sábado, 29 de dezembro de 2018

Parece que algumas coisas não acontecem por acaso



Saindo do mercado, pensava se o melhor seria dar umas moedas pra aquelas crianças que ali pediam, filhas de índios Kaigang, ou se havia outra alternativa para dirimir a miséria desse mundo. Eis que me deparo com uma senhora no meio da rua movimentada, agarrando um filhote de gato. Minha pretensão de ser um homem melhor em 2019 me tirou do lugar de espectador. Pedi pro atendente da farmácia em frente, que assistia à cena, se poderia conseguir uma caixa. Dirigi-me à senhora, que agora tentava acalmar a gatinha assustada, e vi nos seus olhos aquele brilho, uma mistura de indignação e gratidão, aquele sentimento humanitário que muitas pessoas têm.
O rapaz veio com a caixa, juntaram-se mais duas garotas atendentes, opinaram que o bichinho estava apavorado e com sede e, na hora, baixou aquela chuva torrencial. Ficamos debaixo do toldo da farmácia e de novo olhei pra senhora que agarrou a gatinha no meio da rua e vi que ela, em silêncio, me suplicava por algo.
- Está bem. Vou levar o bichinho. Meses atrás envenenaram meu gato, companheiro de longos anos.
Enquanto esperava a chuva diminuir, brotaram as velhas dúvidas. Posso ou não posso adotar o bicho. Como fazer quando viajar? E o apego, e o risco de perder sua companhia, ante os perigos dessa vida?
Dirijo-me ao primeiro ponto de táxi. Preocupado com o calor e sufoco do bichinho dentro daquela caixa, o motorista ligou o ar condicionado. E falou e falou de mais essa problemática, a dos animais abandonados, além das ruas da cidade esburacadas. Eu apenas ouvia, e ele estava tão concentrado nas suas teses que, numa das esquinas, cruzou o sinal vermelho.
A primeira coisa que me veio foi de uma clínica veterinária perto de minha casa. Chama-se FELINNE. A gatinha devia ter menos de trinta dias, necessitava de alguns cuidados, antes de ser adotada.
Abri a porta da clinica com a caixa no colo e uma garota veio ao meu encontro. Não sei se o ano todo as pessoas têm esse sentimento humanitário, ou se isso surge à flor da pele quando se aproxima a virada de ano.
Narrei-lhe o que acontecera e a garota, formanda em Veterinária, falou-me que a filhote necessitava de vacinas e, logo, iria ser castrada, pra depois ser colocada pra adoção. Ato contínuo, disse-me que levaria pra sua casa aquela-abandonada-rejeitada-por-algum-humano. Não viajaria no feriado porque precisava cuidar de um outro gato seu, que teve uma fratura no fêmur.
Tratei de juntar uns trocos pra ajudar na ração e vacinas. Deixei meu número de telefone pra ser avisado, quando o filhote estivesse em condições de ser adotado. Ao me despedir, fiquei perplexo, aquele anjo ainda me disse "Obrigado". Eu é que agradeci, imagina, teremos um mundo melhor se todos tivermos esse cuidado para com os animais.
É, tenho certeza de que a filhote-de-felino-abandonada não cruzou o meu caminho por acaso.


domingo, 23 de dezembro de 2018

Saber pra viver


Nesta vida,
pode-se aprender três coisas de uma criança:
estar sempre alegre,
nunca ficar inativo
e chorar com força por tudo o que se quer.


paulo leminski

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Espelho


Existem, no entanto, várias formas de pobreza.
E há, entre todas, uma que escapa às estatísticas e aos indicadores:
é a penúria da nossa reflexão sobre nós mesmos.

Mia Couto

Tudo seria perfeito



Eu, que busco a palavra perfeita pra colocar numa história perfeita, vejo um corpo perfeito saindo de uma academia e desfilando pela avenida. Tudo seria perfeito se eu não fosse um desocupado que insiste em rabiscar umas coisas numa folha em branco.

(B. B. Palermo)                           

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Lembro que ele...



Lembro que ele guardava mágoas e praguejava e maldizia uns carinhas e umas fulaninhas, eles eram "cheios" e elas umas exibidas que se achavam.
Lembro que ele usava a expressão "cunhenhem", e significava algo como um "coitado", um "samoco" ou um "sem noção".
Lembro que ele buscava uma namorada que seria seu par perfeito.
Lembro que compartilhávamos a mesa no trabalho, e ele se deixava encantar com as histórias que eu inventava, de aproximação às garotas e fiascos e perdas e conquistas.
Chamava-se Edilson e nada sei de seus pais e irmãos, quem está por aí e quem já partiu.
Mais do que as palavras que saíam de sua boca, lembro que sua expressão facial refletia um sujeito ansioso e agitado.
Lembro que vim do norte do Rio Grande do Sul e que ele me instruía sobre os bares e boates e padarias e puteiros, onde rolavam orgias e outras coisas que deviam ser evitadas.
Lembro que naquela época não havia HIV e poucos usavam camisinha, e chato e gonorreia eram coisas normais.
Lembro que não tínhamos medo da morte e do futuro, que vivíamos o "Carpe diem", lição que aprendemos com o filme "Sociedade dos poetas mortos". Lembro que a cidade tinha dois cinemas e muitos filmes eram bons, e então assistíamos no domingo e, de novo, na terça-feira.
Lembro que o Edilson tinha temperamento explosivo e fazia cara feia para chefes e patrões e professores "xiitas", mas era nosso amigo e aceitava piadas e brincadeiras.
Lembro que ele dizia que quando fosse pra sala de aula os alunos iam se foder com ele.
Lembro que no futebol ele era pouco habilidoso e batia muito.
Lembro que ele sonhava ter um carro e, assim, conquistaria as garotas.
Lembro que nas festas ele enchia a cara e tinha soluços e crises de choro. Lembro que nessas horas necessitava de muita proteção, como se fosse o caçula da turma, ou a criança mais nova da família.
Lembro que ele lutou durante anos contra um tumor no cérebro, e que eu estava distante, enrolado com minhas tentativas e alguns sucessos e alguns fracassos e paranoias. E quando ele partiu dessa lembro de ouvir a notícia, mas viajava de férias e, indiferente, não fiz qualquer esforço pra levantar acampamento.
Hoje tento recordar em que região do cemitério ele jaz.
Agora não é uma questão de lembrar. Disso eu tenho certeza. O tempo é implacável. A indiferença para com meu amigo, a falta de memória e os olhos fixos para os desejos mundanos, tudo isso vai nos derrubar e deixar perplexos. O tempo nos leva de roldão, embora digam por aí que pensar nisso é mera filosofia irreal e inútil.

(B. B. Palermo)                           

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

O Casarão



Sou o cara mais ingênuo desta cidade.
Quando o catador de lixo disse que leu
o livro "O mundo de Sofia" no Casarão,
eu não fazia a mínima ideia de que era na
Penitenciária Modulada.

(B. B. Palermo)

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Encontrei Hellen numa parada de ônibus


Desenvoltura de bailarina, cabelos curtos pintados num tom esverdeado, cor semelhante à dos olhos.
Hellen frequenta aulas de dança desde menina, estuda fotografia e pensa cursar medicina.
Mas Hellen não deve ter pressa. Ela tem dezessete anos.
Hellen é minha amiga e fica à vontade para me dizer como é o seu jeito de ser. Com frequência ela abandona suas escolhas e parte pra algo novo.
Hellen é minha amiga, mas ficou ruborizada e eu fiquei ruborizado, pelo menos no início de nosso papo. Mas isso sempre acontece nos encontros aleatórios, numa parada de ônibus.
Prefiro ônibus ao carro, me enxergo nos diversos olhares e, se não fosse na parada de ônibus no centro da cidade, dificilmente me alegraria com aquele olhar da cor do mar.
Estudar em boas escolas, ser bem amparada econômica e afetivamente pelos pais, fazem com que Hellen tenha um futuro promissor.
E eu não posso reclamar, tendo essas fontes cristalinas que me inspiram.
Hellen trouxe tantas novidades, e logo nos despedimos, acho que foi por isso que tive dificuldade para acompanhar seu raciocínio, talvez ela falasse um pouco rápido demais, ou porque navegamos em diferentes gerações, Hellen no limite da adolescência e a meio passo da vida adulta, Cadelão pedalando na subida da meia idade.
Hoje não tive um choque de realidade, mas sim de juventude.
Hellen não precisa se estressar com doces e frituras, não precisa se resignar com meia dúzia de folhas de alface durante o almoço, nem suportar adoçantes no café da manhã.
Hellen, o mundo se descortina diante dos teus olhos verdes - fiquei pensando depois, mas não tive tempo nem coragem de dizer-Lhe.
Ser amigo de Hellen desde sua infância, ser amigo dos seus pais, ser um poeta fracassado, não impedem que eu tenha medo de tropeçar e despencar em direção ao abismo. Mas com a imagem de Hellen assim tão viva, saber que Ela existe, tornam o abismo uma tentação. Sim, acreditem, ele mora a meio passo do paraíso.



(B. B. Palermo)

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Ela é cheia de surpresas



Encontrei-a na praça. Ela e seu filho mais velho, que
tomava sorvete e escalava os brinquedos e que
fez uma cena de ciúmes quando sua mãe me abraçou.
Toda vez que a encontro é uma surpresa.
Não a via fazia uns três meses.
Nesse espaço de tempo noivou,
conheceu outro que a fez rever o que sentia pelo noivo e
romper com ele, engatar uma história com o tal sujeito,
que logo meteu-Lhe o pé na bunda.
O que mais me surpreende é o seu humor.
Ela ri de suas loucuras. E isso é fundamental para a sua e
a nossa saúde mental nesse cotidiano insensível.
"Segredei-Lhe" que tenho passeado de um trabalho para outro e
bebido sistematicamente e ela, mesmo sabendo de minhas fraquezas,
fez uma cara de preocupação, empurrando-me os velhos conselhos.
- Não tenho medo da morte.
- É, mas se você depender do SUS, estará em maus lençóis.
- Bom, o que não gostaria é de sobreviver a um AVC e dar trabalho pras pessoas.
- Não viaja, Cadelão, não viaja.

Era momento de partir.
Saquei que logo a conversa descambaria pros lados de nossa história
que nem bem começou e logo se desmanchou no ar.
Dei-lhe um beijo afetuoso na testa,
desviei do seu rosto, que explodia de vida e tesão,
e segui meu caminho.
Recordo que o entardecer vinha apressado,
e a temperatura estava baixa para um dezembro aqui no sul do país.
Nosso próximo encontro, se houver, vai trazer novas surpresas.

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Um Cão Apenas - Cecília Meireles

Subidos, de ânimo leve e descansado passo, os quarenta degraus do jardim — plantas em flor, de cada lado; borboletas incertas; salpicos de luz no granito —, eis-me no patamar. E a meus pés, no áspero capacho de coco, à frescura da cal do pórtico, um cãozinho triste interrompe o seu sono, levanta a cabeça e fita-me. E um triste cãozinho doente, com todo o corpo ferido; gastas, as mechas brancas do pêlo; o olhar dorido e profundo, com esse lustro de lágrima que há nos olhos das pessoas muito idosas. Com um grande esforço, acaba de levantar-se. Eu não lhe digo nada; não faço nenhum gesto. Envergonha-me haver interrompido o seu sono. Se ele estava feliz ali, eu não devia ter chegado. Já que lhe faltavam tantas coisas, que ao menos dormisse: também os animais devem esquecer, enquanto dormem...
Ele, porém, levantava-se e olhava-me. Levantava-se com a dificuldade dos enfermos graves: acomodando as patas da frente, o resto do corpo, sempre com os olhos em mim, como à espera de uma palavra ou de um gesto. Mas eu não o queria vexar nem oprimir. Gostaria de ocupar-me dele: chamar alguém, pedir-lhe que o examinasse, que receitasse, encaminhá-lo para um tratamento... Mas tudo é longe, meu Deus, tudo é tão longe. E era preciso passar. E ele estava na minha frente, inábil, como envergonhado de se achar tão sujo e doente, com o envelhecido olhar numa espécie de súplica.
Até o fim da vida guardarei seu olhar no meu coração. Até o fim da vida sentirei esta humana infelicidade de nem sempre poder socorrer, neste complexo mundo dos homens.
Então, o triste cãozinho reuniu todas as suas forças, atravessou o patamar, sem nenhuma dúvida sobre o caminho, como se fosse um visitante habitual, e começou a descer as escadas e as suas rampas, com as plantas em flor de cada lado, as borboletas incertas, salpicos de luz no granito, até o limiar da entrada. Passou por entre as grades do portão, prosseguiu para o lado esquerdo, desapareceu.
Ele ia descendo como um velhinho andrajoso, esfarrapado, de cabeça baixa, sem firmeza e sem destino. Era, no entanto, uma forma de vida. Uma criatura deste mundo de criaturas inumeráveis. Esteve ao meu alcance, talvez tivesse fome e sede: e eu nada fiz por ele; amei-o, apenas, com uma caridade inútil, sem qualquer expressão concreta. Deixei-o partir, assim, humilhado, e tão digno, no entanto; como alguém que respeitosamente pede desculpas de ter ocupado um lugar que não era o seu.
Depois pensei que nós todos somos, um dia, esse cãozinho triste, à sombra de uma porta. E há o dono da casa e a escada que descemos, e a dignidade final da solidão.

(Do livro Quatro Vozes, Editora Record.).

domingo, 11 de novembro de 2018

Laos: eu me preocupo com quem não lê - Fernanda Pandolfi


Deixa eu contar aqui: meu português não é bom. Não é. Sei pouco das regras. Crase? Odeio. Os porquês? Nenhum sentido. Concordância: bastante dificuldade. Esse texto que você lê agora está bonitinho porque a Gabriele Branco revisa ele para nós. Mexe aqui e ali e puxa minhas orelhas quando passo muito do limite. Mas aí você diz: ah, vá, conta outra. Como pode ter o português ruim e querer ser escritora? Como pode dizer que sabe nada e ter feito 23 acertos das 25 questões na prova de português da UFRGS? Lógica, meus amigos. A simples lógica. Quando aluna, eu não entendia como meus colegas podiam ter tanta dificuldade na matéria. Para mim, era evidente. Eu lia a frase, às vezes em voz alta, e entendia se fazia sentido ou não. Se encaixava. Interpretação, então? Puts, parecia zoeira. Só lia obviedades.
É um resultado da infância. Dos livros de pano que eu brincava na banheira ainda sem saber ler. Do “Uma História por Dia” que os meus pais liam todos os dias antes de eu dormir. Minha vó conta que por vezes, tarde da noite, ela cansada, tentava pular as páginas ou resumir o trecho do livro, mas não me enganava: “Tá errado, vó, volta!”. Era quase um jogral, tamanha minha ansiedade em entender as letras de uma vez por toda. Não fui prodígio, aprendi o bê-á-bá no tempo normal. E me agarrei às páginas que se abriam à minha frente. Às revistinhas da Turma da Mônica que chegavam mensalmente lá em casa e eu economizava para não devorar tudo na mesma tarde. Às coleções do Erico Verissimo, Monteiro Lobato e aos contos de fada que se empoleiravam na estante. E aí, numa crescente para Pedro Bandeira, Os Karas, a biblioteca da escola, Agatha Christie, Sidney Sheldon, e até as leituras obrigatórias de sala de aula – que à época eram chatas para caramba, mas eu encarava até o final, mesmo sem entender bulhufas (tchê, recomendem livros com temas que interessem aos pré-adolescentes). Foi assim que eu aprendi Português. Assimilei. Tipo os números de vocês.
Eu lia e via se o negócio era coerente ou não. As regras ficaram para depois.
Então vocês imaginam o meu choque ao me deparar com um país que ocupa a posição de número 18 dos lugares com menos acesso à literatura do mundo. O Laos. O dado atual mostra que pouco mais da metade da população vai à escola (61%) e, dessa parcela, a maioria só teve acesso aos livros didáticos ou textos entregues no colégio. Vamos calcular o quê? Menos de um quarto da sociedade pegou, cheirou, apreciou, folheou, dobrou uma orelha de burro para marcar uma página, sublinhou com caneta marca-texto, deixou para terminar o capítulo no outro dia. A experiência da literatura segue um desafio para o país. Livros são artigos raros, quanto mais livrarias e bibliotecas. Outra questão é pertinente: como consequência, quase não há autores na língua local. Quando os laosianos leem, recorrem à língua inglesa ou francesa. Ou seja, há também uma forte campanha em prol do ensino destes idiomas na região. Difícil.
Eu me preocupo com quem não lê. Não só pela questão do português, ou da gramática da língua que for. Livros são companhia, fuga, fantasia, miragem, poesia, amor, saudade, insights. Nestes seis meses na estrada, li uma média de um título a cada 10 dias. Se estou triste, então, mergulho de ponta-cabeça nos personagens, nas frases, naquele universo ali encadernado. Sou capaz de ficar horas presa no quarto do hotel, imersa, fechada, transportada. Quando terminei a saga de “A Amiga Genial”, de Elena Ferrante, no Camboja, senti que um pedaço meu tinha ficado preso naquelas páginas, fiquei sozinha. Que loucura, né? Aí que me refiro. Por isso me preocupo. Tenho a impressão de que quem não consegue se conectar a um livro tem dificuldade de viajar. Não se permite criar, entrar em devaneios, imaginar pessoas, cenários e contextos.
Livros dão ideias. Por isso foram queimados em diversos países enquanto na repressão ou ditadura. Propagam magia. Bruxaria, mesmo.
Tenho sorte, por exemplo, de ter criado um Harry Potter bem diferente de Daniel Radcliffe na minha mente. Ninguém precisou me induzir a visualizar o personagem. Eu consegui desenhar ele na minha imaginação, com a ajuda de J. K. Rowling, óbvio, bem antes do cinema. Sei de quem tenha aliviado a depressão atrás das letras e frases bem formuladas. Eu uso o meio como remédio contra a solidão, o tédio, a insônia, a falta de inspiração. Por isso temo pelas crianças do Laos e penso o quanto aquela vida dura de um lugar carente de tanto poderia ser aliviada, em partes, por um emaranhado de sílabas. Talvez seja ingenuidade minha, mas me parece um antídoto simples para o veneno da realidade.
E você aí, não lê porque sim. “Não gosto”. A gente só não gosta do que não entende. “Não tenho tempo”. Mas passa horas jogando Candy Crush. “Tenho dificuldade de concentração”. Troca o livro ou o ambiente, provavelmente, você não se identificou. “Não quero”. Ok, aí estamos conversando. Entendo que existam outras prioridades, outros caminhos e aquela preguiça de imaginar. Dá um trabalhão invocar a criatividade e colocar o pé para fora do quadrado, mais econômico assistir séries em série. Mas, vem cá, se sobrar um tempo, manda os teus livros empoeirados para L’Etranger Books and Tea: P.O Box 148, Luang Prabang, Laos, 06000, e dê a chance para uma população carente de sonhar.

Outras maneiras de ajudar o Laos a ler:

Big Brother Mouse: O projeto já publicou cerca de 30 livros, a maioria por crianças que são treinadas por professores voluntários. Qualquer doação é bem-vinda – você pode também “patrocinar” um livro.
The Language Project: Auxilia as crianças a aprender inglês e monta bibliotecas em escolas e templos para incentivar a literatura. A maneira de ajudar é doar milhas áreas para bombar a lista de livros do projeto no Amazon.com.
(Zero Hora/revista Donna, 10 e 11 de novembro de 2018)

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

A princesa e o pirata – Rachel de Queiroz



FOI só alguns dias depois do fatal piquenique em Paquetá que eles dois apareceram. A maré trouxe primeiro o corpo da moça, logo identificado por causa do maiô de sarongue, todo de flores amarelas. O dele apareceu mais tarde, a uns cem metros de distância. Coitado, nem então ficaram juntos. Identificar não o identificaram propriamente, que não dava para isso, tal o estrago feito pelos peixes. Mas se quase de par com o corpo dela outro corpo aparecia, tinha que ser o dele, pois não? No fim das contas, não se dera pela falta de mais ninguém, só daquele casal.

A primeira vez que a viu foi no baile da primavera, no seu clube de subúrbio. Estavam elegendo a rainha do mês de maio, ela corria na frente do páreo. Afinal, se rainha não saiu, por causa de uma dúzia de votos, saiu contudo princesa, teve seu trono de veludo ao lado do trono maior, também ganhou brinde e também foi coroada. Ele teve a honra de ser o seu par na hora da valsa real, que foi, como sempre, o Danúbio Azul. E quando a sentiu nos braços, apertou-a como coisa sua e lhe disse no ouvido:
- Pode você só ter chegado a princesa, e nem isso carecia de ser: para mim há de ser sempre uma rainha...
Ela porém o afastou de si, não zangada, mas dengosa, se ofendendo:
- Não atraca, seu pirata, que isto aqui não é cais do porto.
Talvez falasse assim, linguagem marítima, em homenagem à farda que ele vestia: a túnica cor de sangue, a calça branca engomada, e o casquete matador, posto de lado no cabelo repartido, com as fitinhas pretas tremulando no ar, aos rodopios da valsa. E nem o par da rainha, o presidente do clube, tinha um décimo sequer do airoso aprumo do par da princesa, - tudo de acordo com a ordenança militar: barriga para dentro, peito saliente e olhar terrível.

Com tudo isso, não foi dessa vez que a começou a amar e seu cativo se tornou, como se a ela pertencesse de tinta e papel.
Foi no outro dia em que estava sentado à toa no banco da praça e viu descendo do bonde um par de sapatos desses que chamam de ballet, e umas pernas de garrafa, e o joelho redondo, e a barra da saia estampada. Só então levantou os olhos, viu-lhe a face e o lenço do cabelo, viu os olhos e viu-lhe os brincos de arrecadas à portuguesa. E a boca tão pintada, que parecia uma flor de papel pregada no meio do rosto, e o pescoço delgado saindo do laço da gola, e a cinturinha fina apertada no cinto de oleado. Por fim, deixou de a olhar assim, pedaço por pedaço, reconhecendo aquela cintura onde pusera a mão, os olhos e o cabelo: fitou-a em conjunto e logo recordou quem era. Quem seria senão a princesa do mês de maio?
E ao reconhecê-la assim, foi como um cachorro de rua que encontra a dona e não quer mais se apartar dela. Chegou para perto e se entregou. Disse tudo, ofereceu tudo. Princesa tão perigosa há muitos anos não havia. Por ela diz-que dois malandros já se pegaram a navalha, um chofer se suicidou com formicida, um pai de família largou a família, três noivos deixaram as noivas, cinco estudantes sentaram na praça e sete funcionários públicos deram desfalque.
- E eu – que poderá fazer o triste de mim, princesa, que sou apenas um pobre naval apaixonado? Me matar não posso, porque do vosso amor já morri. Matar outros – mas antes que deles eu chegue perto, sei que o vosso olhar os matou. Sentar praça já sentei; dar desfalque – como seria, se a mim não confiam nada? Largar família – ai de mim, princesa, que me criei enjeitado, nunca tive esposa ou noiva; vós é que sereis minha gente e meus amores, pai e mãe que nunca tive, filhos, sobrinhos e netos! Princesa, deixe que eu amarre o cordãozinho do vosso sapato. Deixe que eu deite no chão para você pisar. Maltrata, princesa, maltrata, que estás maltratando o que é teu!
Assim falava o naval apaixonado. A princesa, se o escutava, fingia que estava longe. E a bem dizer fez tudo que ele mandava e depois fez muito mais: pisou, judiou, escarneceu, desprezou – embora só moralmente, com o sorriso desdenhoso e a palavra de pouco caso dita na ponta do beiço.
Como seu, só o aceitava para maltratar, com outros saía, com outros dançava. Ele porém não a largava, sempre a acompanhando, sempre a alguns passos no seu rastro, e se não o comparo com uma sombra é porque sombra não sofre e o pobre sofria muito.

Afinal sucedeu o piquenique em Paquetá. Nem uma vez ela o olhou durante a hora e meia da barca. Nem uma vez lhe falou entre embarque e desembarque, e o passeio de bicicleta e depois o banho de mar. Mas foi na hora do banho de mar que ele sumiu de repente e voltou minutos depois remando numa canoa. Passou bordejando por ela, que boiava na flor da água como uma alga amarela no seu maiô de cetim. Como se brincasse, ofereceu carona. E ela, num capricho, aceitou. Quase virou o bote ao subir nele. Ele ficou na popa onde estava e não a tocou sequer, procurando ajudar. Depois puxou pelo remo, e a pequena embarcação se escondeu por trás da Pedra da Moreninha.
O que se passou naquele barco só Deus saberá. Os companheiros foram dar pela falta dos dois quando desceram da barca da Cantareira. E assim mesmo pensaram que o par tinha se sumido de propósito no meio da multidão.
O homem do restaurante em Paquetá é que estranhou o seu bote aparecer emborcado. E como se disse no princípio, só depois de vários dias é que os peixes e a maré devolveram os dois banhistas.

(Do livro Quatro vozes. Editora Record.).

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Nos tempos em que se tem opinião pra tudo


Arte do chá - Paulo Leminski

ainda ontem
convidei um amigo
para ficar em silêncio
comigo

ele veio
meio a esmo
praticamente não disse nada
e ficou por isso mesmo

domingo, 4 de novembro de 2018

Um dia qualquer no centro da cidade


O cara na praça faz exercícios físicos naqueles 
aparelhos de merda que as crianças 
fazem de conta que são brinquedos.
Aparelhos estranhos, sujeito estranho.
Fita-me desconfiado, deve estar sabendo 
das cagadas que fiz,
nada tão significativo como acordos nucleares.
Logo adiante avisto uma barraca do SENAC
e uma garota me observa e sorri  
e propõe fazer meu teste vocacional.
Os cabelos e os lábios e os dentes e 
as sobrancelhas sintetizam anos de leituras de horóscopos, 
décadas de tentativas e erros
em busca da resposta sobre o meu destino.
Ai ai ai, o mundo é pequeno, o planeta dá voltas,
vem vindo uma senhora que comi anos atrás.
Vacilo, tento virar o rosto e ela não me reconhece.
Seus pés enormes são duas bocas de serpente
que ameaçam na minha direção.
Intriga dos deuses.
Os ponteiros do relógio digital fazem sua parte e
tudo volta ao normal quando passa um vendedor
com aquele carrinho tapado de cobertores e casacos de lã,
as rodinhas entoam poemas tristes, 
Hoje eu vou vender,
eu hoje hoje eu vou.

(B. B. Palermo)

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Flores, moedas, mortos e muito lixo


O bêbado do meu bairro mudou de estratégia
para conseguir algumas moedas para comprar cachaça.
Ontem trouxe uma planta para que eu cultivasse no quintal.
Era uma dessas flores, parecida com copo-de-leite.
Não cultivo flores, apenas algumas hortaliças.
Alcancei-lhe umas moedas e pedi que desse a planta a algum vizinho.
Hoje trouxe uma planta florida.
Deve ter arrancado do jardim de sua mãe.
Estava sem moedas, não abri a porta,
fiz de conta que não estava em casa.
A mãe frequenta a igreja regularmente e mantém as oferendas em dia.
Mães foram feitas para amar e sofrer.
Não é por acaso tantas orações e promessas.
Se ele esqueceu de botar a tampa no tubo do creme dental,
ela vai ao banheiro e o faz.
Nas semanas de abstinência devido ao uso do álcool,
e da insônia que bate à porta,
ela compartilha com o filho tarjas pretas e noites mal dormidas e
redobra visitas à igreja.
O filho, alto, seco, rosto sofrido, tem uns trinta anos e
aparenta ter uns sessenta.
Insetos do bairro alardeiam, mais indiferentes do que tristes,
que ele não passa desse ano.
Eles acreditam que o sujeito não deu certo nesse mundo.
Ao contrário, eles são os tais, com seu trabalho e esposa e amante e
novela e rotina cheia de crenças e pobre de novidades.

À tardinha abro a porta, vou à padaria buscar queijo e pães.
Havia uma planta no degrau da porta da frente.
Devo ser pouco espirituoso, mesmo assim um frio
atravessou-me por todos os quadrantes.
Percebi que as plantas que ele trouxe são as mesmas que parentes e
familiares e amigos levam para os mortos,
no feriado de Dois de Novembro.
O bêbado do bairro e sua mãe e o maluco que aqui escreve e
todos vocês circulamos pelas vias de um imenso formigueiro.
Não sei se os insetos que me rodeiam se perguntam sobre
quem estará presente daqui a alguns anos.
Como e o que estaremos fazendo?
Isso é o de menos.
O mais importante, para este inseto que vos fala,
é que a banana e a cebola e as peras e as batatas e o peito de frango e
o coxão de fora e a cerveja que bebo estão em promoção no Big mercado.
Enquanto o bêbado do bairro traz plantas para trocar por moedas para trocar por cachaça,
toda a biodiversidade que nos rodeia recebe nosso lixo diário.
Movimento desigual. Damos menos do que recebemos.
Quem sabe o sentido de nossas vidas, interagindo com a natureza,
seja produzir lixo, muito lixo.
Eis nossa missão número um.
E o álcool é mais uma válvula de escape para suportarmos o
fato de estarmos sufocados por esse lixo que produzimos.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Desapega, Cadelão



Não tenho humor para pisotear as flores
das árvores deitadas na calçada.
Não suporto contemplar por muito tempo a bola de fogo
no entardecer do fim de outubro.
Não creio estar preparado para enfrentar a semana que avança
e o exame médico e o defeito no carro e a dor de ouvido e
a alegria e mau humor dos vizinhos.
Sem vontade de ouvir rock ou blues ou Debussy ou Beethoven.
O dia está quente e por isso não usarei máscara ou maquiagem.
Estacionei tempo demais nesse lugar.
Hora de desapegar e juntar umas coisas e seguir.
Rodeado de amigos, porém solitário,
não me preparei para isso.
Baby, decifra-me os sinais.
Você sempre diz que é hora de virar a página.
E repete, e repete, Não é uma questão de idade ou experiência.
E foi assim que você quase me convenceu a jogar na fogueira
toneladas de versos bem intencionados, mas pouco criativos.
No final das contas eu me contive, ou foi aquele medo.
Esteja à vontade para sempre repetir Desapega, Cadelão, desapega.
Eu não fico chateado, juro.
(B. B. Palermo)

Peixe vivo



sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Tão banal como uma folha em branco



O letreiro amarelado do bar
e os gritos vindos da mesa de sinuca chamam,
mas uma voz que vem de um resto de consciência
pede pra que volte pra casa.
Tenho medo de voltar.
Moradores do prédio vizinho rosnam,
e a imagem que me vem é uma faca
atravessando corpos na diagonal.
Garotas espalham orgias pela noite
e eu aqui melancólico.
Sei que tudo se reinicia
e sou livre e estou
rabiscando essas neuras.
Posso adotar um pet que me cuide,
posso adotar uma garota que me chame
para o café da manhã.
Livre, porém paralisado. Sim, sei que
posso fazer tantas coisas que ajudem a
suportar as armadilhas.
Pode ser um bom sinal o fato de achar engraçado
casaizinhos devorarem hambúrgeres gigantes.
Sei, sei, isso tudo é banal, inclusive a melancolia

de estar paralisado diante de uma folha em branco.
(B. B. Palermo)

Viagem ao fim da noite

O cachorro passa mancando... não me percebe. Compreendo: a vida é busca, é movimento. Quem prova isso é o motoboy e sua descarga barul...