu script. Não me venha com milongas, não te ache songamonga. Não me roube a paciência, é impossível amar sem rir dessa cara de guri. Um romance apimentado, risos, lágrimas inocentes, amar de noite e de dia, amor cheio de repentes. Amar com rima ou sem rima, teu amor nem de longe se aproxima de roteiro pra obra-prima!
E no final ela elevou o som:
Se você quiser romance, é melhor escrever um!

(TIRADAS do Teco, o poeta sonhador)

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Quando alguém desapaixona


Quando alguém desapaixona
não fica mais vermelho
o coração não dispara
quando a criatura passa

quando a gente desapaixona
do amor sobra desgraça
a paixão vira fumaça

mas não ganhamos sossego
a loucura não silencia
na hora mais solitária
dá uma vontade danada
de devorar cada sonho
                   da padaria

quando a gente desapaixona
as ondas do mar se acalmam
prometemos voltar a estudar
prometemos arrumar o quarto

levar todo lixo pra rua
e dar um jeito na vida

basta desapaixonar
pra tudo virar rotina.

(TIRADAS do Teco, o poeta sonhador)

sábado, 21 de junho de 2014

Comedor de gilete (pau de arara) - Carlos Lyra (cantado por Ari Toledo).


http://letras.mus.br/carlos-lyra/576933/

(Cantado) Eu um dia cansado que tava da fome que eu tinha
Eu não tinha nada que fome que eu tinha
Que seca danada no meu Ceará
Eu peguei e juntei um restinho
De coisas que eu tinha
Duas calça velha e uma violinha
E num pau-de-arara toquei para cá
E de noite eu ficava na praia de Copacabana
Zanzando na praia de Copacabana
Cantando o xaxado pras moças olhar
Virgem Santa! Que a fome era tanta
Que nem voz eu tinha
Meu Deus quanta moça, que fome que eu tinha...
Zanzando na praia pra lá e pra cá

(Recitado) Foi aí então que eu arresolvi a comer gilete...Tinha um cumpadre meu lá de Quixeramubim que ganhou um dinheirão comendo gilete na praia de Copacabana. Eu não sei não, mas eu acho que ele comeu tanta, mas tanta, que quando eu cheguei lá aquela gente toda já estava até com indigestão de tanto ver o cabra comer gilete. Uma vez eu disse assim prum moço que vinha passando: Ô decente, vosmecê não deixa eu comer uma giletezinha pra vosmecê ver?
"Tu não te manca não, ô Pau-de-Arara?"
"Só uma, que eu ainda não comi nadinha hoje."
"Você enche, ein?"
Aquilo me deixou tão aperreado que se não fosse o amor que eu tinha na minha violinha, eu tinha rebentado ela na cabeça daquele...filho de uma égua!

(Cantado) Puxa vida, não tinha uma vida pior do que a minha
Que vida danada que fome que eu tinha
Mais fome que eu tinha no meu Ceará
Quando eu via toda aquela gente num come-que-come
Eu juro que tinha saudade da fome
Da fome que eu tinha no meu Ceará
E aí eu pegava e cantava e dançava o xaxado
E só conseguia porque no xaxado
A gente só pode mesmo se arrastar
Virgem Santa! A fome era tanta que mais parecia
Que mesmo xaxando meu corpo subia
Igual se tivesse querendo voar

(Recitado) Às vezes a fome era tanta que volta e meia a gente arrumava uma briguinha pra ver se pegava a bóia lá do xadrez. Êta quentinho bom no estômago! Com perdão da palavra, a gente devolvia tudo depois, que a bóia já vinha estragada. Mas enquanto ela ficava quietinha lá dentro, que felicidade! Não, mas agora as coisas tão melhorando. Tem uma dona lá no Lebron que gosta muito de ver é eu comer caco de "vrídrio". Com isso eu já juntei uns quinhentos merréis. Quando juntar um pouco mais, vou-me embora, volto pro meu Ceará!

(Cantando) Vou voltar para o meu Ceará
Porque lá tenho nome
Aqui não sou nada, sou só Zé-com-fome
Sou só Pau-de-Arara, nem sei mais cantar
Vou picar minha mula
Vou antes que tudo rebente
Porque tô achando que o tempo tá quente
Pior do que anda não pode ficar!

segunda-feira, 16 de junho de 2014

# Não vai ter copa




Não vai ter copa não vai ter capa não vai ter culpa não vai ter copo não vai ter coca. Tende piedade, Senhor. Não vai ter copa não vai ter treco não vai ter truque não vai ter trunfo não vai ter troco. Tende piedade, Senhor. Não vai ter copa não vai ter bola não vai ter beijo não vai ter pão não vai ter queijo. Tende piedade, Senhor. Não vai ter copa não vai ter dança não vai ter samba não vai ter bomba não vai ter dor. Tende piedade, Senhor. Não vai ter copa não vai ter fome não vai ter sede não vai ter sono não vai ter sonho. Tende piedade, Senhor. Não vai ter copa não vai ter galho não vai ter tronco não vai ter fruto não vai ter flor. Tende piedade, Senhor. Não vai ter copa não vai ter poste não vai ter ponte não vai ter puta não vai ter pão. Tende piedade, Senhor. Não vai ter copa não vai ter céu não vai ter sol não vai ter sim não vai ter sul...
Tende piedade, Senhor.


(Inspirado no poema "O desespero da piedade", de Vinicius de Morais, transcrito abaixo).



Meu senhor, tende piedade dos que andam de bonde
E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...
Mas tende piedade também dos que andam de automóvel
Quando enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.

Tende piedade das pequenas famílias suburbanas
E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos
Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam
E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina.

Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta
Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina
Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte
E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.

Tende imensa piedade dos músicos dos cafés e casas de chá
Que são virtuoses da própria tristeza e solidão
Mas tende piedade também dos que buscam silêncio
E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.

Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram
E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução
Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram
E tornam-se heróicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza.

Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos
Que em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão
E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão
Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe onde vão...

Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros
Que se efeminam por profissão mas que são humildes nas suas carícias Mas tende mais piedade ainda dos que cortam o cabelo:
Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!

Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria
Que lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos
Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo
Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.

Tende piedade dos homens úteis como os dentistas
Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer
Mas tende mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia
Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.

Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos
Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes
Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.

E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tende píedade das mulheres 
Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres
Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres
Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!

Tende piedade da moça feia que serve na vida
De casa, comida e roupa lavada da moça bonita
Mas tende mais piedade ainda da moça bonita
Que o homem molesta – que o homem não presta, não presta, meu Deus!

Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais
Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação
E sonham exaltadas nos quartos humildes
Os olhos perdidos e o seio na mão.

Tende piedade da mulher no primeiro coito
Onde se cria a primeira alegria da Criação
E onde se consuma a tragédia dos anjos
E onde a morte encontra a vida em desintegração.

Tende piedade da mulher no instante do parto
Onde ela é como a água explodindo em convulsão
Onde ela é como a terra vomitando cólera
Onde ela é como a lua parindo desilusão.

Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas
Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade
Mas tende piedade também das mulheres casadas
Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.

Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas
Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas
Mas que vendem barato muito instante de esquecimento
E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.

Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas
De corpo hermético e coração patético
Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçada
Que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas.

Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
Que ninguém mais precisa tanto de alegria e serenidade.

Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras
Que são crianças e são trágicas e são belas
Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam
E que têm a única emoção da vida nelas.

Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse
Ter piedade de si mesma e de sua louca mocidade
E outra, à simples emoção do amor piedoso
Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.

Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside nesse mundo.

Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humilhados – sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!

Link: http://www.vagalume.com.br/vinicius-de-moraes/o-desespero-da-piedade.html#ixzz34oMbr1pr

sábado, 14 de junho de 2014

Deus é Naja - Caio Fernando Abreu

Estás desempregado? Teu amor sumiu? Calma: sempre pode pintar uma jamanta na esquina.
Tenho um amigo, cujo nome, por muitas razões, não posso dizer, conhecido como o mais dark. Dark no visual, dark nas emoções, dark nas palavras: darkésimo. Não nos conhecemos a muito tempo, mas imagino que, quando ainda não havia darks, ele já era dark. Do alto de sua darkice futurista, devia olhar com soberano desprezo para aquela extensa legião de paz e amor, trocando flores, vestida de branco e cheia de esperança.

Pode parecer ilógico, mas o mais dark dos meus amigos é também uma das pessoas mais engraçadas que conheço. Rio sem parar do humor dele- humor dark, claro. Outro dia esperávamos um elevador, exaustos no fim da tarde, quando de repente ele revirou os olhos, encostou a cabeça na parede, suspirou bem fundo e soltou essa: -"Ai, meu Deus, minha única esperança é que uma jamanta passe por cima de mim..." Descemos o elevador rindo feito hienas.

Devíamos ter ido embora, mas foi num daqueles dias gelados, propícios aos conhaques e às abobrinhas. Tomamos um conhaque no bar. E imaginamos uma história assim: você anda só, cheio de tristeza, desamado, duro, sem fé nem futuro. Aí você liga para o Jamanta Express e pede: -"Por favor, preciso de uma jamanta às 30h15, na esquina da rua tal com tal. O cheque estará no bolso esquerdo da calça". Às 20h14, na tal esquina (uma ótima esquina é a Franca com Haddock Lobo, que tem aquela descidona) , você olha para esquina de cima. E lá está- maravilha!- parada uma enorme jamanta reluzente, soltando fogo pelas ventas que nem um dragão de história infantil. O motorista espia pela janela, olha para você e levanta o polegar. Você levanta o polegar: tudo bem. E começa a atravessar a rua. A jamanta arranca a mil, pneus guinchando no asfalto. Pronto: acabou. Um fio de sangue escorrendo pelo queixo, a vítima geme suas últimas palavras: -"Morro feliz. Era tudo que eu queria..."

Dia seguinte, meu amigo dark contou: - "Tive um sonho lindo. Imagina só, uma jamanta toda dourada..." Rimos até ficar com dor na barriga. E eu lembrei dum poema antigo de Drummond. Aquele Consolo na Praia, sabe qual? "Vamos não chores / A infância está perdida/ A mocidade está perdida/ Mas a vida não se perdeu" – ele começa, antes de enumerar as perdas irreparáveis: perdeste o amigo, perdeste o amor, não tens nada além da mágoa e solidão. E quando o desejo da jamanta ameaça invadir o poema – Drummond, o Carlos, pergunta: "Mas, e o humour?" Porque esse talvez seja o único remédio quando ameaça doer demais: invente uma boa abobrinha e ria, feito louco, feito idiota, ria até que o que parece trágico perca o sentido e fique tão ridículo que só sobra mesmo a vontade de dar uma boa gargalhada. Dark, qual o problema?

Deus é naja - descobrimos outro dia.

O mais dark dos meus amigos tem esse poder, esse condão. E isso que ele anda numa fase problemática. Problemas darks, evidentemente. Naja ou não, Deus (ou Diabo?) guarde sua capacidade de rir descontroladamente de tudo. Eu, às vezes, só às vezes, também consigo. Ultimamente, quase não. Porque também me acontece – como pode estar acontecendo a você que quem sabe me lê agora - de achar que tudo isso talvez não tenha a menor graça. Pode ser: Deus é naja, nunca esqueça, baby.

Segure seu humor. Seguro o meu, mesmo dark: vou dormir profundamente e sonhar com uma jamanta. A mil por hora.

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...