quinta-feira, 25 de setembro de 2014

À beira-mar - stanislaw Ponte Preta

Por que será que tem gente que vive se metendo com o que os outros estão fazendo? Pode haver coisa mais ingênua do que um menininho brincando com areia, na beira da praia? Não pode, né? Pois estávamos nós deitados a doirar a pele para endoidar mulher, sob o sol de Copacabana, em decúbito ventral (não o sol, mas nós) a ler “Maravilhas da Biologia”, do coleguinha cientista Benedict Knox Ston, quando um camarada se meteu com uma criança, que brincava com a areia.
Interrompemos a leitura para ouvir a conversa. O menininho já estava com um balde desses de matéria plástica cheio de areia, quando o sujeito intrometido chegou e perguntou o que é que o menininho ia fazer com aquela areia.
O menininho fungou, o que é muito natural, pois todo menininho que vai na praia funga, e explicou pro cara que ia jogar a areia num casal que estava numa barraca lá adiante. E apontou para a barraca.
Nós olhamos, assim como olhou o cara que perguntava ao menininho. Lá, na barraca distante, a gente só conseguia ver pares de pernas ao sol. O resto estava escondido pela sombra, por trás da barraca. Eram dois pares, dizíamos, um de pernas femininas, o que se notava pela graça da linha, e outro masculino, o que se notava pela abundante vegetação capilar, se nos permitem o termo.
― Eu vou jogar a areia naquele casal por causa de que eles estão se abraçando e se beijando-se muito – explicou o menininho, dando outra fungada.
O intrometido sorriu complacente e veio com lição de moral.
― Não faça isso, meu filho – disse ele (e depois viemos a saber que o menino era seu vizinho de apartamento). Passou a mão pela cabeça do garotinho e prosseguiu: ― Deixe o casal em paz. Você ainda é pequeno e não entende dessas coisas, mas é muito feio ir jogar areia em cima dos outros.
O menininho olhou pro cara muito espantado e ainda insistiu:
― Deixa eu jogar neles.
O camarada fez menção de lhe tirar o balde da mão e foi mais incisivo:
―Não senhor. Deixe o casal namorar em paz. Não vai jogar areia não.
O menininho então deixou que ele esvaziasse o balde e disse: ―Tá certo. Eu só ia jogar areia neles por causa do senhor.
― Por minha causa? Estranhou o chato. ― Mas que casal é aquele?
― O homem eu não sei – respondeu o menininho. ― Mas a mulher é a sua.

Preta, Stanislasw Ponte. O gol do padre & outras crônicas. Ática: 1997.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

"Taca-lhe fogo no CTG, Marcos véio!"


Quem assiste o comercial da cerveja Polar, fazendo um tributo à Revolução Farroupilha, não deixa de levar um susto. Tendo como garoto propaganda o Peninha (Eduardo Bueno), chamado de “o maior historiador do mundo”, o comercial pretende fazer um “revisionismo histórico”, afirmando taxativamente que o RS venceu o Brasil – “deu de relho” na revolução.
A novidade da Polar é fazer diferente de outras marcas de cerveja. Não vende um mundo dos sonhos, ilusório, de juventude e beleza, etc. e tal. Ao escolher o tema da nossa tradição histórica, nos obriga a pensar sobre a mesma – e rever nossas certezas. Além do mais, aborda o tema usando um recurso retórico que herdamos da filosofia grega: a IRONIA.
Segundo o Aurelião, ironia vem do grego e significa “interrogação”. E também “modo de exprimir-se que consiste em dizer o contrário daquilo que se está pensando ou sentindo”.
Esta é a ironia do personagem, o “maior historiador do mundo”. Disse o Peninha, numa entrevista ao jornal Zero Hora de 7/09/2014, ao ser perguntado sobre a propaganda que ele protagoniza para a mais bairrista marca de cerveja do RS: “Será exagerado, histriônico e debochado... como eu mesmo (risos). Sempre achei sensacional a ideia de ironizar essa certeza tão gaúcha de que somos os maiores e os melhores em tudo – que, aliás, eventualmente parece ser levada a sério por certos segmentos da mídia...”.
É óbvio que Peninha faz o comercial com o objetivo de ganhar fama e dinheiro, segundo as leis do mercado. Mas também nos obriga a pensar nossa mania de grandeza. Toca nos temas significativos da cultura, de forma exagerada, levando-nos à dúvida, estranhamento e ao questionamento: “O que será que ele quis dizer?” “Será que esse historiador pensa exatamente assim sobre a nossa história?”
Nas mensagens habituais da publicidade quase todas as mães são loiras, as famílias são felizes, nosso carro representa nosso poder, físico e sexual... Enfim, “você é o que consome”.
Ao abordar o tema da Revolução, e a dúvida/certeza sobre quem venceu, o comercial da Polar não traz uma verdade (como de início aparenta). Provoca sim o exercício de pensamento a respeito de nossa história, além de bagunçar nossas verdades a esse respeito. Neste sentido se aproxima da ironia do filósofo grego Sócrates – o qual dizia que pouco ou nada sabia, e perguntava aos outros o que eles sabiam, os quais,  à medida que opinavam, iam tomando consciência dos limites do seu saber.
Ora, considero isso mais sensato do que termos uma verdade petrificada, um dogma, e sairmos “tocando fogo” em quem discorda de nossa opinião.
Vivemos um momento histórico repleto de ironias. O problema não são as ironias em si. O problema está na dificuldade que a maioria de nós temos para compreendê-las. Certamente que, se ficarmos no senso comum, sem buscarmos um senso crítico e o bom senso, nossa opinião permanecerá limitadíssima.
Será que os pilares em que fundamos a tradição gaúcha não estão com algumas (ou muitas) rachaduras? Aí, diante da insegurança de que venham a desmoronar, em vez de fazermos um esforço reflexivo, apelamos à violência, chamamos o “Marcos véio” para que vá lá e termine de vez com o debate, “tacando fogo no CTG”.
Os pilares de nossa tradição não foram feitos ao acaso. Foram construídos com nossa narrativa histórica. Fazemos escolhas quando edificamos nossa tradição. Escolhemos contar a história de vencedores ou de vencidos. Ou podemos dizer que em nossa tradição só houve vencedores, inclusive os índios, os negros e, até, o “gáucho”.
Qual o problema de hoje perguntarmos: “Será que foi bem assim, como diz Fulano? Mas qual é o interesse dele pra contar a história dessa forma?”.
E os pilares que sustentam nossa mania de grandeza, até quando se sustentam? Aliás, aqui cabe uma pergunta anterior: “Nós gaúchos temos de fato mania de grandeza?”.


De seu jeito polêmico e debochado, o “maior historiador do mundo” contribui, a meu ver, para dar uma balançada em algumas de nossas convicções. Acho isso ótimo, até porque descobri que pensar dói coisa nenhuma! 

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...