domingo, 26 de outubro de 2008

PESCARIA












A foto está no porta-retratos, na sala de casa. Estou ao lado de meu pai, ambos de camiseta regata, bermudas e chinelos, os braços e as pernas melecados de protetor solar. Ajudo meu pai a segurar uma carpa de quase cinco quilos.

Meu pai diz pra todo mundo que fui eu que fisguei, no rio Ijuí, e que ficamos mais de meia hora lutando com ela, até cansá-la e tirá-la da água. Quando meu pai fala da fotografia, minha mãe arruma uma desculpa qualquer pra sair de perto.

Meu pai adora pescar. Desde criança ele se aventura em açudes, córregos, rios. Já minha mãe, quando falamos em pescaria, lembra de árvores, mato, grama, e fica com alergia só de pensar nos borrachudos. Eu gosto de pescar, e acho que tem a ver com meu pai: ele me deu de presente, quando eu era bebê, um aquário, que permaneceu no meu quarto observando eu crescer e fazer as minhas traquinagens.

Lá em casa tem uma maleta com farto material de pesca. Na tampa, um adesivo, que aparece em muitos carros que circulam pela cidade: “Tá nervoso? Vá pescar!”. Na hora dos preparativos, meu pai fica agitado e desfia uma ladainha de recomendações – como se fosse acampar durante vários dias. Mas eu descobri o motivo dessa mania: é que ele foi escoteiro.

Nossa última pescaria foi no pesque-pague. Tinha prometido, para mim mesmo, que aprenderia - com toda a calma do mundo - a colorar a isca no anzol. É que, quando peço ajuda, ele fica contrariado. Se coloca as minhas iscas, sobra pouco tempo para se concentrar no seu anzol. O pior é que os peixes só estão beliscando no anzol dele. Não passa um minuto e peço para trocarmos de caniço. Mas os peixes, nada... Bastou meu pai se distrair, ao colocar a minhoca no seu anzol, e estou pescando no lugar dele...
-Pescador tem que ter paciência – ele diz.

Chegam novos pescadores. Uma família completa - irmãos, primos, tios - carregando toda a parafernália de pesca que se possa imaginar. Me distraio com a menina, loira, cabelos de tranças, e seu cachorro peludinho (que é uma gracinha). Seu irmão mais velho trouxe uma bola, que parece ter as cores do Boca Juniors.

Foi só despregar o olho do anzol, e uma enorme tilápia veterana levou a minhoca.
- pescador tem que ter paciência, prestar atenção nos detalhes e persistir – recomenda meu pai...









Noto que os dois irmãos não estão nem aí pra pescaria... Digo pro meu pai:
- Sabe de uma coisa, pai, perdi a vontade de pescar.
- Mas como? O que vamos jantar hoje, se não pescarmos nada?

Enquanto me aproximo deles, olho para trás e digo: “ah, pai, isso é o de menos. É só fazer como da outra vez”.
Meu pai balança a cabeça e volta a se concentrar no seu anzol. Sei que, de um jeito ou de outro, vamos comer peixe frito no jantar.
Prometi a meu pai guardar segredo sobre aquela fotografia. “Histórias de pescador são sempre exageradas”, ele diz. Mas minha mãe, que não suporta histórias de pescador, diz: “A mentira tem pernas curtas”. Por isso, só vou dormir tranqüilo se contar a verdade para vocês. Aquele peixe de quase cinco quilos que exibimos no porta-retrato não fomos nós que pescamos no rio, não. Foram os tios do pesque-pague que passaram uma rede enorme num tanque, ali, ao lado dos açudes. Como não tínhamos pescado nenhum peixe, eles tiraram da água meia dúzia de peixes enormes e nós escolhemos o mais vistoso pra posar conosco. Só faltou eu pedir autógrafo pra ele.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

LOTERIA


O jornal é uma lanterna
depois que a chuva
se despede da noite
e se embriaga
de neblina.

Notícias da morte
apontam pra outros
gestos e trazem lamentos
nos corredores de casa
e seus labirintos.

Becos sem saída
aglomeram-se
no semáforo da esquina:
são crianças pedindo esmola
são números da loteria.

Meu tio repassa o jornal
pra nunca mais
ser anônimo...
Seu alvo é
o acumulado
da quina
- ele quer virar
notícia!

Não vou perguntar
se a loteria é fundamental
para mudar os rumos
da história ou
se é um lance
da fortuna
de meu tio!

Na periferia de meus olhos
o jornal prevê as condições
climáticas e o mapa
astral desses
velhos mortais!

Amanhã provará sua serventia:
vai embalar pão e leite na padaria!

O jornal recicla a vida que,
dia após dia,
recicla a vida jornal!

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

JÁ NÃO SEI...


(Para Aline & Cia, da secretaria do IMEAB - Ijuí.)
Já não sei
se o que me empurra
adiante
são meus cabelos,
queixo ou ombros
tamancos, pernas
ou ancas.

As pernas fraquejam, é certo,
cambaleiam no refluxo
de querer voltar atrás.

Não estou certa
se o que me arranca à frente
- em espiral –
é o sentimento de perda
ou de prazer.


Deveres,
deveres,
sussurram
meus tamancos!

terça-feira, 21 de outubro de 2008

TEMPORÃ



Madurinha
no quintal
uma pitanga
se exibiu.


A temporã
ninguém soube
ninguém viu...

Dia depois
apareceram
outras dez.

A manhã
nem chegou
ao meio
e alguém
subiu
no galho
e comeu...


Vamos
inventar
outras frutas
temporãs?

Pitanga no inverno
quiwi no verão
bergamota
em qualquer
estação!

domingo, 19 de outubro de 2008

É PROIBIDO FUMAR


De todas as placas de proibido, a que eu não agüento mais ver é a de “é proibido fumar”. É que minha mãe fuma duas carteiras de cigarro por dia. Isso depois que o cardiologista prensou ela contra a parede, dizendo que, se ela continuar fumando desse jeito, vai virar um esqueleto ambulante.


Aquelas fotos horripilantes nas carteiras de cigarros, colocadas pra apavorar os que fumam, não me comovem mais.


Desenhei no caderno, dia desses, um esqueleto com cabeça de caveira, com um cigarro na boca. Mas não dei nome ao meu personagem.


Justamente naquele dia minha mãe me ajudou a fazer o tema de casa. Ela sempre elogia meus desenhos. Não dessa vez.


Todos os dias ela acorda no meio da noite e vai fumar na área de serviço. Basculante entreaberta, mão esticada pra fora, cigarro entre o “fura bolo” e o “pai de todos”, tragadas e mais tragadas.


Não estou mais ligando pra essa história de que o cigarro faz mal pra saúde, embora minha tia não agüente mais levar minha mãe ao pronto-socorro, pra baixar sua pressão, que de vez em quando fica a mil.


Ontem acordei e fui ao banheiro. A cena me marcou: minha mãe fumava, escorada na janela. Deu uma tragada profunda, e um clarão iluminou seu rosto.


Era a caveira que eu tinha desenhado no caderno.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

MÁRIO QUINTANA


Descobrir continentes é tão fácil
como esbarrar com um elefante:
poeta é o que encontra
uma moedinha perdida.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

POMBA SURFISTA

Nunca
teve
grilos
e minhocas
na cabeça

nunca
teve
medo
de sair
do chão

sim-ples-men-te
a pomba
surfava
sobre o fio
de alta tensão!

terça-feira, 14 de outubro de 2008

MOSTRA LITERÁRIA E PEDAGÓGICA

IMEAB – Instituto de educação Assis Brasil – Ijuí/RS - MOSTRA LITERÁRIA E PEDAGÓGICA – de 07 a 14 de outubro de 2008.

Na abertura da mostra, dia 07/10, às oito horas da manhã, o professor e escritor Américo Piovesan proferiu palestra tematizando o tema MOTIVAÇÃO PARA A LEITURA. ...

A seguir, na biblioteca da escola, todas as turmas, de terceira série até a sexta série, participaram de oficina com o escritor Américo e com o músico Guerrinha. Houve a declamação de poemas, contação de histórias e muita música. Foram mais de 450 alunos interagindo e vendo o quanto a leitura e a escrita (poético-literária) fazem parte de seu dia-a-dia.
Aproveitamos para agradecer à direção, coordenações e professores pela oportunidade. Ano que vem haverá muito mais!

NÓS

Quando você menos espera, os cadarços do sapato se desatam. É um embaraço breve e passageiro, e não perdemos a máscara, como acontece quando nos olhamos no espelho, no banheiro de uma festa, e não conseguimos disfarçar olheiras e pés de galinha, e aí resta o apelo à embriagues ou sair de fininho.
No lance decisivo, na hora de evitar o gol, ou no contra-ataque, ao tentar fazer um gol de letra, o cadarço da chuteira se solta, e passamos batidos. Resta lamentar e, da próxima vez, sem distração, mudar o jeito de fazer o nó.
Os cadarços precisam estar bem amarrados, a cara não. Amarremos casas, instrumentos, ferramentas, e liberemos os sentimentos. Mas quantos fazem confusão, e invertem a ordem!
As obras concretas precisam de liga, de ferro, para não serem levadas pelo vento. As amizades precisam de laços para nos aproximar uns dos outros.
Existem nós que nos prendem aos outros que precisam ser desamarrados. São fraquezas, medos, timidez. Não, não somos uma ilha, pertencemos a uma teia de relações. Cabe refletir sobre a liberdade de ir e vir em meio a essa teia.
O amor não deve amarrar a paixão. Nossas vidas, sem paixão, não têm combustão, não têm arranque, como carro velho com bateria pifada.
Amor convencionado é como sapato apertado, e os calos doem cada vez mais. Quando voltamos para casa, a primeira coisa que fazemos é tirar os sapatos e as meias, e colocamos os pés sobre a cadeira.
Pena que o alívio e o prazer ficam entre quatro paredes.
Amor que se satisfaz com as regras tem medo da paixão, é gravata que usamos de vez em quando, e nos sufoca porque não estamos habituados.
Afrodite, deusa do amor, livrai-nos das amarras sociais, que nos fazem desfilar o amor e a paixão numa ordem unida, para um futuro pré-determinado que não escolhemos.

sábado, 11 de outubro de 2008

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

SÁBADO NO SUPERMERCADO


É sábado de tarde, entramos no supermercado, assumo a direção do carrinho, e meu pai tira do bolso uma lista quilométrica de compras. Isso mesmo. Ele anota tudo o que precisa, antes de sair de casa. Mas quase sempre esquece o mais importante – iogurte e a revista “Recreio” pra mim.


Passa por todos os corredores e gôndolas, observa atentamente a composição dos produtos - validade, quantidade de gordura, se são orgânicos, etc. etc.. Pra isso, ele procura os óculos de uns quatro graus, no estojo guardado no bolso. Mira, vira, desvira, olha contra a luz, a tarde passa voando, e eu ainda nem joguei bola!


Começam os acidentes e o congestionamento nos corredores... Monstrinhos de quatro, cinco anos, pilotando o carrinho de compras de seus pais, passam a toda velocidade, tiram de fininho, derrubam os pacotes das prateleiras!


Aí surgem os funcionários. Hoje em dia não tem mais aqueles que usam maquininha para remarcar os preços. Meu pai sempre fala que AN-TI-GA-MEN-TE havia o monstro da inflação, e todo dia os funcionários empunham suas maquininhas e tac, tac, tac... Em compensação, hoje tem que cuidar a qualidade dos produtos... Os funcionários estão aí para colocar ordem na bagunça, e aumenta o congestionamento, como se fosse hora do rush, na grande São Paulo.


Senhoras vagarosas, de calculadora mão, fazem das compras no supermercado o passeio de sua vida! A calculadora é a arma que usam para espantar o monstro da inflação!!


Legal são as promotoras de vendas. Desde erva-mate até chazinho pra bebê. Meu pai não fica provando tudo, só porque é de graça. Mas meu tio, Carola, sim. Prova fermentado de uva, suco de goiaba, queijo, salame... Depois, ele fica apertado e vai voando pro banheiro do supermercado!


Se eu me perco do meu tio, é só ir direto pra sessão de vinhos, que lá está ele. Parece um especialista... Pesquisa os rótulos, o ano da safra, se é cabernet ou merlot... No final, ele compra um “sangue de boi”, um daqueles vinhos baratos que nossas mães usam para fazer sagu!


Na hora de passar no caixa, sou eu quem escolhe qual a moça que vai nos atender. Tenho umas três preferidas. Primeiro, olho a cor dos seus olhos, como enfeita os cabelos, descubro o seu nome olhando o crachá, presto atenção nos seus dentinhos, no desenho dos lábios...


Como sou poeta sonhador, observo todos os detalhes do rostinho de minhas caixas preferidas. Acho que o meu pai nem desconfia. Está estressado com o monstro da inflação, que anda louco pra abocanhar o seu sagrado salário – é o que o meu pai diz!




O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...