terça-feira, 27 de abril de 2010
O REFORMADOR DO MUNDO - Monteiro Lobato
Américo Pisca-pisca tinha o hábito de por defeito em todas as coisas.
O mundo para ele estava errado e a natureza só fazia asneiras.
- Asneiras, Américo?
- Pois então?!... Aqui mesmo, neste pomar, você tem a prova disso. Ali está uma jabuticabeira enorme sustentando frutas pequeninas, e lá adiante vejo uma colossal abóbora presa ao caule duma planta rasteira. Não era lógico que fosse justamente o contrário? Se as coisas tivessem de ser reorganizadas por mim, eu trocaria as bolas, passando as jabuticabas para a aboboreira e as abóboras para a jabuticabeira. Não tenho razão?
Assim discorrendo, Américo provou que tudo estava errado e só ele era capaz de dispor com inteligência o mundo.
- Mas o melhor - concluiu - é não pensar nisto e tirar uma soneca à sombra destas árvores, não acha? E Pisca-pisca, pisca-piscando que não acabava mais, estirou-se de papo para cima à sombra da jabuticabeira.
Dormiu. Dormiu e sonhou. Sonhou com o mundo novo, reformado inteirinho pelas suas mãos. Uma beleza!
De repente, no melhor da festa, plaf! uma jabuticaba cai do galho e lhe acerta em cheio no nariz.
Américo desperta de um pulo; pisca, pisca; medita sobre o caso e reconhece, afinal, que o mundo não era tão mal feito assim.
E segue para casa refletindo:
- Que espiga!... Pois não é que se o mundo fosse arrumado por mim a primeira vítima teria sido eu? Eu, Américo Pisca-pisca, morto pela abóbora por mim posta no lugar da jabuticaba? Hum! Deixemo-nos de reformas. Fique tudo como está, que está tudo muito bem.
E Pisca-pisca continuou a piscar pela vida em fora, mas já sem a cisma de corrigir a natureza.
sexta-feira, 23 de abril de 2010
AULA DE LITERATURA - Charles Kiefer
- O romance epistolar de Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther, criou, na Europa, uma impressionante onda de suicídios: centenas de rapazes, depois de sua leitura, seguiram os passos do herói romântico - explicou o professor de literatura, que ilustrava as suas aulas com exemplos semelhantes, para que se tornassem menos enfadonhas.
- O livro era tão ruim assim? - perguntou a aluna.
do livro de crônicas O guardião da floresta.
- O livro era tão ruim assim? - perguntou a aluna.
do livro de crônicas O guardião da floresta.
terça-feira, 20 de abril de 2010
COPA DO MUNDO
Está chegando a Copa do Mundo e não resisto aos convites do meu vício. Adquiro o álbum da Copa para me acompanhar por onde eu for. São figuras repetidas e trocadas com meus amigos, e me envolvo de tal forma no negócio que até pareço “figura”.
Mas não deixei de notar o ridículo dos jogadores quando pousam pra foto. Os franceses, ah os franceses, parecem os mais exibidos. Basta observar como ajeitaram o que lhes serve de pano de fundo do cenário.
Como aeroporto interditado, a Copa retém a minha vida, não importa se a TV mostra os jogos às três da madrugada.
Montei meu altar na sala pra saudar cada Nação que entrar em campo.
Meu coração vai sobrevoar o mapa-múndi, e vai demarcar Capital por Capital com pontos coloridos. Meus sentidos vão tocar cada invenção de meus irmãos que dividem comigo este mundo.
Para não perder a hora terei à mão despertadores e celulares.
Vai ser uma força-tarefa como os trabalhos voluntários em períodos de tragédia.
A memória vai estar afiada para que os craques e heróis jamais sejam esquecidos. Vou lembrar tintim por tintim no bar e corrigir o primeiro mentiroso, não importa se for meu amigo.
Vai começar o jogo, quero todo mundo por perto. Vou ser igual a Jesus, vou dividir e brindar emoções como na Santa Ceia.
INTERVALO
Sou o intervalo
entre um plano
e outro.
Marcador de página
abandonado
no meio
do livro.
Frase sublinhada
num livro qualquer
há muitos anos.
Sou o intervalo
entre um amor que quase veio
e outro que poderia
ter sido.
Intervalo
que não foi combinado
antes de começar o jogo.
entre um plano
e outro.
Marcador de página
abandonado
no meio
do livro.
Frase sublinhada
num livro qualquer
há muitos anos.
Sou o intervalo
entre um amor que quase veio
e outro que poderia
ter sido.
Intervalo
que não foi combinado
antes de começar o jogo.
domingo, 18 de abril de 2010
desamparados do mundo, uni-vos - Abrão Slavutzky
Alguns artigos que, repentinamente, se oferecem ao nosso olhar e coração, nos depertam de um "sono dogmático" que pode durar dias, meses ou até anos. Foi o que aconteceu comigo ao ler o texto que segue. Por isso, me faço valer do "copiar" + "colar" para reproduzi-lo neste espaço.
Se tivesse que definir os tempos atuais, diria que são tempos de desamparo. Tempos em que crescem a solidão, o vazio, a depressão e diminuem os ideais sociais. É verdade que o desamparo do Homo sapiens, gerado diante das forças de natureza e de enigmas como a morte, foi o motor da construção da civilização. No indivíduo, os desamparos constituem a realidade psíquica, e cada um aprende a enfrentá-los, pois só assim se transforma. Entretanto, tudo indica que nesta modernidade líquida atual, o desamparo cresceu. Diminuiu a solidez das instituições e aumentou a desconfiança e a insegurança. E, ainda, não se pode esquecer do desamparo assustador vivido pela população que está abaixo da linha de pobreza.
O desamparo gera angústia que pode ser traumática. Estar desamparado é se sentir assustado, perdido, é perder o norte. Várias são as situações que geram desamparo: a morte, a separação amorosa, o sentimento de fracasso, a doença, a velhice, a violência. O desamparado, quando não sabe o que fazer de sua vida, pode desenvolver a síndrome do pânico; ou seguir o caminho das drogas, dos vícios em geral, que surgem como salvação ao desamparo. Há também os que buscam a segurança nos diferentes fanatismos, bem como os sofredores crônicos, que suportam a dependência, para não enfrentar o desamparo da liberdade. Os sintomas psíquicos seriam, portanto, uma reação e uma proteção ao desamparo.
Mas o que fazer para aliviar o desamparo? Desconfie das respostas fáceis, mas primeiro é preciso buscar algum tipo de ajuda, de apoio, e esta decisão é, com certeza, meio caminho andado. A criança, por exemplo, enfrenta seu desamparo brincando, pois ao brincar ela reproduz suas experiências aflitivas para, então, dominá-las; as crianças passam, portanto, de situações passivas de sofrimento para sentimentos ativos de domínio. Em minha infância, numa fase difícil de desamparo, tive a felicidade de conhecer Charles Chaplin, que vinha todos os domingos ao bairro Bom Fim. Lembro como ficava espantado e feliz ao ver o incrível Vagabundo, pobre e pequeno, vencendo todos os desafios contra os poderosos. Saía do cinema animado e sabia que voltaria a vê-lo. A arte não cura o desamparo, porque nada cura na verdade, mas alivia, e muito. O mesmo ocorre com o bom humor, que, sendo um sorriso entre lágrimas, diminui o drama da existência trágica do ser.
Quando um castelo de areia desaba, muitos choram, mas outros juntam a areia para construir outro castelo. Fiz parte do sonho de um mundo com igualdade e sem guerras, guiado pelo famoso lema: “Trabalhadores do mundo inteiro, uni-vos”, que desconhecia a face sombria da humanidade, como a crueldade e a vaidade do poder. O castelo do paraíso ruiu, e outros são erguidos, lentamente, das mais variadas formas, na busca de reinventar o cotidiano junto aos demais. A propósito, há um provérbio em zulu: Umuntu ngumuntu ngabantu – Uma pessoa é uma pessoa por meio das outras pessoas.
* Psicanalista (Zero Hora, 17/04/2010)
Se tivesse que definir os tempos atuais, diria que são tempos de desamparo. Tempos em que crescem a solidão, o vazio, a depressão e diminuem os ideais sociais. É verdade que o desamparo do Homo sapiens, gerado diante das forças de natureza e de enigmas como a morte, foi o motor da construção da civilização. No indivíduo, os desamparos constituem a realidade psíquica, e cada um aprende a enfrentá-los, pois só assim se transforma. Entretanto, tudo indica que nesta modernidade líquida atual, o desamparo cresceu. Diminuiu a solidez das instituições e aumentou a desconfiança e a insegurança. E, ainda, não se pode esquecer do desamparo assustador vivido pela população que está abaixo da linha de pobreza.
O desamparo gera angústia que pode ser traumática. Estar desamparado é se sentir assustado, perdido, é perder o norte. Várias são as situações que geram desamparo: a morte, a separação amorosa, o sentimento de fracasso, a doença, a velhice, a violência. O desamparado, quando não sabe o que fazer de sua vida, pode desenvolver a síndrome do pânico; ou seguir o caminho das drogas, dos vícios em geral, que surgem como salvação ao desamparo. Há também os que buscam a segurança nos diferentes fanatismos, bem como os sofredores crônicos, que suportam a dependência, para não enfrentar o desamparo da liberdade. Os sintomas psíquicos seriam, portanto, uma reação e uma proteção ao desamparo.
Mas o que fazer para aliviar o desamparo? Desconfie das respostas fáceis, mas primeiro é preciso buscar algum tipo de ajuda, de apoio, e esta decisão é, com certeza, meio caminho andado. A criança, por exemplo, enfrenta seu desamparo brincando, pois ao brincar ela reproduz suas experiências aflitivas para, então, dominá-las; as crianças passam, portanto, de situações passivas de sofrimento para sentimentos ativos de domínio. Em minha infância, numa fase difícil de desamparo, tive a felicidade de conhecer Charles Chaplin, que vinha todos os domingos ao bairro Bom Fim. Lembro como ficava espantado e feliz ao ver o incrível Vagabundo, pobre e pequeno, vencendo todos os desafios contra os poderosos. Saía do cinema animado e sabia que voltaria a vê-lo. A arte não cura o desamparo, porque nada cura na verdade, mas alivia, e muito. O mesmo ocorre com o bom humor, que, sendo um sorriso entre lágrimas, diminui o drama da existência trágica do ser.
Quando um castelo de areia desaba, muitos choram, mas outros juntam a areia para construir outro castelo. Fiz parte do sonho de um mundo com igualdade e sem guerras, guiado pelo famoso lema: “Trabalhadores do mundo inteiro, uni-vos”, que desconhecia a face sombria da humanidade, como a crueldade e a vaidade do poder. O castelo do paraíso ruiu, e outros são erguidos, lentamente, das mais variadas formas, na busca de reinventar o cotidiano junto aos demais. A propósito, há um provérbio em zulu: Umuntu ngumuntu ngabantu – Uma pessoa é uma pessoa por meio das outras pessoas.
* Psicanalista (Zero Hora, 17/04/2010)
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