terça-feira, 1 de maio de 2012
Circuito fechado - Ricardo Ramos
sábado, 28 de abril de 2012
Puxando conversa - Mario Prata
Já notou como brasileiro gosta de puxar conversa? Em qualquer lugar, a qualquer hora. Tá lá uma pessoa quieta no seu lugar, logo vem o brasileiro tentando puxar conversa. O brasileiro não consegue ficar só na dele. Quer ficar na do outro ou outra, também.
E isso é coisa de brasileiro mesmo. Americanos, latinos e europeus não estão nem aí. E ainda ficam invocados quando a gente se mete a besta com eles. Me lembro quando estava morando em Portugal, minha irmã Ruth, comigo no bingo, tentou puxar conversa com uma portuguesa que estava na mesa. Nada mais natural, brasileiro. Depois de duas perguntas sem resposta, a portuguesa pegou a sua bolsa e, indignada, se mandou. E tinha razão. Quem era aquela gaja que queria saber se ela era de Lisboa mesmo, se ela ia sempre ao bingo, se ela já tinha ganhado alguma coisa?
Tinha razão a lusitana.
Mas a gente gosta de puxar um papo. E o mais doido é que o outro ou a outra (em sendo brasileiros) sempre entram nesse nosso assédio amigável. E o brasileiro já desenvolveu assuntos para todas as situações.
No táxi, por exemplo, é moleza: "Frio, hein?"
Basta isso para que o taxista fale duas horas. Sem parar. Ou: "Trânsito, hein?"
No spa, basta a sucinta pergunta: "Quantos quilos, já?", para que a gorda e risonha amizade seja logo consolidada.
Na fila do banco, não precisa nem falar. Basta fazer um ar de tédio, de saco cheio, balançar um pouco a cabeça que a conversa já foi puxada.
Se não der certo, pode tentar um "já notou que a fila da gente nunca anda?"
No campo de futebol, balance a cabeça e diga: "Esse cara é burro!" E pronto. Concordando ou discordando, o torcedor ao lado já é seu íntimo.
No bar, para a garota do lado: "Já notou que todo garçom é surdo?"
Na sala de espera da maternidade: "É o primeiro?"
No cartório, com aquele papelzinho numerado na mão: "Eu não acredito!"
Na Internet: "Tem alguém aí?"
No ponto de ônibus: "Demorar não é nada; o pior é que vem cheio."
Olhalá!
Você também pode começar uma conversa civilizada mostrando uma fita cassete e dizendo: "Se você abaixar o nível, eu mostro!"
Tem gente que ainda usa o "eu não te conheço de algum lugar?" E tem gente que cai nessa.
(...)
No elevador, o tempo é curto e o começo de papo não deve ir além do calor que está lá fora. Nunca pergunte, por exemplo, sobre política ou religião. Aliás, não existe nada pior do que a religião para puxar conversa. Geralmente, ouve-se, do outro lado, um muxoxo que é, segundo o Aurélio, aquele estalo com a língua e o céu da boca, por vezes acompanhado da interjeição ah, para indicar desprezo ou desdém. É, nada pior do que um muxoxo quando a gente quer puxar conversa.
No avião: "Mora lá ou aqui?"
(...)
Me lembra o jovem do romance Encontro Marcado, do Fernando Sabino, parando uma moçoila na rua:
- Sozinha?
- Não. Com Deus.
E ainda aquele bêbado que entrou num velório e perguntou para um desconhecido:
- Morreu do quê?
- Suicídio.
- Tiro?
- Veneno.
- É bom, também!
segunda-feira, 23 de abril de 2012
Fragilidade
É tanta a fragilidade
que temo maltratar
a folha em branco.
Tanta luz da verdade
que me confundo
com o amanhecer.
Tanta liberdade pra falar
mas a alma explode
com o pôr-do-sol.
Às vezes sou monstro
aventureiro
basta ouvir a voz do povo
e ser jogado aos leões.
Tantas cenas trágicas
ensaiadas
tanto medo fome dor
eu aqui no centro
da fogueira
rondo o precipício
como quem vai
brincar
no parque de diversões.
Quilômetros separam nossos mundos
de geografia e fantasia
mas sobrevivemos por um fio
com torpedos e ligações.
Ouço todas as canções
que tocam nesses bares
noturnos.
Durante séculos fui fiel a elas
e a tudo mais
mas ninguém liga
para a dor
de estar sozinho
e assim eu sigo
sem coragem
de voltar atrás.
domingo, 22 de abril de 2012
Reparto com você o que não é meu - Ferreira Gullar
Lembra-te que o tempo é um jogador que ganha todos os lances sem roubar (Baudelaire.
Não é por falta de assunto. É que nada que escrevesse daria ao leitor tanto prazer quanto o que se segue:
- Comigo a anatomia ficou louca: sou todo coração (Maiakóvski).
- O pensamento se faz na boca (Tristan Tzara).
- Belo como o encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de escrever sobre uma mesa de necrotério (Lautréamont).
- Quando as mulheres vão urinar, as árvores olham e não dizem nada (poema dos índios Macunis).
- Pulo das páginas em teus braços (Walt Whitman).
- Não há lugar para a morte; sempre vivos, os seres retornam todos ao Céu, em esferas de luz (Virgílio).
- Se hoje, o arcanjo, uma ameaça detrás das estrelas, desse um passo apenas em direção a nós, nosso coração, sobressaltado, explodiria (R. M. Rilke).
- Após a morte, deveriam nos meter numa bola; essa bola seria de madeira e de varias cores. Rolariam a bola para nos conduzir ao cemitério e os papa-defuntos encarregados dessa tarefa usariam luvas transparentes para despertar nos amantes a lembrança das carícias (Francis Picabia).
- Desse pão não comerei (Benjamin Péret).
- É preciso esgotar o campo do possível (Holderlin).
- Se a aparência expressasse a essência, a ciência seria desnecessária (Karl Marx).
- Os poetas não mandam no que cantam (Homero).
- A natureza ama se ocultar (Heráclito de Éfeso).
- Boca de fome, oh boca generosa / dizendo sempre a mesma água clara (R. M. Rilke).
- Aqui é a escola das árvores. Estão aprendendo geometria (Raul Bopp).
- A noite está bonita. Parece envidraçada (Raul Bopp).
- Eu te mostrarei o medo num punhado de pó (T. S. Eliot).
- Irmã sem memória, morte, com um só beijo me tornarás igual ao sonho (Giuseppe Ungaretti).
- Na casa havia nove irmãs. Uma foi comer biscoito. Deu um tangolomango nela, não ficaram senão oito (folclore).
- Fixava vertigens (Arthur Rimbaud).
- Lembra-te que o tempo é um jogador que ganha todos os lances sem roubar (C. Baudelaire).
- Mas as coisas findas; muito mais que lindas / essas ficarão (Carlos Drummond de Andrade).
- Então a nuvem passou e o tanque estava seco / Vai, disse o pássaro, porque as folhas estão cheias de crianças, ali escondidas e excitadas, contendo o riso / Vai, vai, vai, disse o pássaro: o espírito humano não suporta tanta realidade (T. S. Eliot).
- No ponto em que estamos, não há nenhum temor urgente (René Char).
- Voltei lá onde jamais estivera. Nada do que não era tinha mudado. Sobre a mesa (a toalha de linóleo em quadrados); reencontrei pela metade, o copo que jamais se enchera. Tudo continuava tal como nunca havia deixado (Giorgio Caproni).
- Alguém moveu Sírius de um lado para o outro (Murilo Mendes).
- E os chapéus das mulheres que passam são cometas no incêndio do anoitecer (Blaise Cendrars).
- Uma floresta cujos pássaros são todos de chamas (André Breton).
- Os bombons e as flores me dão dor de dentes (Francis Picabia).
- Minha mãe tocava piano no caos (Murilo Mendes).
- O poeta futuro cai do velocípede (Murilo Mendes).
- Se dom Pedro II vier aqui com história, eu boto ele na cadeia (Oswald de Andrade).
- Quem, se eu gritasse, me ouviria dentre a legião de anjos? (R. M. Rilke).
- Para onde caminha minha sombra / neste cavalo de eletricidade (Augusto dos Anjos).
- Já vai escurecendo / o sangue pára de arder / Agora o que digo acendo / para não me perder (Vitorino Nemésio).
- Quem fizer amor dormindo / é logo expulso do sono (Jean Cocteau).
- Por ter roubado a Nissus, cabelos de púrpura / sua filha traz cães furiosos no púbis e nas virilhas (Ovídio).
- Meu amor de nádegas de primavera (André Breton).
- A mulher do fim do mundo / chama a luz com um assovio (Murilo Mendes).
- Mais abaixo do que eu, sempre mais abaixo que eu, se encontra a água. É sempre de olhos baixos que a vejo (Francis Ponge).
- Mal entrava no mato, era um delírio / Os papagaios se reuniam em bando, protestando / como um verdadeiro comício (Cassiano Ricardo).
(Folha de São Paulo, 11 de maio de 2008)
quinta-feira, 19 de abril de 2012
O anjo Malaquias - Mario Quintana
O Ogro rilhava os dentes agudos e lambia os beiços grossos, com esse exagerado ar de ferocidade que os monstros gostam de aparentar, por esporte.
Diante dele, sobre a mesa posta, o Inocentinho balava, imbele. Chamava-se Malaquias - tão piquinininho e rechonchudo, pelado, a barriguinha pra baixo, na tocante posição de certos retratos da primeira infância...
O Ogre atou o guardanapo ao pescoço. Já ia o miserável devorar o Inocentinho, quando Nossa Senhora interferiu com um milagre. Malaquias criou asas e saiu voando, voando, pelo ar atônito... saiu voando janela em fora...
Dada, porém, a urgência da operação, as asinhas brotaram-lhe apressadamente na bunda, em vez de ser um pouco mais acima, atrás dos ombros. Pois quem nasceu para mártir, nem mesmo a Mãe de Deus lhe vale!
Que o digam as nuvens, esses lerdos cágados das alturas, quando, pela noite morta, o Inocentinho passa por entre elas, voando em esquadro, o pobre, de cabeça para baixo.
E o homem que, no dia do ordenado, está jogando os sapatos dos filhos, o vestido da mulher e a conta do vendeiro, esse ouve, no entrechocar das fichas, o desatado pranto do Anjo Malaquias!
E a mundana que pinta o seu rosto de ídolo... E o empregadinho em falta que sente as palavras de emergência fugirem-lhe como cabelos de afogado... E o orador que pára em meio de uma frase... E o tenor que dá, de súbito, uma nota em falso... Todos escutam, no seu imenso desamparo, o choro agudo do Anjo Malaquias!
E quantas vezes um de nós, ao levar o copo ao lábio, interrompe o gesto e empalidece... - O Anjo! O Anjo Malaquias! - ... E então, pra disfarçar, a gente faz literatura... e diz aos amigos que foi apenas uma folha morta que se desprendeu... ou que um pneu estourou, longe... na estrela Aldebaran...
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