segunda-feira, 11 de junho de 2012

Construção - Martha Medeiros


Gosto demais do Fabricio Carpinejar, de quem tenho o privilégio de ser amiga. E é para prestigiá-lo que abro essa crônica com uma citação extraída da ótima entrevista que ele deu para a revista Joyce Pascowitch: “O início da paixão é estratosférico, as pessoas não param quietas exibindo tudo que podem fazer. Depois passam a confessar o que realmente querem. A paixão é mentir tudo o que você não é. O amor é começar a dizer a verdade”.

É mais ou menos isso. No começo, a sedução é despudorada, inclui, não diria mentiras, mas um esforço de conquista, uma demonstração quase acrobática de entusiasmo, necessidade de estar sempre junto, de falarem-se várias vezes por dia, de transar dia sim, outro também. A paixão nos aparta da realidade, é um período em que criamos um universo paralelo, é uma festa a dois em que, lógico, há sustos, brigas, desacordos, mas tudo na tentativa de se preparar para algo muito maior. O amor.

É aí que a cobra fuma. A paixão é para todos, o amor é para poucos. Paixão é estágio, amor é profissionalização. Paixão é para ser sentida; o amor, além de ser sentido, precisa ser pensado. Por isso tem menos prestígio que a paixão, pois parece burocrático, um sentimento adulto demais, e quem quer deixar de ser adolescente?

A paixão não dura, só o amor pode ser eterno. Claro que alguns casais conseguem atingir o Éden – amarem-se apaixonadamente a vida inteira, sem distinção das duas “eras” sentimentais. Mas, para a maioria, chega o momento em que o êxtase dá lugar a uma relação mais calma, menos tórrida, quando as fantasias são substituídas pela realidade: afinal, o que se construiu durante aquele frenesi do início? Uma estrutura sólida ou um castelo de areia?

Quando a paixão e o sexo perdem a intensidade é que aparecem os pilares que sustentam a história – caso existam. O que alicerça de fato um relacionamento são as afinidades (não podem ser raras), as visões de mundo (não podem ser radicalmente opostas), a cumplicidade (o entendimento tem que ser quase telepático), a parceria (dois solitários não formam um casal), a alegria do compartilhamento (um não pode ser o inferno do outro), a admiração mútua (críticas não podem ser mais frequentes que elogios), e principalmente, a amizade (sem boas conversas, não há futuro). Compatibilidade plena é delírio, não existe, mas o amor requer ao menos uns 65% de consistência, senão o castelo vem abaixo.

O grande desafio dos casais é quando começa a migração do namoro para algo mais perene, que não precisa ser oficializado ou ter a obrigação de durar para sempre, mas que não pode continuar sendo frágil. Claro que todos querem se apaixonar, não há momento da vida mais vibrante. Mas que as “mentirinhas” sedutoras do início tenham a sorte de evoluir até se transformarem em verdades inabaláveis.

Jornal Zero Hora - 10 junho 2012

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Às vezes tiramos o time de campo...

No decorrer de nossa vida, realizamos diversificadas performances – sérias e lúdicas... Algumas vezes adotamos opinião discordante, noutras vezes consentimos calados, e outras vezes não abrimos mão de uma postura verbal irônica. Podemos ser duros como uma pedra, ou decidir encarar a tudo com intensidade, inclusive prazeres e amores. Claro, há o risco de nossas convicções, meio explosivas, se chocarem contra o “bom” senso comum que nos comprime, simpático à “normalidade” da política da boa vizinhança e do politicamente correto.

Considero mais cômicas do que trágicas as pessoas que não perdem de vista a “verdade”. Mas por causa do exagero, os que as cercam vão concebê-la, na maioria das vezes, como “dura”, “doída”.
É que demoramos para perceber que o nosso jogo oscila entre os pólos do excesso e da falta.
Em algum momento todos nós, por várias razões, confundimos as coisas – as metas, os alvos – e agimos de maneira meio que inconsciente, como por exemplo na nossa relação com a comida e a bebida.
Nos confundimos também na ciranda das emoções, às vezes as super-dimensionamos, outras vezes as trancafiamos, para que não denunciem nossa fragilidade.

Com o perdão dos físicos, com o passar dos anos a vida nos debita o seu preço, que é o risco de sermos tragados por buracos negros. Não falo apenas dos lapsos de memória cotidianos, mas também das perdas mais dolorosas, como ter que conviver com a perda (definitiva) de mais um amigo. Para nosso consolo, nessas horas garimpamos histórias suas bem humoradas, e dizemos que eles sabem, lá “de cima”, quem de nós será o próximo – já que “acreditamos” que, do outro lado, as verdades são absolutas, tanto a respeito do que foi e do que será.

E a depressão, que buraco negro é esse que, de uma hora para outra, se acerca de qualquer um de nós? Quem está preparado para enfrentá-la, se ela se aproximar e tentar nos seduzir? Conhecemos pessoas que, aos olhos da sociedade, são estudiosas, carreira profissional bem-sucedida, dispostas, alegres e, de um momento para o outro, têm o barco de sua vida à deriva, como numa enchente medonha, ao atravessar de balsa o rio...
Águas agitadas, sem direção previsível, sem critérios valorativos. Eis a depressão, esse rio que transborda sem aviso prévio, e que nos leva de arrasto (sendo o seu preço roubar nosso rastro).
Esse rio que, desde nossa infância, tem uma paisagem tranquila, a de escorrer sereno, numa harmonia entre o leito e as margens – afora algumas enchentes... Afinal, quem não teve seus “traumas”?
Crescemos e precisamos atravessá-lo, deixá-lo para trás. Cordão umbilical cortado, do outro lado da margem quase não temos tempo para despedidas, precisamos sobreviver às novas etapas – urgentes, no caso da maioria de nós: trabalhar para poder estudar, e alcançar uma condição social melhor da de nossos pais.

O retorno ao lar, a infância, nem sempre é tranqüilo. O monstro pode se remexer no fundo do rio – e o ditado diz que as águas paradas são as mais surpreendentes...

Rio à parte, temos que tocar a vida do jeito que dá. O rio, indiferente, continua a passar e nos mostra, do alto de sua sabedoria, que está sempre a passar, sem nunca se repetir. Nós é que temos que jogar, ladeados pela vida e sua outra face, a morte.

Enredados, aprendemos a jogar, ou não, em meio ao jogo. Não há pré-jogo ou pré-temporada. Uns, de um jeito surpreendente, viram o jogo no final, outros desistem já no primeiro tempo. Às vezes perde-se nos acréscimos, enquanto outros jogos são bruscamente interrompidos.
Qual outra opção, além de jogar e jogar? Não existe fórmula pronta, apesar de tanta literatura de auto-ajuda.

Ah, temos sim outra opção, consciente ou não: tirar o time de campo. E podemos usar alguns argumentos para justificar isso: “Viver dói demais”, “não vale a pena pertencer a essa cultura que endeusa tais e tais valores...”, etc.
Mas tirar o time de campo não significa apenas o suicídio (aliás, como temos resistência em falar sobre esse fenômeno!).
Também tiramos o time de campo quando não estamos nem aí para as regras e preceitos que permitem melhorar nosso jogo – nosso e dos outros.
A pergunta que me faço, e que deixo para vocês, é a seguinte: nessa vida tão cheia de sutilezas e surpresas, quem de nós a cada novo dia não está optando por tirar o time de campo?

(Texto em homenagem ao amigo Pedro Dilkin, que faleceu no Domingo das Mães do ano de 2012).

domingo, 3 de junho de 2012

Pedro e o ponto de desequilíbrio - Carlos Silveira


O texto que segue é uma homenagem ao grande amigo Pedro Dilkin, que faleceu no domingo das Mães, 13 de maio de 2012, antes de ter completado cinco décadas de existência.




“Toda filosofia esconde também uma filosofia. Toda opinião é também um esconderijo. Toda palavra é também uma máscara.” Nietzsche

“O que é, é; o que não é, não é”. Esse princípio lógico de identidade não implica, necessariamente, a existência de um ponto de equilíbrio capaz de nos permitir a manutenção de nosso corpo – e alma? – em posição “normal”, sem oscilações ou desvios. A razoável harmonia em que possamos estar é altamente variável e depende de uma série de elementos, que se pensam e compensam mutuamente, para um precário autodomínio do todo.
Tal é o ser. Feito nós, como diria o poeta: “Feito anjo, meio ingênuo, meio bom, meio ruim, quase normal”.
Eis a hecceidade própria de cada indivíduo singular, concreto, determinado no tempo e no espaço.

Eis o Pedro, até o dia em que beijou o chão com o espírito desertor, saindo da vida para entrar na história. E fez-se literatura com A ilha da vida, ficção altamente autobiográfica, com suas convicções e certezas sobre a existência e a verdade. Tudo sob o amparo de Einstein, Kant, Nietzsche, Freud e Schopenhauer; o som de Os Futuristas, Cenair Maicá e Raul Seixas; e as lembranças sempre presentes de seus antigos amores, já há muito ausentes.

Com a vida por um fio, o equilibrista perdeu os movimentos, passou do ponto – e despencou. Quedou-se solitário em viagens imaginárias a um passado idealizado, abrindo mão dos princípios da realidade e do prazer: assim, nem se livrou dos pesares, nem se adaptou às exigências das necessidades.

Feito nós, e nós difíceis de desatar, ilhou-se mantendo uma tênue ligação peninsular com o social: pela contrição devotada a alguns “bares da vida” (como diria o Milton, “todo artista deve ir aonde o povo está"); pelas idas (ultimamente, esparsas) aos jogos do E. C. São Luiz e à Affi (Associação dos Funcionários da Fidene); pela montagem domiciliar de um sebo (livros e vinis) e de uma “radioteca” com aparelhos antigos, todos em intocável sintonia com a Rádio Guaíba pré-Universal); pelo amor incondicional ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e a um Partido dos Trabalhadores ainda impoluto, aos quais defendia, literalmente, com unhas e dentes; pelo acolhimento, sempre irrestrito e carinhoso, a cada cão abandonado que batia à sua porta, ajudando-o a afugentar a solidão e acordar a vizinhança (não sem algum incômodo e um tanto de contrariedade).

Eis o Pedro, Dilkin, que, após quase trinta anos de Ijuí, no Domingo das Mães, dia 12 de maio/2012, tomou a Barca do Adeus e foi despertar a dona Frida em São João do Oeste/SC. Ancorado na Linha Medianeira, onde nasceu, agora, por ora, não mais o Uruguai nos une, mas um Oceano nos separa, pra que todos saibam que morrer é compulsório e viver é opcional.
Segue o Pedro talvez inconsolável a perguntar “Pra que lado este mundo vai?”, na esperança de que um dia a ciência e nossa impotência (individual e institucional) possam dar um fim ao “mal do século” (a depressão), causador, ao menos em grande parte, do naufrágio de seu inafundável Titanic. E nós, cegos, em nossos esconderijos de ou sem palavras, seguimos em nossa posição de descanso, e não de sentido, ante as ilusórias reflexões/refrações de nossos espelhos, teimando em sermos caricaturas (permanências) e não metamorfoses. E nosso ponto de desequilíbrio a advertir-nos do perigo de andar na contramão, por incompreendermos que a tragédia humana não é a morte, mas a indiferença com a vida – pão que se deveria repartir de forma imediata e milagrosa.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Critério - Luis Fernando Verissimo


Náufragos de um transatlântico, dentro de um barco salva-vidas perdido em alto-mar, tinham comido as últimas bolachas e contemplavam a antropofagia como único meio de sobrevivência.



-Mulheres primeiro - propôs um cavalheiro.


A proposta foi rebatida com veemência pelas mulheres. Mas estava posta a questão: que critério usar para decidir quem seria sacrificado primeiro para que os outros não morressem de fome?


-Primeiro os mais velhos - sugeriu um jovem.


Os mais velhos imediatamente se reuniram num protesto. Falta de respeito!


-É mesmo - disse um - somos difícies de mastigar.


-Por que não os mais jovens, sempre tão dispostos aos gestos nobres?


-Somos, teoricamente, os que têm mais tempo para viver - disse um jovem.


-E vocês precisarão da nossa força nos remos e dos nossos olhos para avistar a terra - disse outro.


-Então os mais gordos e apetitosos.


-Injustiça! - gritou um gordo. - Temos mais calorias acumuladas e, portanto, mais probabilidade de sobreviver de forma natural do que os outros.


-Os mais magros?


-Nem pensem nisso - disse um magro, em nome dos demais.


-Somos pouco nutritivos.


-Os mais contemplativos e líricos?


-E quem entreterá vocês com histórias e versos enquanto o salvamento não chega? - perguntou um poeta.


-Os mais metafísicos?


-Não esqueçam que só nós temos um canal aberto para lá - disse um metafísico, apontando para o alto - e que pode se tornar vital, se nada mais der certo.


Era um dilema.






É preciso dizer que esta discussão se dava num canto do barco salva-vidas, ocupado pelo pequeno grupo de passageiros de primeira classe do transatlântico, sob os olhares dos passageiros de segunda e terceira classes, que ocupavam todo o resto da embarcação e não diziam nada. Até que um deles perdeu a paciência e, já que a fome era grande, inquiriu:


-Cumé?


Recebeu olhares de censura da primeira classe. Mas como estavam todos, literalmente, no mesmo barco, também recebeu uma explicação.


-Estamos indecisos sobre que critério utilizar.


-Pois eu tenho um critério - disse o passageiro de segunda.


-Qual é?


-Primeiro os indecisos.


Esta proposta causou um rebuliço na primeira classe acuada. Um dos seus teóricos levantou-se e pediu:


-Não vamos ideologizar a questão, pessoal!


Em seguida levantou-se um ajudante de maquinista e pediu calma. Queria falar.


-Náufragas e náufragos - começou - Neste barco só existe uma divisão real, e é a única que conta quando a situação chega a este ponto. Não é entre velhos e jovens, gordos e magros, poetas e atletas, crentes e ateus... É entre minoria e maioria.


E, apontando para a primeira classe, gritou:


-Vamos comer a minoria!


Novo rebuliço. Protestos. Revanchismo, não! Mas a maioria avançou sobre a minoria. A primeira não era primeira em tudo? Pois seria a primeira no sacrifício.


Não podiam comer toda a primeira classe,  indiscriminadamente, no entanto. Ainda precisava haver critérios. Foi quando se lembraram de chamar o Natalino. O chefe da cozinha do transatlântico.


E o Natalino pôs-se a examinar as provisões, apertando uma perna aqui, uma costela ali, com a empáfia de quem sabia que era o único indispensável a bordo.


O fim desta pequena história admonitória é que, com toda agitação, o barco salva-vidas virou e todos, sem distinção de classes, foram devorados pelos tubarões. Que, como se sabe, não têm nenhum critério.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Artes marciais - L. F. Verissimo


As artes marciais do Oriente – karatê, kung-fu, etcétera – estão em grande evidencia em toda a parte, mas poucos conhecem o mais antigo sistema de defesa pessoal do mundo, o milenar Borra-dô. Introduzido no Brasil há pouco, o Borra-dô já tem uma academia montada em Porto Alegre, e foi lá que conversamos com seu diretor, o nipo-paulista Imajina Antonino Imajina – sobre o insólito método. Imajina começou com um breve relato do Borra-dô, que é a arte de evitar a briga. Seu inventor foi o monge budista Tsetsuo Tofora, conhecido como O Pulha de Osaka, que viveu até os 180 anos e desenvolveu os principais golpes e preceitos desta mistura de religião, filosofia e instrução marcial.


– O Borra-dô se divide em quatro fases, cada uma identificada com um animal – explicou-nos Imajina . - A primeira fase é a da mulher (que O Pulha classificava, como animal, entre a lesma e o tubarão), e consiste em falar sem parar diante do adversário que nos ataca.


– O que deve ser dito?


– O Pulha, nos seus Ensinamentos, nos dá alguns exemplos. “Minha mulher está gravida, minha casa queimou, eu sustento dezessete tios e o médico recomendou que não era para eu apanhar antes de se passarem 10 dias da operação no crânio!” Ou então: “E se a gente se sentasse num lugar para discutir isso civilizadamente, digamos sem ser nesta segunda-feira, a outra?” Ou, ainda: “Meu primo é general!”


– Qual é a segunda fase?


– É a da Cobra. Se o adversário se convence com nossas palavras, devemos dizer alguma coisa como “Olha atrás!” e no momento em que ele se vira dar-lhe um soco na nuca e ao mesmo tempo gritar a frase ritual “Ha, caiu!”


– E a terceira?


– A da Galinha. Quando o adversário se vira, furioso com o Golpe da Cobra, devemos berrar e pular como uma galinha assustada, de modo a confundi-lo e comprometer a seriedade da situação. Esta é a fase que requer maior concentração, e portanto é a mais difícil. Aliás, só damos o título de Mestre Borra-dô a quem conseguir imitar uma galinha histérica com perfeição. O próprio Pulha, segundo a lenda, passou 40 anos em
meditação dentro de um galinheiro budista, alimentando-se de milho e ovo cru, até conseguir dominar a fase da Galinha. Claro que, com os métodos audiovisuais modernos, nós conseguimos isto com o aluno em muito menos tempo.


– Qual é a quarta fase?


– Vou demonstrar.


E Imajina saiu correndo. Voltou pouco tempo depois para explicar:


– É a fase do Rato, a fase final, a culminância de toda a arte do Borra-dô. A Fuga. O Pulha só morreu, aos 180 anos, porque seu último encontro, depois de completar com perfeição todas as fases do Borra-dô, falhou nessa fase fundamental do Rato,
tropeçando na própria barba e caindo de cara no chão, onde foi desmembrado pelos adversários furiosos. Nós aconselhamos nossos alunos a nunca deixarem crescer a barba.


Imajina completou suas explicações:


– Claro que existem variações nas diversas fases. Na da Cobra, por exemplo, quando o adversário for adepto do karatê podemos esperar até que ele se prepare para quebrar uma pilha de telhas com a mão, para nos intimidar, e quebrar uma telha na cabeça dele bem na hora do golpe. Ou então...

domingo, 20 de maio de 2012

Sementinhas - Luis Fernando Verissimo


- Professora, sabe sexo explícito?
- Pronto - pensou a professora. Chegou a hora. A turma ainda não estava na idade para educação sexual, mas quem sabe qual é a idade, hoje em dia?
- Professora, sabe sexo explícito?
- Eu já ouvi, Maurício. É sobre isso que nós vamos conversar hoje.
- Mas, professora...
- Senta, Maurício.
O menino estava impaciente. Ela entendia. Todos deviam estar impacientes. O sexo estava por toda parte. Era natural a curiosidade deles. Mesmo naquela idade.


- Todos sabem o que é uma planta, não sabem? Agora eu quero o nome de uma planta. Judite?
- Flor - disse a Judite.
- Muito bem. E que tipo de flor?
- Rosa! - apressou-se a dizer a Rosa.
- Muito bem. Eu vou desenhar uma rosa. E a professora desenhou uma semente.
- Isto parece uma rosa?
- Não senhora.
- Claro que não. Isto é uma semente. É o começo da rosa. Toda plantinha começa com uma semente. Alguém bota uma semente na terra e a plantinha vai crescendo, vai crescendo...
- Professora...
- O que é, Maurício?
- Sabe sexo explícito?
- Espera um pouquinho, Maurício. Nós já chegamos lá.
- Mas, professora...
- Senta, Maurício.
- Mas...
- Senta!
- Tá bem.
E o menino sentou, com cara de mártir.
- Primeiro tem a semente. Depois a plantinha vai nascendo da semente. Vocês também começaram de uma sementinha, como esta. Dentro da barriga da mamãe. E quem foi que botou a sementinha na barriga da mamãe? Alguém sabe?
- Foi o meu pai - disse o Maurício. - Mas, professora...
- Foi o papai, certo. Vejo que essa parte vocês já sabem. E como é que o papai põe a sementinha na barriga da mamãe? Quem sabe?
Silêncio.
- Professora...
- O que, Maurício...
- Nós sabemos tudo isso.
- Tudo?
- Tudo - confirmou a Rosa.
- Sabe sexo explícito? - insistiu o Maurício.
- Sei - disse a professora, desconfiada. - Que que tem sexo explícito?
- Passarinho faz sexo expíucito.
- Como é?
- Expíucito. Passarinho faz sexo expíucito.
Por um longo tempo, enquanto as crianças riam, a professora ficou paralisada. Depois apagou a semente do quadro-negro e disse para todo mundo pegar lápis colorido e desenhar uma paisagem bem bonita.










quarta-feira, 16 de maio de 2012

Ferreira Gullar




O cão vê a flor
a flor é vermelha.

Anda para a flor
a flor é vermelha.

Passa pela flor
a flor é vermelha.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Circuito fechado - Ricardo Ramos




Chinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova, creme dental, água, espuma, creme de barbear, pincel, espuma, gilete, água, cortina,sabonete, água fria, água quente, toalha. Creme para cabelo, pente. Cueca, camisa, abotoaduras, calça, meias, sapatos, gravata, paletó. Carteira, níqueis, documentos, caneta, chaves, lenço, relógio, maço de cigarros, caixa de fósforos. Jornal. Mesa, cadeiras, xícara e pires, prato, bule, talheres, guardanapo. Quadros. Pasta, carro. Cigarro, fósforo. Mesa e poltrona, cadeira, cinzeiro, papéis, telefone, agenda, copo com lápis, canetas, bloco de notas, espátula, pastas, caixas de entrada, de saída, vaso com plantas, quadros, papéis, cigarro, fósforo. Bandeja, xícara pequena. Cigarro e fósforo. Papéis, telefone, relatórios, cartas, notas, vales, cheques, memorandos, bilhetes, telefone, papéis. Relógio. Mesa, cavalete, cinzeiros, cadeiras, esboços de anúncios, fotos, cigarro, fósforo, bloco de papel, caneta, projetor de filmes, xícara, cartaz, lápis, cigarro, fósforo, quadro-negro, giz, papel. Mictório, pia, água. Táxi. Mesa, toalha, cadeiras, copos, pratos, talheres, garrafa, guardanapo, xícara. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Escova de dentes, pasta, água. Mesa e poltrona, papéis, telefone, revista, copo de papel, cigarro, fósforo, telefone interno, externo, papéis, prova de anúncio, caneta e papel, relógio, papel, pasta, cigarro, fósforo, papel e caneta, telefone, caneta e papel, telefone, papéis, folheto, xícara, jornal, cigarro, fósforo, papel e caneta. Carro. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Paletó, gravata. Poltrona, copo, revista. Quadros. Mesa, cadeiras, pratos, talheres, copos, guardanapos. Xícaras. Cigarro e fósforo. Poltrona, livro. Cigarro e fósforo. Televisor, poltrona. Cigarro e fósforo. Abotoaduras, camisa, sapatos, meias, calça, cueca, pijama, chinelos. Vaso, descarga, pia, água, escova, creme dental, espuma, água. Chinelos. Coberta, cama, travesseiro.


sábado, 28 de abril de 2012

Puxando conversa - Mario Prata

Já notou como brasileiro gosta de puxar conversa? Em qualquer lugar, a qualquer hora. Tá lá uma pessoa quieta no seu lugar, logo vem o brasileiro tentando puxar conversa. O brasileiro não consegue ficar só na dele. Quer ficar na do outro ou outra, também.
E isso é coisa de brasileiro mesmo. Americanos, latinos e europeus não estão nem aí. E ainda ficam invocados quando a gente se mete a besta com eles. Me lembro quando estava morando em Portugal, minha irmã Ruth, comigo no bingo, tentou puxar conversa com uma portuguesa que estava na mesa. Nada mais natural, brasileiro. Depois de duas perguntas sem resposta, a portuguesa pegou a sua bolsa e, indignada, se mandou. E tinha razão. Quem era aquela gaja que queria saber se ela era de Lisboa mesmo, se ela ia sempre ao bingo, se ela já tinha ganhado alguma coisa?
Tinha razão a lusitana.
Mas a gente gosta de puxar um papo. E o mais doido é que o outro ou a outra (em sendo brasileiros) sempre entram nesse nosso assédio amigável. E o brasileiro já desenvolveu assuntos para todas as situações.
No táxi, por exemplo, é moleza: "Frio, hein?"
Basta isso para que o taxista fale duas horas. Sem parar. Ou: "Trânsito, hein?"
No spa, basta a sucinta pergunta: "Quantos quilos, já?", para que a gorda e risonha amizade seja logo consolidada.
Na fila do banco, não precisa nem falar. Basta fazer um ar de tédio, de saco cheio, balançar um pouco a cabeça que a conversa já foi puxada.
Se não der certo, pode tentar um "já notou que a fila da gente nunca anda?"
No campo de futebol, balance a cabeça e diga: "Esse cara é burro!" E pronto. Concordando ou discordando, o torcedor ao lado já é seu íntimo.
No bar, para a garota do lado: "Já notou que todo garçom é surdo?"
Na sala de espera da maternidade: "É o primeiro?"
No cartório, com aquele papelzinho numerado na mão: "Eu não acredito!"
Na Internet: "Tem alguém aí?"
No ponto de ônibus: "Demorar não é nada; o pior é que vem cheio."
Olhalá!
Você também pode começar uma conversa civilizada mostrando uma fita cassete e dizendo: "Se você abaixar o nível, eu mostro!"
Tem gente que ainda usa o "eu não te conheço de algum lugar?" E tem gente que cai nessa.
(...)
No elevador, o tempo é curto e o começo de papo não deve ir além do calor que está lá fora. Nunca pergunte, por exemplo, sobre política ou religião. Aliás, não existe nada pior do que a religião para puxar conversa. Geralmente, ouve-se, do outro lado, um muxoxo que é, segundo o Aurélio, aquele estalo com a língua e o céu da boca, por vezes acompanhado da interjeição ah, para indicar desprezo ou desdém. É, nada pior do que um muxoxo quando a gente quer puxar conversa.
No avião: "Mora lá ou aqui?"
(...)
Me lembra o jovem do romance Encontro Marcado, do Fernando Sabino, parando uma moçoila na rua:
- Sozinha?
- Não. Com Deus.
E ainda aquele bêbado que entrou num velório e perguntou para um desconhecido:
- Morreu do quê?
- Suicídio.
- Tiro?
- Veneno.
- É bom, também!

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Fragilidade


É tanta a fragilidade



que temo maltratar


a folha em branco.






Tanta luz da verdade


que me confundo


com o amanhecer.






Tanta liberdade pra falar


mas a alma explode


com o pôr-do-sol.






Às vezes sou monstro


                    aventureiro


basta ouvir a voz do povo


e ser jogado aos leões.






Tantas cenas trágicas


                     ensaiadas


tanto medo fome dor


eu aqui no centro


            da fogueira


rondo o precipício


como quem vai


                        brincar


no parque de diversões.






Quilômetros separam nossos mundos


                    de geografia e fantasia


mas sobrevivemos por um fio


com torpedos e ligações.






Ouço todas as canções


que tocam nesses bares


                                noturnos.


Durante séculos fui fiel a elas


                e a tudo mais


mas ninguém liga


para a dor


de estar sozinho


e assim eu sigo


sem coragem


de voltar atrás.





domingo, 22 de abril de 2012

Reparto com você o que não é meu - Ferreira Gullar


Lembra-te que o tempo é um jogador que ganha todos os lances sem roubar (Baudelaire.


Não é por falta de assunto. É que nada que escrevesse daria ao leitor tanto prazer quanto o que se segue:




- Comigo a anatomia ficou louca: sou todo coração (Maiakóvski).


- O pensamento se faz na boca (Tristan Tzara).


- Belo como o encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de escrever sobre uma mesa de necrotério (Lautréamont).


- Quando as mulheres vão urinar, as árvores olham e não dizem nada (poema dos índios Macunis).


- Pulo das páginas em teus braços (Walt Whitman).


- Não há lugar para a morte; sempre vivos, os seres retornam todos ao Céu, em esferas de luz (Virgílio).


- Se hoje, o arcanjo, uma ameaça detrás das estrelas, desse um passo apenas em direção a nós, nosso coração, sobressaltado, explodiria (R. M. Rilke).


- Após a morte, deveriam nos meter numa bola; essa bola seria de madeira e de varias cores. Rolariam a bola para nos conduzir ao cemitério e os papa-defuntos encarregados dessa tarefa usariam luvas transparentes para despertar nos amantes a lembrança das carícias (Francis Picabia).


- Desse pão não comerei (Benjamin Péret).


- É preciso esgotar o campo do possível (Holderlin).


- Se a aparência expressasse a essência, a ciência seria desnecessária (Karl Marx).


- Os poetas não mandam no que cantam (Homero).


- A natureza ama se ocultar (Heráclito de Éfeso).


- Boca de fome, oh boca generosa / dizendo sempre a mesma água clara (R. M. Rilke).


- Aqui é a escola das árvores. Estão aprendendo geometria (Raul Bopp).


- A noite está bonita. Parece envidraçada (Raul Bopp).


- Eu te mostrarei o medo num punhado de pó (T. S. Eliot).


- Irmã sem memória, morte, com um só beijo me tornarás igual ao sonho (Giuseppe Ungaretti).


- Na casa havia nove irmãs. Uma foi comer biscoito. Deu um tangolomango nela, não ficaram senão oito (folclore).


- Fixava vertigens (Arthur Rimbaud).


- Lembra-te que o tempo é um jogador que ganha todos os lances sem roubar (C. Baudelaire).


- Mas as coisas findas; muito mais que lindas / essas ficarão (Carlos Drummond de Andrade).


- Então a nuvem passou e o tanque estava seco / Vai, disse o pássaro, porque as folhas estão cheias de crianças, ali escondidas e excitadas, contendo o riso / Vai, vai, vai, disse o pássaro: o espírito humano não suporta tanta realidade (T. S. Eliot).


- No ponto em que estamos, não há nenhum temor urgente (René Char).


- Voltei lá onde jamais estivera. Nada do que não era tinha mudado. Sobre a mesa (a toalha de linóleo em quadrados); reencontrei pela metade, o copo que jamais se enchera. Tudo continuava tal como nunca havia deixado (Giorgio Caproni).


- Alguém moveu Sírius de um lado para o outro (Murilo Mendes).


- E os chapéus das mulheres que passam são cometas no incêndio do anoitecer (Blaise Cendrars).


- Uma floresta cujos pássaros são todos de chamas (André Breton).


- Os bombons e as flores me dão dor de dentes (Francis Picabia).


- Minha mãe tocava piano no caos (Murilo Mendes).


- O poeta futuro cai do velocípede (Murilo Mendes).


- Se dom Pedro II vier aqui com história, eu boto ele na cadeia (Oswald de Andrade).


- Quem, se eu gritasse, me ouviria dentre a legião de anjos? (R. M. Rilke).


- Para onde caminha minha sombra / neste cavalo de eletricidade (Augusto dos Anjos).


- Já vai escurecendo / o sangue pára de arder / Agora o que digo acendo / para não me perder (Vitorino Nemésio).


- Quem fizer amor dormindo / é logo expulso do sono (Jean Cocteau).


- Por ter roubado a Nissus, cabelos de púrpura / sua filha traz cães furiosos no púbis e nas virilhas (Ovídio).


- Meu amor de nádegas de primavera (André Breton).


- A mulher do fim do mundo / chama a luz com um assovio (Murilo Mendes).


- Mais abaixo do que eu, sempre mais abaixo que eu, se encontra a água. É sempre de olhos baixos que a vejo (Francis Ponge).


- Mal entrava no mato, era um delírio / Os papagaios se reuniam em bando, protestando / como um verdadeiro comício (Cassiano Ricardo).

(Folha de São Paulo, 11 de maio de 2008)


O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...