quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Um sonho de simplicidade - Rubem Braga


Então, de repente, no meio dessa desarrumação feroz da vida urbana, dá na gente um sonho de simplicidade. Será um sonho vão? Detenho-me um instante, entre duas providências a tomar, para me fazer essa pergunta. Por que fumar tantos cigarros? Eles não me dão prazer algum; apenas me fazem falta. São uma necessidade que inventei. Por que beber uísque, por que procurar a voz de mulher na penumbra ou amigos no bar para dizer coisas vãs, brilhar um pouco, saber intrigas?
Uma vez, entrando numa loja para comprar uma gravata, tive de repente um ataque de pudor, me surpreendendo assim, a escolher um pano colorido para amarrar ao pescoço.
A vida poderia ser mais simples. Precisamos de uma casa, comida, uma simples mulher, que mais? Que se possa andar limpo e não ter fome, nem sede, nem frio. Para que beber tanta coisa gelada? Antes eu tomava água fresca da talha, e a água era boa. E quando precisava de um pouco de evasão, meu trago de cachaça.
Que restaurante ou boate me deu o prazer que tive na choupana daquele velho caboclo no Acre? A gente tinha ido pescar no rio, de noite. Puxamos a rede afundando os pés na lama, na noite escura, e isso era bom. Quando ficamos bem cansados, meio molhados, com frio, subimos a barranca, no meio do mato, e chagamos à choça de um velho seringueiro. Ele acendeu um fogo, esquentamos um pouco junto do fogo, depois me deitei numa grande rede branca – foi um carinho ao longo de todos os músculos cansados. E então ele me deu um pedaço de peixe moqueado e meia caneca de cachaça. Que prazer em comer aquele peixe, que calor bom em tomar aquela cachaça e ficar algum tempo a conversar, entre grilos e vozes distantes de animais noturnos.
Seria possível deixar essa eterna inquietação das madrugadas urbanas, inaugurar de repente uma vida de acordar bem cedo? Outro dia vi uma linda mulher, e senti um entusiasmo grande, uma vontade de conhecer mais aquela bela estrangeira: conversamos muito, essa primeira conversa longa em que a gente vai jogando um baralho meio marcado, e anda devagar, como a patrulha que faz um reconhecimento. Mas por que, para que, essa eterna curiosidade, essa fome de outros corpos e outras almas?
Mas para instaurar uma vida mais simples e sábia, então seria preciso ganhar a vida de outro jeito, não assim, nesse comércio de pequenas pilhas de palavras, esse ofício absurdo e vão de dizer coisas, dizer coisas… Seria preciso fazer algo de sólido e de singelo; tirar areia do rio, cortar lenha, lavrar a terra, algo de útil e concreto, que me fatigasse o corpo, mas deixasse a alma sossegada e limpa.
Todo mundo, com certeza, tem de repente um sonho assim. É apenas um instante. O telefone toca. Um momento! Tiramos um lápis do bolso para tomar nota de um nome, um número… Para que tomar nota? Não precisamos tomar nota de nada, precisamos apenas viver – sem nome, nem número, fortes, doces, distraídos, bons, como os bois, as mangueiras e o ribeirão.
Março de 1953

terça-feira, 11 de outubro de 2016

As flores de plástico


Na sala de espera, as flores de plástico eternizam. Sem a ansiedade do corpo que aguarda exames e palpites. Apenas existem. Livres como toda matéria que, ao passar do tempo, resiste. Sem dores, desculpas e culpas. Sem noção de finito e infinito. Pena não saberem da perenidade da vida. É uma pena. Seriam sensíveis, pois perceberiam o quanto a vida madura é falível e a angústia é certa com a morte a espreitar.

(Tiradas do Teco, o poeta sonhador) 

Dicas para ter uma vida interessante


1 - Comprar equipamentos de ginástica, de massagens, estocar chás, remédios para aumentar a disposição diante de uma vida agitada. Inscrever-se em academias, comprar pacotes de TV, de filmes, de esportes. Matricular-se em cursinhos de línguas, comprar pacotes de viagens até estourar o cartão de crédito e o tempo livre.
2 - Estressar-se com os que pensam diferente de você, que seguem outra ideologia ou que simplesmente não ligam para ideologias. Implicar com tudo o que nos rodeia, por sugarem nossas forças através desse bombardeio de informações.
3 - Pensar durante todo o tempo a respeito das dificuldades que o teu amor tem em ser igualzinho a você. Dedicar horas tentando ajustá-lo à tua visão de mundo. A cada frustração, sofrer, sofrer e perguntar por quê? Por quê?
4 -  Dar a mínima para artes, literatura, poesia e filosofia. Acreditar piamente que e o sentido de tudo está nos negócios, e que sem os negócios nada de importante temos para falar, ouvir, curtir.
5 - Evitar tudo o que envolva saudade. Coisas da infância e adolescência, brinquedos e colegas, paixões e namoros. Deletar da memória histórias lidas ou ouvidas, de contos de heróis e vilões, mocinhos e bandidos. Bloquear as lembranças de namoros ou quase namoros na adolescência, alegres ou sofridos. Evitar o sentimento do que disse Camões: "A grande dor das coisas que passaram".
6 - Fugir das coisas simples, das pessoas simples, da vida simples. Fazer do trabalho uma batalha diária para acumular dinheiro e se rodear de objetos que impressionem todo mundo.
7 - Fazer muito pouco ou até o contrário do que foi dito aqui.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Alunos do IFF de Santo Augusto/RS




Para o esclarecimento da população, nós da organização estudantil do Instituto Federal Farroupilha vamos expor de maneira simples os motivos da mobilização que estamos promovendo, para que todos entendam. Nossa mobilização é contra medidas tomadas em relação ao futuro da educação, que nos últimos meses estão se provando um retrocesso de cerca de 52 anos. Em especial, protestamos contra a PEC 241, que será votada no dia 10/10/2016 na Câmara dos Deputados Federais, que tem como objetivo estagnar investimentos em saúde, educação e outras áreas fundamentais. Quando falamos que lutamos por um ensino público e de qualidade, não estamos dizendo que o ensino do IF é desqualificado ou ainda reclamando de nossos professores. Pelo contrário, por estudarmos em uma instituição de qualidade acadêmica e com ótimos professores, que temos visão para lutar não apenas pelo que nos afeta diretamente, mas também por ações que prejudicam a todos os cidadãos, pois somos impulsionados a pensar e nos colocar no logar do outro. E sim, como estudantes não podemos aceitar que a educação e outras áreas fundamentais paguem a conta de uma crise que está evoluindo a décadas. Acreditamos que há medidas que possam ser tomadas que não afetam a população brasileira. Há lugares onde é possível cortar custos e onde ninguém comenta em cortar... Nós estudantes somos representantes de nossas famílias, amigos e povo brasileiro, independente de partido político e base ideológica. Esclarecendo, por fim, que a organização e iniciativa de realizar a manifestação partiu exclusivamente dos ALUNOS do campus. Os professores e a direção foram avisados de nossa mobilização e se mostraram favoráveis ao ato. Os mesmos não interferiram no desenvolvimento e tomada de decisões. As decisões foram tomadas por uma organização estudantil formada por ALUNOS, que se sentiram tocados pela atual situação do país. Portanto, a mobilização e quaisquer prováveis repercussões são de total responsabilidade dos ALUNOS.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Um conto mínimo - Heloisa Seixas


Há alguns anos, um avião japonês sofreu uma pane a dez mil metros de altura. Todo o sistema entrou em curto e os motores simplesmente pararam de funcionar. O avião começou a cair. Mas não se descontrolou, não deu reviravoltas no ar, nem se partiu em pedaços ou pegou fogo. E isso foi o mais terrível. Simplesmente começou a cair – lentamente.
Descia quase flanando, com suavidade, embora mergulhasse de forma inexorável rumo ao choque com o chão. E, enquanto isso, todos a bordo viviam, durante vários minutos, a angústia da morte próxima. Se não me engano, foram vinte minutos. Vinte minutos de espera até a explosão final.
O que faziam, o que será que pensavam? Alguns com certeza entraram em pânico, outros, paralisados de medo, na certa rezaram. Outros, ainda, bêbados de terror, devem ter falado alto e até cantado.
Mas depois, quando tudo estava terminado, uma surpresa: as equipes de resgate encontraram, entre os destroços calcinados, pedaços de cadernetas e até guardanapos com anotações de vários passageiros, que tentaram registrar aqueles minutos terríveis ou deixar uma última mensagem, como se fossem náufragos, condenados e sem esperança, numa ilha deserta.
Na época, li com arrepio o noticiário sobre o assunto, e até hoje sinto um frio na espinha quando penso no que podem ter sido aqueles momentos finais. Lembro-me também que o impulso daquelas pessoas – de, diante da morte, procurar deixar alguma coisa escrita – foi comparado ao dos artistas da humanidade: escritores, pintores, músicos, todos os que tentam, através da arte, deixar marcas de sua passagem sobre a terra, na esperança, quase sempre vã, de driblar a finitude da vida.
É a pura verdade. Somos todos – não só artistas, mas todos nós – como aqueles japoneses desesperados. Vivemos tentando deixar nossas pegadas, apressados entre o início e o fim da viagem, sem saber ao certo o que acontecerá. E a vida passa num sopro, uma rajada, não dura mais do que alguns minutos diante do arco da eternidade.
A vida é um conto mínimo.
(Do livro Contos mínimos. Editora Best Seller)

Myrna pergunta: sua alma é imortal? - Nelson Rodrigues

O texto sugere que Nelson Rodrigues acredita na alma imortal. Assim sendo, levaremos para a "nova" vida nossos sentimentos essenciais e, sobretudo, um sentimento essencialíssimo, como é o amoroso.
para Nelson Rodrigues, nossa personalidade, nosso "eu" único e inconfundível, são os nossos sentimentos. Se por algum motivo perdêssemos os nossos sentimentos, seríamos como um Frankenstein. Disso ele conclui que, "na hipótese de ser a alma imortal, são imortais, também, certos sentimentos".
Porém, diz ele que "na terra sentimos coisas que não interessam, que não exprimem o nosso 'eu' profundo e eterno, coisas, enfim, que podemos abandonar (...). É justo, assim, que cheguemos à outra 'vida' despojados dessas coisas de superfície. Mas no amor, não (...). O homem que, na passagem da vida para a morte, perdesse o amor, teria perdido, também, sua alma".
Até que ponto Nelson Rodrigues fala "sério" ou está blefando, já que Myrna é sua criação, sua ficção, seu pseudônimo?

(Do livro Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo - consultório sentimental. Companhia das letras)

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Nuvens - Álvaro de Campos



No dia triste o meu coração mais triste que o dia... 
Obrigações morais e civis? 
Complexidade de deveres, de consequências? 
Não, nada... 
O dia triste, a pouca vontade para tudo... 
Nada... 

Outros viajam (também viajei), outros estão ao sol 
(Também estive ao sol, ou supus que estive), 
Todos têm razão, ou vida, ou ignorância simétrica, 
Vaidade, alegria e sociabilidade, 
E emigram para voltar, ou para não voltar, 
Em navios que os transportam simplesmente. 
Não sentem o que há de morte em toda a partida, 
De mistério em toda a chegada, 
De horrível em todo o novo... 

Não sentem: por isso são deputados e financeiros, 
Dançam e são empregados no comércio, 
Vão a todos os teatros e conhecem gente... 
Não sentem: para que haveriam de sentir? 
Gado vestido dos currais dos Deuses, 
Deixá-lo passar engrinaldado para o sacrifício 
Sob o sol, alacre, vivo, contente de sentir-se... 
Deixai-o passar, mas ai, vou com ele sem grinalda 
Para o mesmo destino! 
Vou com ele sem o sol que sinto, sem a vida que tenho, 
Vou com ele sem desconhecer... 

No dia triste o meu coração mais triste que o dia... 
No dia triste todos os dias... 
No dia tão triste... 

Álvaro de Campos, in "Poemas" 
(Heterônomo de Fernando Pessoa) 

A poesia já esteve, ou ainda está na moda?



"Nos anos 70, no Brasil, a poesia estava na moda, como disse Mário Quintana. 
Nunca se viu tanta gente poetando. Ou nunca se viu tanta gente mostrando, já que fazer poemas é vício secreto próprio da adolescência, nas classes alfabetizadas. Quem, aos dezessete anos, não tinha um caderno com seus pensamentos mais recônditos e preciosos, o incomunicável caderno de autoconfidências e dos impulsos inconfessáveis?
Não duvido que é aí que a literatura começa.
Mas não é aí que ela acaba.
Cedo, lendo a gente descobre, lá fora existe, não apenas um mundo mas também uma literatura, um universo feito de palavras, frases perfeitas, enredos inesquecíveis, versos definitivos, 'performances verbais' tão vivas quanto a própria vida, e que sobrevivem à própria morte do autor.
Se nosso negócio é palavra, é nesse mar que a gente tem que entrar" (Paulo Leminski).

terça-feira, 4 de outubro de 2016

O homem das palavras - Affonso Romano de Sant'Anna


De Aurélio Buarque de Holanda, que nos deixou esta semana, guardo algumas lembranças. Todas alegres.

Uma vez, por exemplo, estávamos num congresso de escritores em Brasília. Assentados no auditório ouvíamos as doutas palavras que eram ditas no palco onde alguém proclamava as virtudes de um texto literário. A rigor, o texto em questão era a Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, que até dez anos atrás todos os brasileiros sabiam de cor, não exatamente por causa da ditadura mais recente, mas porque era texto que aparecia em todas as antologias escolares. 

Quem tem mais de trinta anos e estudou português e não a famigerada comunicação e expressão se lembra dos primeiros versos:

Minha terra tem palmeiras

Onde canta o sabiá,

As aves, que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

Pois bem. Lá ia o expositor à mesa ressaltando que a grande força deste poema estava no fato de que era um texto sem qualquer adjetivo. Disse isto, conferindo tal observação ao grande Ayres da Matta Machado.

Mal se pronunciou esta frase, ouviu-se do fundo do auditório um vozeirão contestando e reclamando:

– Perdão, mas esta ideia é minha.

A plateia voltou-se estupefata. Era Mestre Aurélio, que levantando-se da poltrona e encaminhando-se desassombradamente para o palco continuou falando:

– Sim, esta ideia é minha. Tive poucas, não sei se terei outras e tenho que defendê-las.

Isto posto assumiu seu imprevisto lugar à cabeceira das ideias e fez um brilhante aparte que virou uma conferência.

Outra estorinha sobre Aurélio já é clássica. Tendo que ir à Academia, uniformizado com espada e chapéu, ficou ali na Glória aguardando táxi, até que um parou. O motorista fascinado com a sua indumentária, olhando pelo retrovisor, de repente indagou:

– Ainda que mal pergunte: sois algum reis?

A construção da frase era estranha, mas o motorista estava jogando até com a possibilidade de "folia-de-reis" tendo em vista a semelhança entre a fantasia dos acadêmicos e a do folclore. Aurélio explicou que não, falou da Academia. O chofer não entendeu muito bem. Mas quando Aurélio lhe pediu para se apressar, porque estava atrasado, o outro atalhou confiante: 

– Pode deixar, doutor, que do jeito que o senhor está vestido, nada começa antes do senhor chegar.

05/01/89

(SANT'ANNA, Affonso Romano de. Porta de colégio e outras crônicas. 2. ed. São Paulo: Ática, 1997. p. 53-56. Coleção Para Gostar de Ler. 16 Vol.)

sábado, 1 de outubro de 2016

Ah, o amor!


Parece que o amor tem uma energia que flui do universo, como a música de Boccherini. Deixemos que verta ao natural, em vez de prendê-lo num campo de concentração, onde todos estamos vigiados e recebendo uma dose mínima de afeto.
(Diário de B. B. Palermo)


O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...