1.
O sabor daquele beijo e as olheiras e o cheiro do
cigarro no cabelo. Foram três maços em poucas horas.
Todo seu corpo sofria e ela chorava. Destruía-se em
nome do amor, que deixou para trás belas paisagens e agora atravessava um pântano.
Fiquei perplexo ao vê-la assim durante horas,
lágrimas e lágrimas que vertiam de seus olhos e ouvidos e narinas e dedos e
vagina.
Ela trabalhou numa zona, numa cidade perto daqui,
segunda e terça e quarta e quinta e sexta. Nesse dia nem dormiu. Sábado à noite
apareceu. Ainda bem que avisou que viria, deu tempo pra buscar um fardo de
latões de cerveja.
Antes que ela pedisse pra que tocasse as sertanejas,
coloquei Renato Fernandes e aquele blues de cortar os pulsos. Perguntei
"Tu nunca ouviu blues?", e ela: "Não". Uma cara de
sofrimento e eu mandando ver o som e falando
sobre a história do bluseiro. Ele compunha e transava sempre bêbado. Não
existia sem conhaque barato e cigarros escrotos.
Enquanto o solo da guitarra arranhava edifícios e
avenidas e desencadeava explosões nas fiações dos postes e deixava ruas
desertas e escuras, a garota teclava e teclava, nuns papos sofridos com seu
ficante. Pensei dizer: "O Renato Fernandes é de Campo Grande, território
de muitos sertanejos, mas se saiu ótimo no blues".
Ela estava dilacerada e descornada e queria cheirar,
e eu tentando convencê-la de que o pó não leva a nada, amanhã se sentiria pior.
Caralho - pensei - essa tem incrível habilidade pra teclar no celular. Bem que
poderia ter essa desenvoltura pra dar conta das coisas do coração.
2.
Me convenci de que ela tinha um tesouro pra me
ofertar. Então peguei o celular e fui gravando... Ela rodou as mensagens compartilhadas com o
cara pelo WhatsApp durante a semana.
Gente, era gritante a fragilidade do "cafetão ingênuo".
Isso me fez lembrar do Tim Maia, que disse nos Anos Oitenta: "Este país
não pode dar certo. Aqui prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme e traficante
se vicia...".
Nas mensagens, a toda hora ele quer saber onde ela
está. Eis o jogo: ele insinua que ela está na zona, e ela diz que não, diz que
está na casa de uns parentes.
Ouvi em algum lugar: "Quem ama está sujeito à
briga. Mas amor não significa guerra...".
Acontece que a conheceu num puteiro, se gostaram e
então ela saiu de lá. Ela se queixa, diz que o ficante não se definiu, por isso
voltou pra essa vida. O cara então viajou, quis esquecer esse amor, quis fazer
algo como dar um tempo.
Lamenta-se: "Tu me fez de palhaço. Estou triste
onde estou. Tô passando necessidade. Mas vou aguentar até te esquecer. Tô
bêbado, não sei aonde vou agora".
Eis um bom tema para músicas românticas. Agora ele
deixa ver seu Calcanhar de Aquiles: "Gostei muito de você, apesar de não
demonstrar".
Nas respostas que a garota dá pro carinha, vejo que
ela é amadora ao mentir. Ou faz isso de propósito. Este é o seu ponto fraco:
temos que mentir com habilidade e convicção, pra evitar que o nosso amor sofra.
Cadelão, repare
que a desconfiança, o medo e a insegurança são bases frágeis para um amor. Olha
só o lamento do sujeito: "Preciso te esquecer. Eu te amo, mas tu nunca vai
me levar a sério. Tô com um aperto no peito. Tô com saudade".
Disse o poeta Leminski: "não discuto / com o
destino / o que pintar / eu assino". E é bem assim. Quis o destino que ele
conhecesse a garota quando ela trabalhava numa zona. Agora, ele não suporta
imaginar que ela voltou a trabalhar por lá. Além de dizer que a ama mas que
precisa esquecê-la, ele aconselha: "Se tu gosta de mim, se controle, mas é
difícil acreditar que tu não está no chinaredo".
Agora ele pergunta se ela ganhou dinheiro nessa
empreitada. Observem a derrapada do cara. Aqui, cafetão sente ciúmes mas não
abre mão do dindim que a guria faturou na zona. Ah, pobre do povo brasileiro,
diria Tim Maia.
"Eu to sofrendo. Acordo te procurando ao meu
lado na cama... Calma, vamos achar uma solução, gosto muito de tu. Vou pensar
sempre em tu. Te amo, mas tu nunca vai mudar".
3.
Ontem à tardinha Lucy estava por aqui e preparou um
enorme frango orgânico e o temperou com especiarias também orgânicas. Explicou
em detalhes pro Cadelão ignorante como é a criação dessa ave sublime, crescendo
livre na natureza, com alimentação de origem vegetal e sem sofrimento no seu
abate.
Ao servir o jantar notou que eu estava (de novo) muito
bêbado, então teve uma crise de ansiedade e chorou e saltou fora. Merda, suguei
outras doses e coloquei o frango quase inteiro e com a travessa e tudo na
geladeira.
A amadora que agora tomou conta do cafofo murmurou
"adoro farofa", abriu a geladeira e surrupiou a travessa com aquele frango mais ketchup e
mostarda e maionese, provou e disse que tinha pouco sal e salpicou do seu jeito
e se atracou, fazendo estragos no infeliz galináceo da Lucy.
Observava seu apetite selvagem e pensava "Meu
Deus, ela não existe!".
Senhor! A criatura fuça durante horas no smartphone,
atrás do seu grande amor. Não descansou, pouco dormiu, mal se alimentou, e
agora aqui está num sono de empedrar. Enfim, agora ela "ouve" sem
reclamar do meu som. Dou passagem pro Belchior e pra Cássia e pro Raul...
4.
Deitada no sofá, ronca como uma porca. Merda, não
transamos. Bebo, ganho tempo, vasculho pelos cantos atrás de coragem. Deixo a TV
ligada e no silencioso e apago a luz e a cubro com mais um cobertor.
No quarto, demoro pra relaxar. Ama do seu jeito e eu
sofro porque não posso fazer nada, apenas observo e até acho meio cômico. Logo
me emociono ao me colocar no lugar deles, naquele seu "original" amor.
Eu, o imprestável. Um bosta, de coração impuro.
Eu, com tantas dificuldades nas questões afetivas,
sinto-me perplexo ao ver as armadilhas que o amor aprontou pros dois.
Eu, que aconselhei enfrentar o amor como quem ri do
uivo do lobo ou do estrondo do tigre, agora me mijo de pavor ao encarar olhos
nos olhos os estragos dessa história inocente.
Pra acalmar o coração da garota, pensei telefonar prum
padre, um conhecido, que a procurasse e
aconselhasse, serenando seu coração. Ou que ao menos rezasse por ela. Eu não
rezo, faz tempo que não pratico, minhas súplicas jamais baterão às portas da
casa de Nosso Senhor.
Preciso fazer algo, antes que ela apanhe uma corda
ou se encharque de gasolina e risque um fósforo, tornando-se estrela incandescente
a nos observar lá do alto.
5.
Na manhã seguinte, depois de uma boa noite de sono e
de um banho demorado, ela disse que queria transar, como se fosse um agrado
pela atenção que lhe dediquei. Senti inveja do seu amor, ainda mais quando ela falou:
"Eu quero transar contigo, mas vou pensar nele, não fique chateado não".
(B. B. Palermo)