Suas tatuagens me alegram. Certo dia
segredou-me de outra tatuagem mais ousada, que só verá quem tiver acesso ao seu
universo mais íntimo. Fico bobo, mas ela: Nem vem, eu não vou mostrar pra ninguém. As tatuagens do
marido sinalizam alguém aficionado por esportes radicais e armas e academias de
ginástica.
Cheguei e ela cortava o cabelo de um sujeito meio
calvo. Pareceu animar-se com minha presença. Sentei no sofá e apanhei uma
revista da primeira década do século XXI. Passo os olhos pelas manchetes
sensacionalistas que não ajudam em nada no quesito fazer pensar. Muita gororoba
requentada disfarçada de deliciosos pratos pra encher o bucho de milhões de
leitores.
Se não tem mais ninguém na sala, ela me convoca pra
conversas mais reservadas e até picantes, como se fôssemos íntimos. Cruzei por
ela algumas vezes em nossas solitárias caminhadas. Ela se cuida, quarenta e
poucos anos e está muito gostosa. Seu casamento, como a maioria, parece uma
vida no exílio. ***** pouco Ela e o marido. Não giro a roleta, não brinco com a
sorte. Sou um cadelão legal, porém sempre na espreita, pronto pra acolher
cabeleireiras fogosas.
Ela, nada de arriscar-se numa aventura. Todos se
conhecem no bairro e frequentam o Clube de Casais da igreja. Deus e o pastor
têm um discurso afinado e afiado, capaz de transbordar de sentimento de culpa
até o psicopata ou algum parente do capeta.
O sujeito meio calvo se vai. Sento na poltrona e ela
prende o avental no meu pescoço, passo um certo sufoco e faço questão de
reclamar. Nada de revelações, porém tive uma experiência traumática na infância,
algo como uma vistosa jiboia enrolada em meu pescoço. Bem, isso deve ter sido
uma metáfora, eu sei, nada real, talvez eu não passasse de um bebê que ainda estava
nadando na pré-consciência.
O corte de cabelo é simples, nenhum topete e outros
modismos. Passei da idade pra imitar astros do futebol e roqueiros e atores.
Deixo isso pra crianças e adolescentes e retardados. Ok, não passo de um cara
meio velho e de saco cheio. E o pior, ainda acredito em alma e espírito. Apenas
odeio malucos da autoajuda e psiquiatras e padres e pastores. Eles se afastaram
de si mesmos, fazem seus negócios como qualquer outro sujeito, todos meio perdidos.
Ok, também estou perdido e me afasto, e observo. Somos corajosos idiotas.
Vejo-a através do espelho, puta que pariu, é uma
gatinha de uns vinte anos, cabelo colorido raspado nos lados e acima das
orelhas, piercing no nariz, tatuagens até onde nem consigo imaginar, parece uma
daquelas garotas que se vê nos outdoors.
A espinha se arrepia quando Ela me liberta do
avental colorido e espana meus cabelos do pescoço e roupas e traz aquele
espelho enorme pra que eu veja e observe e contemple a parte de trás do meu
pescoço toda enrugada, denunciando avançada idade.
Cachos de cabelo agonizam pelo chão, ainda não sou
calvo, não ligo pras pontinhas brancas que aparecem aos poucos a cada novo
corte. Os restos pelo chão pra mim não passam de urina de bêbado escorrendo
pela calçada. Até a lua faz a sua parte. Novos cabelos crescerão, novas marés e
novos cortes, novos aventais e jiboias sufocando meu pescoço e a minha alma.
Até quando?
Antes de levantar da cadeira e tirar a carteira do
bolso, nossas coxas se enroscam, ela senta no meu colo e afasta os cabelos do
pescoço e diz Só posso mostrar estas duas tatuagens, vê se não demora pra
voltar.
(B. B. Palermo)