O galo Gedeão, antes condenado, renasceu. De
lambuja, ganhou uma companheira, a Gerusa. Os dois desfilam no pátio de uma
casa a duzentos metros do mar, na praia de Arroio Teixeira. Parecem um casal de
velhinhos, renovados após descobrirem um grande amor. Agradecida com o doce
lar, Gerusa brinda a humanidade botando um ovo por dia.
Vamos à história do simpático casal. Um professor, o
galo sapiens da história, após uma semana comendo frutos do mar, rememorou os
galos e galinhas caipiras que sua mãe assava aos domingos no forno de fogão à
lenha, acompanhados da imbatível salada de batatas – o que seria da vida dos
descendentes de alemães sem a maionese aos domingos?
Naquela noite chegou a sonhar com o imponente galo
caipira assado na sua infância. Junto aos familiares, em torno da mesa, o
banquete só iniciava depois da oração puxada pelo pai. Após agradecerem a Deus,
o pai escolhia o primeiro pedaço de carne, seguido pelos irmãos mais velhos.
Com tantas lembranças da infância, galináceos
criados no pátio vivendo de alimentação saudável, como grama, frutas, milho e
legumes, o professor não titubeou em rejeitar a ideia de se fartar com um
daqueles frangos assados aos domingos em vários pontos da cidade, criaturas que
foram abatidas com mais ou menos sessenta dias de vida, alimentadas com ração
duvidosa, muitas vezes repletas de hormônios.
Pensou que um banquete à altura dos da sua história
não podia ser apressado. Precisava engordar o galo à sua maneira.
O galo foi
encomendado a preços módicos, de um feirante. No dia da entrega este não trouxe
um jovem e imponente galo, como prometera. Era um galo idoso, de esporas mal
cuidadas. O que fazer? Fechado o negócio, o galo passou a viver livre, leve e
solto no pátio. E como na natureza tudo renasce, no espaço verde e pertinho do
mar, respirando toda aquela maresia, o galo revigorou. Em pouco tempo estava no
ponto... No caso: pronto para o abate. Era o momento tão esperado: fazer um delicioso
frango caipira com direito a todos os temperos que cultivava no pátio.
Se quando criança via sua mãe puxar o pescoço de
galos e galinhas, depená-los, temperá-los e assá-los, particularmente o
professor nunca o havia feito. Sua consciência deu sinal de alerta quando
pensou na morte do galo.
Invadiram a memória do professor lembranças da
infância, as aulas de catecismo e a missa obrigatória nos finais de semana. A
missão de Noé de salvar um casal de cada espécie de bichos que povoavam a terra
insuflou sua sensibilidade. As determinações de Deus a Noé, de proteger todos
os bichos, despertou o lado humano, demasiado humano, do professor. E ele teve
certeza de que devia proteger, batizar e dar uma companheira a Gedeão.
Foram também decisivas suas leituras de Immanuel
Kant, nas aulas de filosofia no ensino médio. Para o grande filósofo alemão do
século VIII, se você tem consciência do que faz, e o faz usando o bom senso de
homem livre, então você sabe que o melhor para você não deve causar danos aos outros.
Em outras palavras, que a realização do teu desejo não prejudique os outros. E,
dando mostras de seus progressos em termos de sensibilidade e humanidade, o
professor compreendeu que esses outros
não significam apenas os sapiens, mas também os bichos. No caso desta
história, os galináceos.
Hoje o galo não é apenas o dono do terreiro. Às
cinco da madrugada inicia uma sequência de cantos. Além de pontual, exibe um potentíssimo
gogó. Aos poucos seu canto desperta outros galos. O canto de um puxa o canto do outro, dando mostras de que estão sintonizados. Ensinam-nos uma lição: que
sozinhos não bordamos uma nova manhã, a cada manhã.
Mas o reino animal tem suas surpresas e armadilhas.
Gedeão e Gerusa correm perigo. Precisamos avisar o professor de que as raposas
da praia estão à espreita. Por enquanto, com tantos turistas, comida é o que
não falta. Mas quando o verão acabar...
Como na vida tudo se renova, o professor não se
contenta em sentar na varanda dando milho aos galináceos, esperando mais e mais
ovos e realizando a vontade de Deus: “Crescei e multiplicai-vos”. Ele também planeja criar uma associação para
cuidar dos bichos maltratados e abandonados da praia onde vive.
(Teco, o poeta sonhador, em: de bichos & gentes)