quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Quando alguém morria - Hélio Ricciardi


Marieta dizia, com ar
profético,
quando alguém morria:
- O Senhor o chamou para
seu Reino da Glória.
E eu logo me punha a rezar e
a rezar
para que ele não me
chamasse ao Reino
e me deixasse sem Glória
alguma,
perdido por essas ruas,
seus luares
e seus bares.

Jornal Zero Hora de 21/06/2012.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

O incêndio no shopping - curto-circuito dos argumentos


Agosto de 2012 anda estranho. Não apenas essa primavera temporona. Mas também outros eventos, inclusive o incêndio do shopping de Ijuí. Não apenas o incêndio, mas também o texto de Allana Willers, "Não basta apagar o fogo" (no portal www.ijui.com), e da avalanche de comentários que ele suscitou.

Ao ver a foto no jornal Zero Hora do dia 20/08/2012, na sessão “Foto do leitor”, onde um pássaro “pesca” um peixe, não pude deixar de fazer uma relação com o texto e alguns comentários – um deles em especial.

A natureza não nos surpreende com sua dinâmica (e suas cenas). Nada há de errado em uma ave caçar e devorar um peixe; lagartos comerem cobras; aranhas comerem insetos; nós comermos a carne da vaca e os vermes nos devorarem quando passarmos dessa para outra.

Isso faz parte de um processo (ciclo da vida?) que a biologia explica. Mas na vida social, podemos tratar o outro “feito bicho”?

Qual o limite, o sinal amarelo, que nos indica o que podemos dizer ou não publicamente, com relação aos argumentos dos outros, de cujas ideias não concordamos?

Diz um comentário ao texto, que cito aqui:  
"FELIZMENTE PARA TODOS, ELA ESTÁ NO "PRIMEIRO SEMESTRE" DE JORNALISMO, AINDA PODE REVER OS CONCEITOS E TROCAR DE CURSO. QUEM SABE ARTES PLÁSTICAS, OU PRENDAS DOMÉSTICAS, TRICÔ E CROCHÊ. ALGUMA COISA ENFIM, QUE NÃO TENHA A OPORTUNIDADE DE ESCREVER OU FALAR PARA O PÚBLICO".

Quem o escreve parece indicar algo do tipo: “Se eu pudesse, eu te jogava aos leões, ou te devoraria eu mesmo!”

Ora, isso mostra que pisoteamos o espaço da argumentação e partimos para a guerra, com o propósito de eliminar quem não pensa como a gente.

Esse fenômeno é comum no Brasil atual, em que a democracia é uma criança que está tentando aprender a engatinhar – o vemos quando percebemos que ainda não temos uma ETIQUETA de bons modos a respeito de como nos comportar e argumentar no espaço público (virtual ou não).

Muitas vezes não sabemos diferençar bom senso, gentileza, de grosseria, argumento razoável de falácia, etc.

Essa imaturidade (e ingenuidade) de nossa democracia transparece também nas redes sociais, por exemplo no facebook. Muitos citam frases, pensamentos de motivação e/ou auto-ajuda, “assinados” por grandes poetas, escritores ou pensadores. Eles nunca escreveram isso, mas nós, por não conhecermos sua obra, os fazemos circular publicamente, achando que estamos prestando um grande serviço à humanidade.

O fenômeno está ligado ao que eu venho experimentando atualmente, com o imenso espaço público de argumentação de que disponho na internet: blog, twitter, Orkut, facebook... Me preocupo, diante disso: o que falar (postar) para ser visto, comentado, lembrado?

Aqui vejo a necessidade de inventarmos uma etiqueta (ou regras) que nos indiquem quando o sinal está amarelo, nos alertando para que não o ultrapassemos. Invadir o sinal vermelho seria confundir a emoção e o desejo (individual) com argumentação (pública).

Luis Fernando Verissimo escreveu uma crônica (Microfone escondido) que chama a atenção para essa relação do público e do privado. Um casal, que morava num apartamento, teve um dia a idéia de colocar um aparelho de escuta dentro do elevador do prédio. Assim eles podiam ouvir as conversas dos casais seus amigos, que os visitavam, ouvindo-os na chegada e também depois que se despediam. Obviamente, as conversas no elevador, sobre esse casal, não eram as mais elogiosas...

Depois de algumas experiências na escuta de vários casais amigos seus, e da decepção decorrente da descoberta sobre o que comentavam deles, o casal decidiu desligar aquele aparelho bisbilhoteiro, porque, senão, todos os casais seus amigos se tornariam inimigos. 

 A linguagem é pública, cultural e social. Se não cuidarmos dela, se não prestamos atenção no que dizemos a respeito dos outros, corremos o risco de tornar o convívio social um inferno, jogando assim a democracia aos leões.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Areia e espuma - Gibran Khalil Gibran



A verdade da outra pessoa não está no que ela te revela, mas naquilo que não pode revelar-te.
Portanto, se quiseres compreendê-la, não escute o que ela diz, mas, antes, o que não diz.

***
São necessários dois para descobrir a verdade: um para enunciá-la, o outro para entendê-la.

***
Brinquemos agora de esconder. Se te escondesses no meu coração, não seria difícil encontrar-te. Mas se te escondesses atrás de tua própria casca, então seria inútil procurar por ti.

***
O paraíso está aí, atrás daquela porta, no quarto contíguo. Mas perdi a chave. Talvez a tenha apenas posto fora do lugar.


quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Espinho de cacto





Estou longe de ser um Cristo, mas também me cravaram na alma, dia desses, espinhos verbais. Então, para desestressar, resolvo fazer uma faxina no pátio de casa, e acabo sendo ferido por um espinho de verdade! E de cacto!
Isso aconteceu porque eu não ando com os pés no chão. E minha cabeça gosta de se embalar na rede das nuvens. 
Nem percebi que, mesmo espinhoso, o cacto também se deixa levar pela (mu)dança das estações, seus galhos (ou folhas?) caem no inverno. 
Embora minha vizinha tenha me alertado para o perigo de ser ferido por um espinho de cacto, e de que essa planta não serve para nada além de nos ferir num momento de distração, eu sempre deixo pra lá, pensando nos propósitos elevados que levaram a abrir um buraco e (trans)plantar o cacto ali. 
Juntava as folhas do chão, colocava num saco para jogar nos fundos do pátio, e então senti a agulhada: o espinho atravessou a pele de meu dedo indicador da mão esquerda, penetrou pela diagonal, até cutucar o osso. 
Maldita distração! Maldita dor! 
Agora eu precisava arranjar uma agulha. Desde o curso de artes domésticas, há muito tempo, eu não sei onde foram parar agulhas e botões. Peço agulha emprestada à minha vizinha. Dói muito, porque o espinho chegou até o osso. Toda vez que dobro o dedo, uivo de dor. 
Mas a dor maior é a das palavras. Como sou canhoto, e o dedo ferido foi o esquerdo, imploro para que ela me ajude. Ao mesmo tempo que cutucava o espinho de cacto, ela dizia: “Espinho de cacto é perigoso! Ele caminha. Se não arrancar pode virar câncer!”. 
Comecei a suar frio. Senti aquela dorzinha na nuca, prenúncio de desmaio. Me esforcei para não passar vergonha, porque “homem não chora”, “homem não desmaia por qualquer coisinha”. 
Eu precisava fugir das habilidades manuais e verbais da vizinha. Pensava agora em buscar ajuda no pronto-socorro! Mas tinha receio de ser ridicularizado na sala de espera. Imaginem, um homem desse tamanho buscando ajuda médica para arrancar um espinhozinho! 
Então, deito no sofá durante alguns minutos, para pensar no que fazer. Claro! Irei ao posto de saúde do bairro, que fica a algumas quadras de casa... 
Pensei: pra que me martirizar, lá as enfermeiras terão os instrumentos adequados para extrair o espinho, vai ser questão de minuto... Com a vantagem de receber alguma atenção e um curativo carinhoso no final. 
Quem me atende é um enfermeira bonitinha, que logo vai desinfetando o ferimento, enquanto dispõe sobre uma mesa várias pinças de diversos tamanhos. E pede a uma colega para que traga uma lanterninha para ver melhor o espinho. 
Eu duvidei, para mim mesmo, de que aquelas mãos macias fossem conseguir arrancar meu espinho. Mas bastou ela colocar as luvas com seriedade cirúrgica para que minhas dúvidas se dissipassem. 
Eu repetia para mim mesmo: “Respire fundo, não demonstre dor, não desmaie, não faça fiasco!”. 
A operação foi demorada. 
Numa seqüência, a enfermeira usava agulha, limpava, usava pinça, desinfetava... Às vezes eu não conseguia conter meus gemidos. Mas, muito macho, não pedia para que usassem um anestésico. 
A enfermeira pedia para que eu respirasse fundo e devagar. 
Depois de alguns minutos e do insucesso, ela partiu para o plano B: tentar tirar o espinho usando uma seringa (sem agulha, claro). Tentou com uma pequena, mas não deu certo. Agora era assim: agulha, limpeza, pinça, limpeza, seringa, limpeza... 
E então, heureca: a enfermeira busca uma seringa enorme. 
Começo a verter suor frio. Perco a noção do tempo. Aquilo parece uma eternidade... 
Baixo a guarda e peço um copo d ‘água. Pressinto que as duas riem da minha cara... 
Na próxima seqüência, tudo se resolveu. Numa investida impaciente e agressiva com agulha, a moça deu um grito: “Ele saiu, eu vi!”, “Ele saiu, juro que vi!”. E a outra: “Sim, o espinho bateu no meu braço e depois cravou no teto!”. 
Radiante de alegria, a enfermeira comenta: “Ganhei o meu dia! Fiz alguém sofrer!”. 
E eu - fiasquento como sempre - retruco: “Toda essa operação me pareceu um parto!”. 

De novo na tranqüilidade do meu lar, eu penso sobre o que dói mais: os espinhos das palavras mal ditas, ou os espinhos de verdade mal vistos.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

O primeiro beijo - Clarice Lispector




Os dois mais murmuravam que conversavam: haviam pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
-Está bem, acredito que sou a primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar?
Ele foi simples:
- Sim, já beijei antes uma mulher.
-Quem era ela? perguntou com dor.
Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.

O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresa bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir- era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.
E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.
E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engulia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.
A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.
E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.
Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.
O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava...o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada.
O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.
De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga.
Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.
Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água. E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivicador, o líquido germinador da vida...Olhou a estátua nua.
Ele a havia beijado.
Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomo-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva.
Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que numa parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.
Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.
Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele ...
Ele se tornara homem.

Do livro Pequenas descobertas do mundo. Editora Rocco.

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...