sexta-feira, 20 de agosto de 2010
SÓ A PURA VERDADE - Hans Christian Andersen
Hoje em dia, todos temos acesso a todos (internet, celular...). Por todo lugar a informação nos persegue. David Coimbra, no jornal
Z. H. de 20 de agosto de 2010, diz que "a opinião dos outros está sempre pairando diante dos seus olhos. O mundo exterior jamais fica longe de você (...). O assunto do momento não é notícia; é obsessão. As pessoas são contra ou a favor e quem não concorda com elas é inimigo".
Há um provérbio que diz: "Quem conta um conto aumenta um ponto". E outro diz: "Cada cabeça uma sentença". Parece que um dos traços atraentes (e difíceis) da convivência entre as pessoas é a diversidade de opiniões sobre o mesmo fato.
Andersen (1805-1875), que se tornou um clássico da literatura, parece ir nessa direção, no conto Só a pura verdade.
Que coisa horrível! - disse uma Galinha, no outro extremo da cidade, bem longe do bairro onde a história se passara - é horrível o que houve no galinheiro! Nem arrisco a dormir sozinha esta noite. Ainda bem que somos muitas no poleiro.
E passou a contar o ocorrido, fazendo arrepiar as penas das outras galinhas, a cair a crista do Galo. E era tudo verdade, só a pura verdade.
Mas vamos começar do começo, que ocorreu no extremo oposto da cidade. O Sol desceu e as galinhas subiram. Uma delas, de penas brancas, e pernas curtas, punha os ovos regularmente e, como galinha, era respeitável em todos os sentidos. Chegada ao poleiro, começou a catar-se com o bico. Caiu ao chão uma peninha.
- Lá se foi uma pena! - disse ela - parece que, quanto mais me cato, tanto mais bonita vou ficando - acrescentou, por brincadeira, pois era ela o espírito mais alegre da galinhada, embora fosse, conforme já foi dito, criatura de todo o respeito. E logo adormeceu.
Era escuro ao redor. As galinhas estavam enfileiradas, lado a lado, e a que lhe estava mais próxima não dormia. Ela ouviu, e ao mesmo tempo não ouviu, como convém, para se viver em paz neste mundo. Mas teve, assim mesmo, de confiar à outra vizinha o que ouvira.
- Ouviste o que foi dito aqui! - cochichou - não vou dizer o nome de ninguém, mas há aqui uma Galinha que quer arrancar as próprias penas para ficar bonita. Se eu fosse Galo, a desprezaria.
Logo adiante, pouco acima das galinhas, estava pousada a Coruja, com o Corujão e as corujinhas. Naquela família, sim, todos tinham bons ouvidos. Ouviram cada palavra dita pela Galinha. Viraram os olhos e dona Coruja abanou-se com as asas.
- É feio escutar o que dizem os outros! - começou ela - mas, naturalmente, todos ouviram o que disse a Galinha. Eu o ouvi com os meus próprios ouvidos, e deve-se escutar, antes que caiam as orelhas. Uma das galinhas esqueceu a tal ponto a decência, que está tirando todas as penas e deixa o Galo ver tudo.
- Prenez garde aux enfants! - disse papai Corujão - isso não é conversa para crianças ouvirem.
- Preciso contar o caso à coruja vizinha, senhora séria e respeitável.
Dona Coruja saiu voando.
- Hu-hu! Uhu-uhu-uhu! - riram as duas, juntas, pouco depois.
Achavam-se um pouco acima do pombal do vizinho, e as pombas ouviram-nas comentar o caso:
- Ouviram esta? Ouçam, que esta é muito boa! Há aí uma Galinha que arrancou todas as penas por causa do Galo! Vai morrer de frio, se é que já não morreu. Huuu - huuuu!
- Onde? Onde? Onde? - arrulharam as pombas.
- No galinheiro do vizinho. É como se eu mesma o tivesse visto. É coisa que quase nem se devia contar, pois é um tanto indecente. Mas é a pura verdade!
- Ora, ora, ora! - arrulharam de novo as pombas.
E passaram a história adiante.
- Há uma Galinha - há quem diga que são duas - que arrancou todas as penas para não ser igual às outras e chamar a atenção do Galo. É uma brincadeira arriscada, pois apanhar um resfriado é o que há de mais fácil, e morrer de febre é o que menos custa. De fato, já morreram, as duas...
- Acordem! Acordem! cantou o Galo, voando para o alto do cercado.
O sono ainda lhe pesava nos olhos, mas apesar disso ele cantava:
- Morreram três galinhas, de infeliz paixão por um Galo. Elas arrancaram todas as penas. É uma história muito feia, não quero guardá-la comigo. Que vá adiante!
- Deixa que vá adiante - piaram os morcegos.
- Deixa que vá! Deixa que vá! - cacarejaram as outras galinhas.
A história foi assim circulando, de galinheiro em galinheiro, e, por fim, voltou ao local de onde viera.
- São cinco galinhas - contavam - todas arrancaram as penas para mostrar qual delas tinha emagrecido mais de paixão pelo Galo. Depois brigaram, de tirar sangue, e se mataram de bicadas. Ficaram mortas no terreiro. Foi uma ignomínia para a família delas, e um grande prejuízo para o dono do galinheiro.
Então, a galinha que perdera uma única peninha ao catar-se, não reconheceu a sua própria história, e como fosse uma galinha respeitável, disse lá com os seus botões:
- Desprezo as galinhas como essas. Mas não serão as últimas. Há muitas mais dessa marca. Não se deve silenciar sobre tais coisas. Farei o que eu puder para que essa história saia nos jornais e corra o país todo. É o que merecem essas galinhas e também a família delas.
E a história saiu nos jornais, foi impressa, e uma coisa é verdadeira: uma única peninha pode facilmente transformar-se em cinco galinhas.
terça-feira, 17 de agosto de 2010
DA UTILIDADE DOS ANIMAIS - Carlos Drummond de Andrade
Terceiro dia de aula. A professora é um amor. Na sala, estampas coloridas mostram animais de todos os feitios. É preciso querer bem a eles, diz a professora, com um sorriso que envolve toda a fauna, protegendo-a. Eles têm direito à vida, como nós, e além disso são muito úteis. Quem não sabe que o cachorro é o maior amigo da gente? Cachorro faz muita falta. Mas não é só ele não. A galinha, o peixe, a vaca… Todos ajudam.
- Aquele cabeludo ali, professora, também ajuda?
- Aquele? É o iaque, um boi da Ásia Central. Aquele serve de montaria e de burro de carga. Do pêlo se fazem perucas bacanas. E a carne, dizem que é gostosa.
- Mas se serve de montaria, como é que a gente vai comer ele?
- Bem, primeiro serve para uma coisa, depois para outra. Vamos adiante. Este é o texugo. Se vocês quiserem pintar a parede do quarto, escolham pincel de texugo. Parece que é ótimo.
- Ele faz pincel, professora?
- Quem, o texugo? Não, só fornece o pêlo. Para pincel de barba também, que o Arturzinho vai usar quando crescer.
Arturzinho objetou que pretende usar barbeador elétrico. Além do mais, não gostaria de pelar o texugo, uma vez que devemos gostar dele, mas a professora já explicava a utilidade do canguru:
- Bolsas, mala, maletas, tudo isso o couro do canguru dá pra gente. Não falando da carne. Canguru é utilíssimo.
- Vivo, fessora?
- A vicunha, que vocês estão vendo aí, produz… produz é maneira de dizer, ela fornece, ou por outra, com o pêlo dela nós preparamos ponchos, mantas, cobertores, etc.
- Depois a gente come a vicunha, né fessora?
- Daniel, não é preciso comer todos os animais. Basta retirar a lã da vicunha, que torna a crescer…
- A gente torna a cortar? Ela não tem sossego, tadinha.
- Vejam agora como a zebra é camarada. Trabalha no circo, e seu couro listrado serve para forro de cadeira, de almofada e para tapete. Também se aproveita a carne, sabem?
- A carne também é listrada?- pergunta que desencadeia riso geral.
- Não riam da Betty, ela é uma garota que quer saber direito as coisas. Querida, eu nunca vi carne de zebra no açougue, mas posso garantir que não é listrada. Se fosse, não deixaria de ser comestível por causa disto. Ah, o pingüim? Este vocês já conhecem da praia do Leblon, onde costuma aparecer, trazido pela correnteza. Pensam que só serve para brincar? Estão enganados. Vocês devem respeitar o bichinho. O excremento – não sabem o que é? O cocô do pingüim é um adubo maravilhoso: guano, rico em nitrato. O óleo feito da gordura do pingüim…
- A senhora disse que a gente deve respeitar.
- Claro. Mas o óleo é bom.
- Do javali, professora, duvido que a gente lucre alguma coisa.
- Pois lucra. O pêlo dá escovas é de ótima qualidade.
- E o castor?
- Pois quando voltar a moda do chapéu para os homens, o castor vai prestar muito serviço. Aliás, já presta, com a pele usada para agasalhos. É o que se pode chamar de um bom exemplo.
- Eu, hem?
- Dos chifres do rinoceronte, Belá, você pode encomendar um vaso raro para o living da sua casa.
Do couro da girafa Luís Gabriel pode tirar um escudo de verdade, deixando os pêlos da cauda para Tereza fazer um bracelete genial. A tartaruga-marinha, meu Deus, é de uma utilidade que vocês não cauculam. Comem-se os ovos e toma-se a sopa: uma de-lí-cia. O casco serve para fabricar pentes, cigarreiras, tanta coisa. O biguá é engraçado.
- Engraçado, como?
- Apanha peixe pra gente.
- Apanha e entrega, professora?
- Não é bem assim. Você bota um anel no pescoço dele, e o biguá pega o peixe mas não pode engolir. Então você tira o peixe da goela do biguá.
- Bobo que ele é.
- Não. É útil. Ai de nós se não fossem os animais que nos ajudam de todas as maneiras. Por isso que eu digo: devemos amar os animais, e não maltratá-los de jeito nenhum. Entendeu, Ricardo?
- Entendi, a gente deve amar, respeitar, pelar e comer os animais, e aproveitar bem o pêlo, o couro e os ossos.
domingo, 15 de agosto de 2010
IDIOSSINCRASIAS ULTRACREPIDÁRIAS
Se não tenho certeza de que o que penso seja verdade, devo deixar de opinar?
Mas a opinião não se emancipou da verdade?
A verdade é propriedade da tradição?
Nossos pais, avós, especialistas, autoridades, detêm exclusividade sobre ela?
Einstein, aos vinte e quatro anos, revolucionou, na sua época, a teoria física. Efetuou uma ruptura com a tradição. E a verdade precisou então olhar para frente, e dar um grande giro sobre suas bases anteriores de sustentação.
Hoje, o filósofo alemão Habermas diz que devemos efetuar um “giro lingüístico”. Quer dizer, mais comunicação, entendimento verbal com os outros, sem a muleta da autoridade e da violência. Claro, com a luz da lanterna apontando para o horizonte da clareza e coerência dos argumentos.
Habermas propõe um "agir comunicativo" que não seja refém dos personalismos, egoísmos, idiossincrasias.
Se a verdade depender dos especialistas, até que ponto não estaremos fritos (até no sentido do aquecimento global, por exemplo...)?
É que os especialistas têm um conhecimento profundo, mas estreito. Ao se especializarem, abriram mão de uma visão da totalidade, desejando a profundidade.
O problema é que as questões que envolvem nosso papel e lugar nesse tempo e espaço não dependem dos especialistas, mas da discussão pública em busca de soluções para os problemas que não são individuais, e sim globais.
Obviamente, a comunicação virtual tem andado apressada, com suas diversas faces, côncavas e convexas. Mesmo rasteira e simultânea, não vacila em abordar temas polêmicos e/ou complexos, que inflamam nossas paixões.
Muitas abordagens parecem mais “abortagens”, discursos prematuros, meio pré-refletidos.
É que a comunicação virtual mexe, provoca, nossos impulsos de parecer/aparecer, isto é, queremos ser notados – e o quanto antes melhor.
Há um descompasso: o tempo virtual é instantâneo, embora acionado pelo tempo subjetivo (nossa consciência). Mas esta precisa, necessariamente, de tempo para pensar.
Para ela decidir, a consciência, é fundamental que pare para pensar– como diziam nossos pais: conte até dez, para não agir levado pelo impulso.
Assim... vamos abrir o olho para não sermos escravos da tradição, dos especialistas e das idiossincrasias ultracrepidárias!
sábado, 14 de agosto de 2010
ESSE PEQUENO MUNDO - Pedro Bandeira
Sei que o mundo é mais que a casa,
mais que a rua, mais que a escola,
mais que mãe e mais que pai.
Vai além do horizonte,
que eu desenho no caderno,
como linha reta e preta,
que separa azul de verde.
Sei que é muito, sei que é grande,
sei que é cheio, sei que é vasto.
Me disseram que é uma bola,
que flutua pelo espaço,
atirada pelo chute
de um gigante poderoso;
vai direto para um gol,
que ninguém sabe onde é.
Mas pra mim o que mais conta
é este mundo que eu conheço
e que cabe direitinho
bem debaixo do meu pé.
do livro Cavalgando o arco-íris. São Paulo, Moderna, 1984.
sexta-feira, 13 de agosto de 2010
QUADRILHA
Quando fui abandonado
deitei e dormi
para fugir do medo.
Quando o frio acordou a solidão
ergui-me num salto
repensando meus planos.
Quando meus sonhos
dançaram quadrilhas
nos ladrilhos
do meu quarto
amei de vez Fulana
que amou de vez Ciclano
que amou de vez a Outra
de um amante insaciável.
Matei a fome dos desencontros
com punhados de amores.
Tudo eu quis. Pudera.
Se eu tiver nessa vida
todos os amores do mundo
estarei onde estiver
a primavera.
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