Estou longe de ser um Cristo, mas também me cravaram na alma, dia desses, espinhos verbais. Então, para desestressar, resolvo fazer uma faxina no pátio de casa, e acabo sendo ferido por um espinho de verdade! E de cacto!
Isso aconteceu porque eu não ando com os pés no chão. E minha cabeça gosta de se embalar na rede das nuvens.
Nem percebi que, mesmo espinhoso, o cacto também se deixa levar pela (mu)dança das estações, seus galhos (ou folhas?) caem no inverno.
Embora minha vizinha tenha me alertado para o perigo de ser ferido por um espinho de cacto, e de que essa planta não serve para nada além de nos ferir num momento de distração, eu sempre deixo pra lá, pensando nos propósitos elevados que levaram a abrir um buraco e (trans)plantar o cacto ali.
Juntava as folhas do chão, colocava num saco para jogar nos fundos do pátio, e então senti a agulhada: o espinho atravessou a pele de meu dedo indicador da mão esquerda, penetrou pela diagonal, até cutucar o osso.
Maldita distração! Maldita dor!
Agora eu precisava arranjar uma agulha. Desde o curso de artes domésticas, há muito tempo, eu não sei onde foram parar agulhas e botões.
Peço agulha emprestada à minha vizinha.
Dói muito, porque o espinho chegou até o osso. Toda vez que dobro o dedo, uivo de dor.
Mas a dor maior é a das palavras. Como sou canhoto, e o dedo ferido foi o esquerdo, imploro para que ela me ajude. Ao mesmo tempo que cutucava o espinho de cacto, ela dizia: “Espinho de cacto é perigoso! Ele caminha. Se não arrancar pode virar câncer!”.
Comecei a suar frio. Senti aquela dorzinha na nuca, prenúncio de desmaio. Me esforcei para não passar vergonha, porque “homem não chora”, “homem não desmaia por qualquer coisinha”.
Eu precisava fugir das habilidades manuais e verbais da vizinha. Pensava agora em buscar ajuda no pronto-socorro!
Mas tinha receio de ser ridicularizado na sala de espera. Imaginem, um homem desse tamanho buscando ajuda médica para arrancar um espinhozinho!
Então, deito no sofá durante alguns minutos, para pensar no que fazer. Claro! Irei ao posto de saúde do bairro, que fica a algumas quadras de casa...
Pensei: pra que me martirizar, lá as enfermeiras terão os instrumentos adequados para extrair o espinho, vai ser questão de minuto... Com a vantagem de receber alguma atenção e um curativo carinhoso no final.
Quem me atende é um enfermeira bonitinha, que logo vai desinfetando o ferimento, enquanto dispõe sobre uma mesa várias pinças de diversos tamanhos. E pede a uma colega para que traga uma lanterninha para ver melhor o espinho.
Eu duvidei, para mim mesmo, de que aquelas mãos macias fossem conseguir arrancar meu espinho. Mas bastou ela colocar as luvas com seriedade cirúrgica para que minhas dúvidas se dissipassem.
Eu repetia para mim mesmo: “Respire fundo, não demonstre dor, não desmaie, não faça fiasco!”.
A operação foi demorada.
Numa seqüência, a enfermeira usava agulha, limpava, usava pinça, desinfetava... Às vezes eu não conseguia conter meus gemidos. Mas, muito macho, não pedia para que usassem um anestésico.
A enfermeira pedia para que eu respirasse fundo e devagar.
Depois de alguns minutos e do insucesso, ela partiu para o plano B: tentar tirar o espinho usando uma seringa (sem agulha, claro). Tentou com uma pequena, mas não deu certo. Agora era assim: agulha, limpeza, pinça, limpeza, seringa, limpeza...
E então, heureca: a enfermeira busca uma seringa enorme.
Começo a verter suor frio. Perco a noção do tempo. Aquilo parece uma eternidade...
Baixo a guarda e peço um copo d ‘água. Pressinto que as duas riem da minha cara...
Na próxima seqüência, tudo se resolveu. Numa investida impaciente e agressiva com agulha, a moça deu um grito: “Ele saiu, eu vi!”, “Ele saiu, juro que vi!”. E a outra: “Sim, o espinho bateu no meu braço e depois cravou no teto!”.
Radiante de alegria, a enfermeira comenta: “Ganhei o meu dia! Fiz alguém sofrer!”.
E eu - fiasquento como sempre - retruco: “Toda essa operação me pareceu um parto!”.
De novo na tranqüilidade do meu lar, eu penso sobre o que dói mais: os espinhos das palavras mal ditas, ou os espinhos de verdade mal vistos.