domingo, 3 de junho de 2018

A vida é muito triste



Vejo por aí loucos mansos que às vezes ficam injuriados. Alucinados, tomam o caminho mais torto para distorcer a realidade.
Voltei a rezar porque sei que não há hospícios pra todo mundo.
Voltei a blasfemar porque sei que a vida não está fácil, pão e circo andam em círculos.
Os esgotos não dão conta. Como disse o velho Braga, “essenciais são os esgotos da alma. Nossa pobre alma inesgotável”. Mas, coletivamente, ela está em frangalhos. Crianças gigantes clamam por um pai, mas esse está distante, ocupado com missões intergalácticas.
A vida é muito triste. É o que sempre dizem a cozinheira e o lavador de pratos e o açougueiro e a confeiteira e outros tantos. Há muito tempo fazem o que mandam os senhores. Nunca tiveram uma iluminação, como por exemplo matar e incendiar quem os oprime.
A vida é muito triste. Papai, por que não vens pra nos salvar?

(B. B. Palermo)

sábado, 2 de junho de 2018

Erro, ilusão e delírio - Cláudia Laitano


Diante do que não podemos controlar, uma das respostas mais comuns é a fantasia infantil de que alguém mais forte vai aparecer para nos salvar.

Freud distingue três formas de autoengano. A primeira é a que ele chama de “erro”. Uma pessoa mal-informada, convencida de que a Terra é plana ou de que as vacinas fazem mal para a saúde, está cometendo um erro. Esse tipo de equívoco tem cura, mas exige transfusão imediata de fontes de informação e alguma capacidade de autocrítica.
Já a “ilusão” não é necessariamente um erro, mas implica o forte desejo de acreditar em alguma coisa – mesmo contra todas as evidências em contrário. A donzela que espera encontrar um príncipe (ou vice-versa) com quem será feliz para sempre em doce e alegre harmonia cultiva uma das mais antigas e populares ilusões do mundo. Até pode acontecer, claro, mas amores de contos de fadas não são exatamente a regra na vida real. Também nos iludimos quando imaginamos que alguém (mais forte, mais sábio, mais poderoso) será capaz de resolver nossos problemas por nós. Acontece de vez em quando, é verdade, mas geralmente quando ainda somos crianças e nossos problemas estão ao alcance dos superpoderes de uma boa mãe.
Freud chama de “delírio” aquilo que apresenta uma contradição tão grande com a realidade que se aproxima da alucinação psiquiátrica.
Freud escreveu O Futuro de uma Ilusão, em 1927, movido pelo desejo de demonstrar como o nosso irremediável desamparo, como espécie, pode nos levar a trocar a razão pelo alívio fácil do pensamento mágico. A razão nos diz que: 1) desastres acontecem e 2) a morte é incontornável. Não controlamos o destino e, mesmo que tenhamos a sorte de levar uma vida tranquila e sem grandes atropelos, nunca sabemos como essa história vai terminar. Diante dessa sensação de desamparo e fragilidade frente ao que não podemos controlar, uma das respostas humanas mais comuns é a de recorrer à fantasia infantil de que alguém mais forte vai aparecer para nos proteger e salvar. Para a alquebrada Alemanha da época de Sigmund Freud, a resposta veio logo em seguida, na figura de um ditador que se autoproclamava simplesmente “o líder”.
Tornar-se adulto, ensina Freud, significa aceitar que quase nada que nos aflige seriamente será resolvido de forma simples e sem o concurso do nosso próprio esforço e sacrifício. Nos últimos dias, surgiram muitas vozes sensatas tentando entender as origens políticas e sociais da delirante campanha pela volta do regime militar que ganhou fôlego durante a paralisação dos caminhoneiros. Mas o tempo todo eu só me lembrava de Freud: “O ser humano não pode permanecer eternamente criança, tem de finalmente sair ao encontro da ‘vida hostil’. Podemos chamar a isso de educação para a realidade”.
O Brasil precisa crescer, sim, mas não apenas naquilo que pode ser medido pelo PIB.
(Zero Hora, sábado e domingo de 2 e 3 de junho de 2018)

terça-feira, 29 de maio de 2018

Vê se não demora pra voltar



Suas tatuagens me alegram. Certo dia segredou-me de outra tatuagem mais ousada, que só verá quem tiver acesso ao seu universo mais íntimo. Fico bobo, mas ela: Nem vem, eu não vou mostrar pra ninguém. As tatuagens do marido sinalizam alguém aficionado por esportes radicais e armas e academias de ginástica.
Cheguei e ela cortava o cabelo de um sujeito meio calvo. Pareceu animar-se com minha presença. Sentei no sofá e apanhei uma revista da primeira década do século XXI. Passo os olhos pelas manchetes sensacionalistas que não ajudam em nada no quesito fazer pensar. Muita gororoba requentada disfarçada de deliciosos pratos pra encher o bucho de milhões de leitores.
Se não tem mais ninguém na sala, ela me convoca pra conversas mais reservadas e até picantes, como se fôssemos íntimos. Cruzei por ela algumas vezes em nossas solitárias caminhadas. Ela se cuida, quarenta e poucos anos e está muito gostosa. Seu casamento, como a maioria, parece uma vida no exílio. ***** pouco Ela e o marido. Não giro a roleta, não brinco com a sorte. Sou um cadelão legal, porém sempre na espreita, pronto pra acolher cabeleireiras fogosas.
Ela, nada de arriscar-se numa aventura. Todos se conhecem no bairro e frequentam o Clube de Casais da igreja. Deus e o pastor têm um discurso afinado e afiado, capaz de transbordar de sentimento de culpa até o psicopata ou algum parente do capeta.
O sujeito meio calvo se vai. Sento na poltrona e ela prende o avental no meu pescoço, passo um certo sufoco e faço questão de reclamar. Nada de revelações, porém tive uma experiência traumática na infância, algo como uma vistosa jiboia enrolada em meu pescoço. Bem, isso deve ter sido uma metáfora, eu sei, nada real, talvez eu não passasse de um bebê que ainda estava nadando na pré-consciência.
O corte de cabelo é simples, nenhum topete e outros modismos. Passei da idade pra imitar astros do futebol e roqueiros e atores. Deixo isso pra crianças e adolescentes e retardados. Ok, não passo de um cara meio velho e de saco cheio. E o pior, ainda acredito em alma e espírito. Apenas odeio malucos da autoajuda e psiquiatras e padres e pastores. Eles se afastaram de si mesmos, fazem seus negócios como qualquer outro sujeito, todos meio perdidos. Ok, também estou perdido e me afasto, e observo. Somos corajosos idiotas.
Vejo-a através do espelho, puta que pariu, é uma gatinha de uns vinte anos, cabelo colorido raspado nos lados e acima das orelhas, piercing no nariz, tatuagens até onde nem consigo imaginar, parece uma daquelas garotas que se vê nos outdoors.
A espinha se arrepia quando Ela me liberta do avental colorido e espana meus cabelos do pescoço e roupas e traz aquele espelho enorme pra que eu veja e observe e contemple a parte de trás do meu pescoço toda enrugada, denunciando avançada idade.
Cachos de cabelo agonizam pelo chão, ainda não sou calvo, não ligo pras pontinhas brancas que aparecem aos poucos a cada novo corte. Os restos pelo chão pra mim não passam de urina de bêbado escorrendo pela calçada. Até a lua faz a sua parte. Novos cabelos crescerão, novas marés e novos cortes, novos aventais e jiboias sufocando meu pescoço e a minha alma.
Até quando?
Antes de levantar da cadeira e tirar a carteira do bolso, nossas coxas se enroscam, ela senta no meu colo e afasta os cabelos do pescoço e diz Só posso mostrar estas duas tatuagens, vê se não demora pra voltar.

(B. B. Palermo)

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Pós-verdade


Guardei no armário minhas verdades.
O solo é muito pobre. 
A semente bate nas pedras
e desliza e se perde.

Depositei as ferramentas, 
dei um tempo
à palavra e sua escuta.
Agora sou todo sentidos.

Vou bater asas até o alto,
é só o que tenho no currículo.

Penso de novo naquele conceito: liberdade.
Libertar-me das picuinhas do cotidiano e da manada.

Hoje seguirei Fernão Capelo Gaivota.
Voar, voar, subir, subir...
Não importa se isso não passe de um sonho de Ícaro.


(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...