segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Doutor, estava rodeado de ceguinhos


Estava rodeado de pessoas, Doutor, todas com óculos escuros, pareciam ceguinhos e falavam ao mesmo tempo, como numa torre de Babel. Falavam, falavam, cada qual apegado à sua verdade. Não sei se isso aconteceu mesmo ou se foi um sonho. Parecia uma reunião, mas não era. Parecia um comício, mas não era. Parecia uma sala cheia de alunos, mas eu não era aluno. Parecia uma sala de aula, mas havia velhos, crianças e jovens, e eu não era um professor. Foi apenas um sonho, Doutor? Tem alguma verdade ou relação com a realidade?
Foi quando subi numa mesa ou caixote e tomei a palavra. Batia na tecla de que a vida não se resume em receitas e despesas, cálculos, etc. etc. Que o que permanece são as amizades, que a nossa memória retém mais são os momentos que envolvem emoções junto com os outros. Como é difícil traduzir em palavras o que senti, Doutor, o que marcou minha alma parece mais intenso do que consigo dizer aqui pro Senhor. Já dizia Fernando Pessoa que o poeta não consegue expressar em palavras o que ele realmente sente.
Mas voltemos ao aglomerado onde tomei a palavra e disse intensamente minhas inverdades. Tudo o que eu precisava naquele momento era contar uma história que empolgasse a multidão de cegos. Contava pra eles o que me vinha, sem ter planejado antes. Era um atleta de um pequeno clube de um pequeno lugar, habitado por pessoas simples. Apenas o presidente do clube era rico e por isso pagava alguns jogadores. O papel do dono era possibilitar os encontros das pessoas, garantir a estrutura para que todos vivessem satisfeitos. A comunidade dava conta do resto, com suas festas, danças, jogos, paqueras, conquistas, perdas e danos e celebrações religiosas. O dinheiro que alguém acumulou era apenas uma ferramenta, um coadjuvante. Então, Doutor, quando a plateia cega estava empolgada e pedia mais e mais histórias, eu comecei a falar das garotas do lugar. Dizia que, mesmo que pudesse namorar com a garota mais bonita, porque era o ídolo do clube, sempre ficava um vazio. Quanto mais garotas por perto, mais eu ansiava por outra que estava em falta. Então lembrei da Sherazade a qual, com suas mil e uma histórias de heróis e vilões, de fadas e monstros, humanizou o rei cheio de ódio. Inventei pra multidão cega, dizendo que foi Sherazade que me narrou as histórias todas, que me conquistou e venceu meu vazio, preencheu o amor que me faltava. Caprichei no repertório e foi incrível, Doutor, com o passar das histórias que contava os óculos iam caindo, e as pessoas deixavam de ser ceguinhas.


(Diário de B. B. Palermo)

sábado, 5 de novembro de 2016

Harmada - João Gilberto Noll


Leitura desta semana.

A narrativa Harmada, publicada em 1993, está entre as mais importantes da literatura brasileira contemporânea. Ela mostra a vida de um ex-ator de sucesso que vaga sem rumo por um país inominado da América Latina, e anseia por chegar à capital, Harmada. O país, claro, é uma paródia do Brasil, sua sociedade e seus costumes. 

Para provar a si mesmo e a quem está lendo o seu estado de "além- liberdade”, o protagonista se esbalda em lama horrivelmente fétida e participa de orgias sexuais ao lado de outros atores. Após andar à deriva, passa a viver num asilo de mendigos. Lá encontra Cris, filha de alguém por quem tivera uma paixão fulgurante e fugaz. Com ela, sonha em retornar a Harmada, mas se vê retido por uma paralisia. Consola-o o projeto de montar um espetáculo de teatro. 

A história constitui uma nítida transmutação por que passou a obra de João Gilberto Noll. Há grandes diferenças, por exemplo, com A Fúria do Corpo (1981), em que ser social oprimido pelas forças coercitivas da sociedade contemporânea almeja uma liberdade total e plena. Já em Harmada o narrador, crendo-se livre dessas tais "pressões externas”, busca um não-sei-quê além da liberdade. Afora isso, e também ao contrário de suas narrativas predecessoras, em que os personagens vagam a esmo, aqui se parece divisar ao longe um norte, uma esperança ainda que utópica, representada por Harmada. 

A obra não se pauta por um movimento linear. Pelo contrário, os fios do enredo se emaranham e abdica-se do uso freqüente do ponto, imprimindo um ritmo mais intenso, quase alucinante, ao texto. Já se aproximou a escrita de Noll dos estados esquizofrênicos. Conforme analisa o jornalista e crítico José Castello, o protagonista se "afoga num pântano lingüístico: como entre os esquizofrênicos, seu espírito está fendido e os pensamentos o asfixiam. Harmada, a capital, vem ampará-lo nessa vagueação”. Outro fator peculiar à prosa de Noll está no fato de a narrativa ostentar elementos que lembram aos leitores visões cinematográficas no desenrolar das tramas, numa descrição vívida de sensações, cores, sentimentos e sons. 

João Gilberto Noll nasceu em Porto Alegre, em 1946. Em 1967, entrou para o curso de letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Dois anos depois, abandonou o curso e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou para o jornal Última Hora. Em 1970, publicou seu primeiro conto, Roda de Fogo, numa coletânea elaborada pelo escritor e poeta gaúcho Carlos José Appel. Mudou-se para São Paulo e começou a trabalhar como revisor. Em 1975, de volta ao Rio, começou a lecionar na Pontifícia Universidade Católica, no curso de comunicação social. 

Em 1980, um ano depois de concluir seu curso, publicou seu primeiro livro, O Cego e a Dançarina. Lançou ainda, entre outros, Hotel Atlântico (1989), O Quieto Animal da Esquina (1991), Berkeley em Bellagio (2002) e Lorde (2004). Obteve três prêmios Jabuti. Suas obras, muitas das quais adaptadas para o cinema e o teatro, foram traduzidas e estudadas nos Estados Unidos e na Inglaterra.


http://educarparacrescer.abril.com.br/leitura/harmada-403577.shtml

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Doutor, é hora de recomeçar


Não sei mais se sou desajeitado ou se as roupas encolheram. Meu esforço é hercúleo pra colocar o moletom. É como se fosse vestir os trapos de todo mundo. Sou pego de surpresa, como se fosse visita que não aguardava. Agora estou nu e a insegurança machuca as maças do rosto. Não consigo disfarçar. Sou criança inocente. Não sei se tenho amigos ou apenas conhecidos, Doutor. Eles cresceram muito enquanto fiquei pequeno. No final da festa eles são gigantes que se agacham pra me abraçar e beijar. Quando vou crescer, quando vou me conhecer, quando vou me encontrar?
As garotas que eu quis me olham indiferentes. Talvez seja hora de traçar novo rumo, Doutor. Sim. Hoje despertei e vi muito desejo no ar. Quando acordei havia uma certeza impregnando meu quarto: chega de passar de livro em livro como ave migratória. Basta de colocar nas mãos dos outros o meu destino. Basta de fazer check-in e mostrar o percurso diário de bar em bar. Se a inspiração me falta, vou me autoflagelar lavando a louça com a água a cem graus. Quando as mãos arderem voltarei à vida. Como um colecionador de borboletas vou correr atrás de alguma ideia. Mesmo que esta não passe de beija-flor que fica passando passando e logo desaparece pra se deleitar noutro jardim.


 (Diário de B. B. Palermo)

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Pergunte ao pó - John Fante


Descobri "Pergunte ao pó" lendo Charles Bukowski, o qual escreve o prefácio deste belo livro. A seguir frases tiradas de "Pergunte ao pó".


Aquelas garotas maravilhosas, tão feliz quando você agia como um cavalheiro, e tudo aquilo simplesmente para tocar nelas e carregar a memória para meu quarto, onde o pó se acumulava sobre minha máquina de escrever e Pedro, o camundongo, se sentava no seu buraco, os olhos negros me observando através daquele tempo de sonho e divagação.

Certo, uma prece: por motivos sentimentais. Deus Todo-Poderoso, lamento ser agora um ateu, mas o Senhor leu Nietzsche? Ah, que livro!

Quando voltei ao meu quarto, joguei-me na cama e chorei um choro sentido. Deixei que as lágrimas corressem de cada parte de mim, e quando não podia mais chorar, me senti bem de novo. Sentia-me verdadeiro e limpo.

Ficamos deitados um longo tempo e eu estava preocupado, com medo e sem paixão. Algo como uma flor cinzenta cresceu entre nós, um pensamento que tomou forma e falou do abismo que nos separava. Eu não sabia o que era. Senti que ela esperava.

O amor não era tudo. As mulheres não eram tudo. Um escritor precisa conservar suas energias.

Não conseguia falar mais. Ele havia arrancado meu coração. Porcaria! Todas aquelas nuanças, aquele diálogo soberbo, aquele lirismo brilhante – e chamar aquilo de porcaria. Melhor fechar os ouvidos e ir para algum lugar onde nenhuma palavra fosse pronunciada. Porcaria!

Fui até o final do corredor, até o patamar da escada de incêndio, e ali me soltei, chorando e incapaz de me conter, porque Deus era um canalha tão sujo, um pulha desprezível, é o que Ele era por fazer aquilo com aquela mulher. Desça dos céus, seu Deus, venha até que que vou socar seu rosto por toda a cidade de Los Angeles, seu moleque miserável e imperdoável.

Fiquei sentado com os dentes cerrados, olhando para um quarto como dez milhões de quartos da Califórnia, um pouco de madeira aqui, um pouco de pano ali, os móveis com teias de aranha no teto e poeira nos cantos, seu quarto e o quarto de todo mundo, Los Angeles, Long Beach, San Diego, algumas placas de gesso e estuque para manter o sol do lado de fora.

O mundo era pó e ao pó voltaria.

Tudo o que era bom em mim me emocionou naquele momento, tudo o que eu esperava do profundo e obscuro significado da minha existência. Aqui estava a placidez interminável e muda da natureza, indiferente à grande cidade; aqui estava o deserto abaixo dessas ruas, ao redor dessas ruas, esperando que a cidade morresse para cobri-la com a areia eterna uma vez mais.

Tornava-me um estranho dentro de mim, era como todas aquelas noites calmas e os altos eucaliptos, as estrelas do deserto, aquela terra e aquele céu, aquele nevoeiro lá fora, e eu viera para cá com nenhum propósito exceto o de ser um mero escritor, ganhar dinheiro, ser reconhecido e toda aquela baboseira. Ela era muito melhor do que eu, tã mais honesta que fiquei enojado de mim mesmo e não podia enfrentar seus olhos cálidos.

Não fiz perguntas. Tudo o que eu queria saber estava escrito em frases torturadas através da desolação do seu rosto.

Saí para uma caminhada pelas ruas. Meus Deus, aqui estava eu de novo, perambulando pela cidade. Olhei os rostos ao meu redor e sabia que o meu era como o deles. Rostos drenados de sangue, rostos tensos, preocupados, perdidos. Rostos como flores arrancadas de suas raízes e enfiadas num vaso bonito, as cores se esvaindo rapidamente. Eu tinha que sair daquela cidade.
Edição: Pergunte ao Pó, Editora José Olympio, 2015

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Doutor, para mudarmos nosso olhar precisamos ser crianças


O que acontece com a gente se parece com o que acontece com os outros, disse Bukowski. Eu acrescentaria, Doutor: para que tudo o que acontece ao redor deixe de ser imagem e repetição do mesmo, é necessário reaprender a olhar. Sábado de manhã caminhava numa avenida e cruzei por uma jovem garota negra com duas crianças, uma de uns sete anos e outra no colo da mãe, com uns três, quatro anos. A que estava no colo da mãe parecia ter um olhar triste, e ficou me encarando, e isso me chocou. Enquanto a mãe seguia em frente, a criança virou o pescoço para ficar mais tempo me observando. O que chamou sua atenção? Doutor, é estranho como uma cena corriqueira possa ter me impressionado. Minha alma neste dia não foi mais a mesma. Fiquei pensando, após aquela cena: a BELEZA (Deus?) não combina com coisas espalhafatosas, pirotécnicas. Agora necessito contar ao Senhor aquela vivência, pois creio que pouco adianta sentir algo belo, que me deixou triste, e não compartilhar com os outros. É por isso que escrevo. Quero apanhar e eternizar o que é passageiro. Aquele olhar tão cheio de mistério, talvez impossível de decifrar, sintetiza os olhares de todas as crianças, de qualquer cantinho do planeta. Fiquei pensando, Doutor, o que posso carregar para a eternidade, o que devo despir e deixar pelo caminho nesta vida breve? Terei uma alma? Sinto isso nas pessoas e coisas que me rodeiam aqui e agora. Sim, naquele olhar da criança eu vi sua alma! No seu olhar refletiu-se minha infância, de brinquedos, árvores, córregos, o canto dos pássaros, a música que sai da vida dos animais. Eu vivi aquele olhar! E esse olhar me fez pensar sobre o quanto sou arrogante, pretensioso, acorrentado a coisas fugazes. E o mais incrível é que, ao refletir sobre isso, me senti mais leve.
O Senhor pode pensar que exagero quando olho com tal intensidade ao meu redor. Mas não dizem que os olhos são o espelho da alma? Rubem Alves afirma que, “se os olhos forem bons, o mundo será belo. Se os olhos forem maus, o mundo será sinistro”. Complementaria dizendo que a demarcação entre paraíso e inferno começa de várias fraquezas humanas, e uma delas é a inveja. Inveja inveja inveja... e esta nasce de um jeito (torto?) de olhar. Não será uma das razões para o mundo andar tão mal? Para mim, a inveja e outros sentimentos chamados de “pecados capitais” ganham vida quando deixamos de ser crianças e entramos no mundo adulto. Época em que, também, distorcemos, envenenamos e engessamos nosso olhar.
(Diário de B. B. Palermo)


quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Um sonho de simplicidade - Rubem Braga


Então, de repente, no meio dessa desarrumação feroz da vida urbana, dá na gente um sonho de simplicidade. Será um sonho vão? Detenho-me um instante, entre duas providências a tomar, para me fazer essa pergunta. Por que fumar tantos cigarros? Eles não me dão prazer algum; apenas me fazem falta. São uma necessidade que inventei. Por que beber uísque, por que procurar a voz de mulher na penumbra ou amigos no bar para dizer coisas vãs, brilhar um pouco, saber intrigas?
Uma vez, entrando numa loja para comprar uma gravata, tive de repente um ataque de pudor, me surpreendendo assim, a escolher um pano colorido para amarrar ao pescoço.
A vida poderia ser mais simples. Precisamos de uma casa, comida, uma simples mulher, que mais? Que se possa andar limpo e não ter fome, nem sede, nem frio. Para que beber tanta coisa gelada? Antes eu tomava água fresca da talha, e a água era boa. E quando precisava de um pouco de evasão, meu trago de cachaça.
Que restaurante ou boate me deu o prazer que tive na choupana daquele velho caboclo no Acre? A gente tinha ido pescar no rio, de noite. Puxamos a rede afundando os pés na lama, na noite escura, e isso era bom. Quando ficamos bem cansados, meio molhados, com frio, subimos a barranca, no meio do mato, e chagamos à choça de um velho seringueiro. Ele acendeu um fogo, esquentamos um pouco junto do fogo, depois me deitei numa grande rede branca – foi um carinho ao longo de todos os músculos cansados. E então ele me deu um pedaço de peixe moqueado e meia caneca de cachaça. Que prazer em comer aquele peixe, que calor bom em tomar aquela cachaça e ficar algum tempo a conversar, entre grilos e vozes distantes de animais noturnos.
Seria possível deixar essa eterna inquietação das madrugadas urbanas, inaugurar de repente uma vida de acordar bem cedo? Outro dia vi uma linda mulher, e senti um entusiasmo grande, uma vontade de conhecer mais aquela bela estrangeira: conversamos muito, essa primeira conversa longa em que a gente vai jogando um baralho meio marcado, e anda devagar, como a patrulha que faz um reconhecimento. Mas por que, para que, essa eterna curiosidade, essa fome de outros corpos e outras almas?
Mas para instaurar uma vida mais simples e sábia, então seria preciso ganhar a vida de outro jeito, não assim, nesse comércio de pequenas pilhas de palavras, esse ofício absurdo e vão de dizer coisas, dizer coisas… Seria preciso fazer algo de sólido e de singelo; tirar areia do rio, cortar lenha, lavrar a terra, algo de útil e concreto, que me fatigasse o corpo, mas deixasse a alma sossegada e limpa.
Todo mundo, com certeza, tem de repente um sonho assim. É apenas um instante. O telefone toca. Um momento! Tiramos um lápis do bolso para tomar nota de um nome, um número… Para que tomar nota? Não precisamos tomar nota de nada, precisamos apenas viver – sem nome, nem número, fortes, doces, distraídos, bons, como os bois, as mangueiras e o ribeirão.
Março de 1953

terça-feira, 11 de outubro de 2016

As flores de plástico


Na sala de espera, as flores de plástico eternizam. Sem a ansiedade do corpo que aguarda exames e palpites. Apenas existem. Livres como toda matéria que, ao passar do tempo, resiste. Sem dores, desculpas e culpas. Sem noção de finito e infinito. Pena não saberem da perenidade da vida. É uma pena. Seriam sensíveis, pois perceberiam o quanto a vida madura é falível e a angústia é certa com a morte a espreitar.

(Tiradas do Teco, o poeta sonhador) 

Dicas para ter uma vida interessante


1 - Comprar equipamentos de ginástica, de massagens, estocar chás, remédios para aumentar a disposição diante de uma vida agitada. Inscrever-se em academias, comprar pacotes de TV, de filmes, de esportes. Matricular-se em cursinhos de línguas, comprar pacotes de viagens até estourar o cartão de crédito e o tempo livre.
2 - Estressar-se com os que pensam diferente de você, que seguem outra ideologia ou que simplesmente não ligam para ideologias. Implicar com tudo o que nos rodeia, por sugarem nossas forças através desse bombardeio de informações.
3 - Pensar durante todo o tempo a respeito das dificuldades que o teu amor tem em ser igualzinho a você. Dedicar horas tentando ajustá-lo à tua visão de mundo. A cada frustração, sofrer, sofrer e perguntar por quê? Por quê?
4 -  Dar a mínima para artes, literatura, poesia e filosofia. Acreditar piamente que e o sentido de tudo está nos negócios, e que sem os negócios nada de importante temos para falar, ouvir, curtir.
5 - Evitar tudo o que envolva saudade. Coisas da infância e adolescência, brinquedos e colegas, paixões e namoros. Deletar da memória histórias lidas ou ouvidas, de contos de heróis e vilões, mocinhos e bandidos. Bloquear as lembranças de namoros ou quase namoros na adolescência, alegres ou sofridos. Evitar o sentimento do que disse Camões: "A grande dor das coisas que passaram".
6 - Fugir das coisas simples, das pessoas simples, da vida simples. Fazer do trabalho uma batalha diária para acumular dinheiro e se rodear de objetos que impressionem todo mundo.
7 - Fazer muito pouco ou até o contrário do que foi dito aqui.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Alunos do IFF de Santo Augusto/RS




Para o esclarecimento da população, nós da organização estudantil do Instituto Federal Farroupilha vamos expor de maneira simples os motivos da mobilização que estamos promovendo, para que todos entendam. Nossa mobilização é contra medidas tomadas em relação ao futuro da educação, que nos últimos meses estão se provando um retrocesso de cerca de 52 anos. Em especial, protestamos contra a PEC 241, que será votada no dia 10/10/2016 na Câmara dos Deputados Federais, que tem como objetivo estagnar investimentos em saúde, educação e outras áreas fundamentais. Quando falamos que lutamos por um ensino público e de qualidade, não estamos dizendo que o ensino do IF é desqualificado ou ainda reclamando de nossos professores. Pelo contrário, por estudarmos em uma instituição de qualidade acadêmica e com ótimos professores, que temos visão para lutar não apenas pelo que nos afeta diretamente, mas também por ações que prejudicam a todos os cidadãos, pois somos impulsionados a pensar e nos colocar no logar do outro. E sim, como estudantes não podemos aceitar que a educação e outras áreas fundamentais paguem a conta de uma crise que está evoluindo a décadas. Acreditamos que há medidas que possam ser tomadas que não afetam a população brasileira. Há lugares onde é possível cortar custos e onde ninguém comenta em cortar... Nós estudantes somos representantes de nossas famílias, amigos e povo brasileiro, independente de partido político e base ideológica. Esclarecendo, por fim, que a organização e iniciativa de realizar a manifestação partiu exclusivamente dos ALUNOS do campus. Os professores e a direção foram avisados de nossa mobilização e se mostraram favoráveis ao ato. Os mesmos não interferiram no desenvolvimento e tomada de decisões. As decisões foram tomadas por uma organização estudantil formada por ALUNOS, que se sentiram tocados pela atual situação do país. Portanto, a mobilização e quaisquer prováveis repercussões são de total responsabilidade dos ALUNOS.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Um conto mínimo - Heloisa Seixas


Há alguns anos, um avião japonês sofreu uma pane a dez mil metros de altura. Todo o sistema entrou em curto e os motores simplesmente pararam de funcionar. O avião começou a cair. Mas não se descontrolou, não deu reviravoltas no ar, nem se partiu em pedaços ou pegou fogo. E isso foi o mais terrível. Simplesmente começou a cair – lentamente.
Descia quase flanando, com suavidade, embora mergulhasse de forma inexorável rumo ao choque com o chão. E, enquanto isso, todos a bordo viviam, durante vários minutos, a angústia da morte próxima. Se não me engano, foram vinte minutos. Vinte minutos de espera até a explosão final.
O que faziam, o que será que pensavam? Alguns com certeza entraram em pânico, outros, paralisados de medo, na certa rezaram. Outros, ainda, bêbados de terror, devem ter falado alto e até cantado.
Mas depois, quando tudo estava terminado, uma surpresa: as equipes de resgate encontraram, entre os destroços calcinados, pedaços de cadernetas e até guardanapos com anotações de vários passageiros, que tentaram registrar aqueles minutos terríveis ou deixar uma última mensagem, como se fossem náufragos, condenados e sem esperança, numa ilha deserta.
Na época, li com arrepio o noticiário sobre o assunto, e até hoje sinto um frio na espinha quando penso no que podem ter sido aqueles momentos finais. Lembro-me também que o impulso daquelas pessoas – de, diante da morte, procurar deixar alguma coisa escrita – foi comparado ao dos artistas da humanidade: escritores, pintores, músicos, todos os que tentam, através da arte, deixar marcas de sua passagem sobre a terra, na esperança, quase sempre vã, de driblar a finitude da vida.
É a pura verdade. Somos todos – não só artistas, mas todos nós – como aqueles japoneses desesperados. Vivemos tentando deixar nossas pegadas, apressados entre o início e o fim da viagem, sem saber ao certo o que acontecerá. E a vida passa num sopro, uma rajada, não dura mais do que alguns minutos diante do arco da eternidade.
A vida é um conto mínimo.
(Do livro Contos mínimos. Editora Best Seller)

Myrna pergunta: sua alma é imortal? - Nelson Rodrigues

O texto sugere que Nelson Rodrigues acredita na alma imortal. Assim sendo, levaremos para a "nova" vida nossos sentimentos essenciais e, sobretudo, um sentimento essencialíssimo, como é o amoroso.
para Nelson Rodrigues, nossa personalidade, nosso "eu" único e inconfundível, são os nossos sentimentos. Se por algum motivo perdêssemos os nossos sentimentos, seríamos como um Frankenstein. Disso ele conclui que, "na hipótese de ser a alma imortal, são imortais, também, certos sentimentos".
Porém, diz ele que "na terra sentimos coisas que não interessam, que não exprimem o nosso 'eu' profundo e eterno, coisas, enfim, que podemos abandonar (...). É justo, assim, que cheguemos à outra 'vida' despojados dessas coisas de superfície. Mas no amor, não (...). O homem que, na passagem da vida para a morte, perdesse o amor, teria perdido, também, sua alma".
Até que ponto Nelson Rodrigues fala "sério" ou está blefando, já que Myrna é sua criação, sua ficção, seu pseudônimo?

(Do livro Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo - consultório sentimental. Companhia das letras)

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Nuvens - Álvaro de Campos



No dia triste o meu coração mais triste que o dia... 
Obrigações morais e civis? 
Complexidade de deveres, de consequências? 
Não, nada... 
O dia triste, a pouca vontade para tudo... 
Nada... 

Outros viajam (também viajei), outros estão ao sol 
(Também estive ao sol, ou supus que estive), 
Todos têm razão, ou vida, ou ignorância simétrica, 
Vaidade, alegria e sociabilidade, 
E emigram para voltar, ou para não voltar, 
Em navios que os transportam simplesmente. 
Não sentem o que há de morte em toda a partida, 
De mistério em toda a chegada, 
De horrível em todo o novo... 

Não sentem: por isso são deputados e financeiros, 
Dançam e são empregados no comércio, 
Vão a todos os teatros e conhecem gente... 
Não sentem: para que haveriam de sentir? 
Gado vestido dos currais dos Deuses, 
Deixá-lo passar engrinaldado para o sacrifício 
Sob o sol, alacre, vivo, contente de sentir-se... 
Deixai-o passar, mas ai, vou com ele sem grinalda 
Para o mesmo destino! 
Vou com ele sem o sol que sinto, sem a vida que tenho, 
Vou com ele sem desconhecer... 

No dia triste o meu coração mais triste que o dia... 
No dia triste todos os dias... 
No dia tão triste... 

Álvaro de Campos, in "Poemas" 
(Heterônomo de Fernando Pessoa) 

A poesia já esteve, ou ainda está na moda?



"Nos anos 70, no Brasil, a poesia estava na moda, como disse Mário Quintana. 
Nunca se viu tanta gente poetando. Ou nunca se viu tanta gente mostrando, já que fazer poemas é vício secreto próprio da adolescência, nas classes alfabetizadas. Quem, aos dezessete anos, não tinha um caderno com seus pensamentos mais recônditos e preciosos, o incomunicável caderno de autoconfidências e dos impulsos inconfessáveis?
Não duvido que é aí que a literatura começa.
Mas não é aí que ela acaba.
Cedo, lendo a gente descobre, lá fora existe, não apenas um mundo mas também uma literatura, um universo feito de palavras, frases perfeitas, enredos inesquecíveis, versos definitivos, 'performances verbais' tão vivas quanto a própria vida, e que sobrevivem à própria morte do autor.
Se nosso negócio é palavra, é nesse mar que a gente tem que entrar" (Paulo Leminski).

terça-feira, 4 de outubro de 2016

O homem das palavras - Affonso Romano de Sant'Anna


De Aurélio Buarque de Holanda, que nos deixou esta semana, guardo algumas lembranças. Todas alegres.

Uma vez, por exemplo, estávamos num congresso de escritores em Brasília. Assentados no auditório ouvíamos as doutas palavras que eram ditas no palco onde alguém proclamava as virtudes de um texto literário. A rigor, o texto em questão era a Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, que até dez anos atrás todos os brasileiros sabiam de cor, não exatamente por causa da ditadura mais recente, mas porque era texto que aparecia em todas as antologias escolares. 

Quem tem mais de trinta anos e estudou português e não a famigerada comunicação e expressão se lembra dos primeiros versos:

Minha terra tem palmeiras

Onde canta o sabiá,

As aves, que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

Pois bem. Lá ia o expositor à mesa ressaltando que a grande força deste poema estava no fato de que era um texto sem qualquer adjetivo. Disse isto, conferindo tal observação ao grande Ayres da Matta Machado.

Mal se pronunciou esta frase, ouviu-se do fundo do auditório um vozeirão contestando e reclamando:

– Perdão, mas esta ideia é minha.

A plateia voltou-se estupefata. Era Mestre Aurélio, que levantando-se da poltrona e encaminhando-se desassombradamente para o palco continuou falando:

– Sim, esta ideia é minha. Tive poucas, não sei se terei outras e tenho que defendê-las.

Isto posto assumiu seu imprevisto lugar à cabeceira das ideias e fez um brilhante aparte que virou uma conferência.

Outra estorinha sobre Aurélio já é clássica. Tendo que ir à Academia, uniformizado com espada e chapéu, ficou ali na Glória aguardando táxi, até que um parou. O motorista fascinado com a sua indumentária, olhando pelo retrovisor, de repente indagou:

– Ainda que mal pergunte: sois algum reis?

A construção da frase era estranha, mas o motorista estava jogando até com a possibilidade de "folia-de-reis" tendo em vista a semelhança entre a fantasia dos acadêmicos e a do folclore. Aurélio explicou que não, falou da Academia. O chofer não entendeu muito bem. Mas quando Aurélio lhe pediu para se apressar, porque estava atrasado, o outro atalhou confiante: 

– Pode deixar, doutor, que do jeito que o senhor está vestido, nada começa antes do senhor chegar.

05/01/89

(SANT'ANNA, Affonso Romano de. Porta de colégio e outras crônicas. 2. ed. São Paulo: Ática, 1997. p. 53-56. Coleção Para Gostar de Ler. 16 Vol.)

sábado, 1 de outubro de 2016

Ah, o amor!


Parece que o amor tem uma energia que flui do universo, como a música de Boccherini. Deixemos que verta ao natural, em vez de prendê-lo num campo de concentração, onde todos estamos vigiados e recebendo uma dose mínima de afeto.
(Diário de B. B. Palermo)


Memória de minhas putas tristes - Gabriel García Marquez


Nunca me deitei com mulher alguma sem pagar, e as poucas que não eram do ofício convenci pela razão ou pela força que recebessem o dinheiro nem que fosse para jogar no lixo. Lá pelos meus vinte anos comecei a fazer um registro com o nome, a idade, o lugar, e um breve recordatório das circunstâncias e do estilo. Até os cinqüenta anos eram quinhentas e catorze mulheres com as quais eu havia estado pelo menos uma vez. Interrompi a lista quando o corpo já não dava mais para tantas e podia continuar as contas sem precisar de papel. Tinha minha ética própria. Nunca participei em farras de grupo nem em contubérnios públicos, nem compartilhei segredos nem contei uma só aventura do corpo ou da alma, pois desde jovem me dei conta de que nenhuma é impune.

(Do livro Memória de minhas putas tristes. Editora Record)

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

O amor, ah o amor


O amor não se deixa aprisionar, por isso é uma peça estranha no  jogo da vida!

(Diário de B. B. Palermo)

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Algo mais sobre o amor


O amor é uma promessa que não se cumpre e só por o ignorarmos acreditamos nas suas juras, entregamo-nos a elas, como se do sentimento ou da vida se pudesse dar ou ter garantias. Indissociável do ódio, o amor o é ainda de uma outra paixão humana, a paixão tão humana da ignorância.

(Betty Milan. O que é o amor).


Visão machista do amor?

"Lá pras bandas onde eu nasci
já se falavo do amô:
todas as boca dizia
que era farso e matadô
"nas marvadage do Amô
não há cabra que não caia
quando o diabo tira a roupa,
tira o chifre e tira o rabo
pra se vestir c'uma saia"
(Catulo da Paixão Cearense)


Carpinejar


A loucura exige disciplina para não ser vista.

(Do livro Caixa de sapatos. Companhia das letras)

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Doutor, a Ninfa disse que sou sensitivo


Quando estou mais pra lá do que pra cá, Doutor, parece que nasce um cara sensitivo.  Isso me assusta, e então largo da bebida por alguns dias, faço meditação e bebo litros e litros de água, até me reencontrar (não, não, Doutor, eu não quis dizer “reencarnar”). Sempre desconfio da veracidade das informações de muitos sites que pesquiso no Google. Até que possuo algumas características de sensitividade, mas não passam de palpites, como no caso do “mistério” e do que chamam de “sobrenatural”.
Duas semanas atrás aconteceu algo que me deixou mais perplexo do que assustado, daí desconfiar dessa estranha sensibilidade. Uma amiga da Ninfa dos lindos olhos suicidou-se. O fato me chocou, não por conhecê-la pessoalmente, mas por compartilhar as dores e o luto da Ninfa. A garota trabalhava num escritório que fica na avenida que atravessa a cidade de norte a sul. Soube da tragédia através de uma postagem que a Ninfa fez no facebook. Era final de tarde e a notícia baqueou meu peito, tanto que providenciei papel e caneta e corri até o bar mais próximo. Embora não tivesse bebido e usado drogas, minhas mãos tremiam. Escrevi um poema que dizia mais ou menos assim: 
Não sei quem está numa melhor. Eu aqui, me entorpecendo de cerveja, ou ela dormindo a algumas horas no caixão, pra nunca mais acordar. Eu, com medos e incertezas, ela despedindo-se do contato com as manhãs, noites de insônia e lua cheia./ Os comerciais de TV mostram jovens brancos, alegres, sarados e saudáveis. A felicidade, na tela, se expande com sorriso fácil. / Pouco sei de suas vidas, se visitam farmácias, se perdem o sono de madrugada. Não levo a sério o mundo que me vendem, até porque as coisas que me pedem pra comprar, como entorpecentes, não garantem mais do que meia hora de euforia. / A garota morreu.  Tantas vezes passei em frente ao seu trabalho com a esperança de ser notado por ela, jogando na sorte de que seu olhar me encontrasse.
nunca saquei (como poderia adivinhar?) que seu sorriso e atenção não resumem a essência de uma pessoa, nem tudo que se agita no seu mundo interior.  / Agora sei que existe muito mais vida nos silêncios de uma princesa. / Sei que abrir mão da vida talvez não seja um ato de coragem. Mas estou apegado às verdades do senso comum. É mais fácil rastejar na trilha segura do cotidiano do que pensar nos fios tênues que nos sustentam sobre o abismo.  / E acreditamos que a angústia, a tristeza e os gestos desesperados só acontecem com os outros. / Muitos me convidam para viajar, conhecer outros povos, estudar outras línguas. Estou convencido de que não devo estacionar neste lugar. / Mas hoje, ao saber de sua partida, acendeu uma luz: o mais importante, mais do que tudo, é buscar conhecer meu mundo interior”
.


Doutor, houve muitos comentários e informações exageradas a respeito do fato. Bem, vou contar o que me deixou perplexo. Semana passada, depois que o primeiro bar fechou, em torno de uma da madrugada, eu e alguns amigos fomos beber e jogar sinuca num desses points que funcionam a noite toda. Acontece que eu tinha bebido muito e, lá pelas quatro da manhã, senti uma necessidade de voltar para casa, como se fosse um alerta ou algum “sinal de segurança”. Fiz de conta que ia ao banheiro e me aventurei sozinho pela avenida deserta rumo de casa. Doutor, a garota enforcou-se numa construção abandonada ao lado do prédio onde trabalhava. Ao passar por ali ouvi um estouro, como se fosse uma bomba. Apavorado, perguntei a mim mesmo “caralho, o que foi isso?”, “de onde saiu esse estrondo?”. Apressei o passo e me dei conta de que a embriaguez havia passado. Me perguntava: “Será que existem mesmo espíritos?” Contei o episódio à Ninfa dos lindos olhos e ela disse CA-TE-GO-RI-CA-MEN-TE que sou sensitivo.
Doutor, será que me impressiono porque não sou mais garoto? Desde que fiz algumas leituras, principalmente de Nietzsche e Sartre, me considerava um niilista. Isso, se o cara morreu, tudo acabou. Agora que me aproximo do limbo, que já estou me acostumando com a ideia de ser um jovem velho, bêbado e escroto, vejo meu coração derreter como manteiga. Ou isso tem relação com a minha facilidade em idealizar o amor e captar as emoções, que sempre andam “à flor da pele”? Hum... voltou a lembrança de minha infância e adolescência e os mandamentos da igreja católica. Caramba, Doutor, por que essa tábua de valores, como se fosse a cruz que Cristo carregou, me acompanha até hoje? Ou quem sabe pago, com altos juros, os diversos pecados que cometi com namoradas quando tinha uns vinte anos de idade? Não, Doutor, não chegam a ser fantasmas de arrepiar os pelos. Creio que não valeria à pena contar. Tudo bem, vou narrar pro senhor assim bem por alto. Perto da casa onde nasci e cresci, um vilarejo de famílias trabalhadoras, dóceis e obedientes, há uma gruta que faz companhia a uma linda cachoeira. A paróquia da cidade, muito católica, nomeou pra essa gruta uma Santa Padroeira – a Santa Bárbara. Todas as vezes que minhas namoradas vinham visitar meus familiares eu as levava para conhecerem a gruta, um dos poucos lugares turísticos da região. Além do encantamento com a beleza do lugar, e após contar um pouco a história daquela gruta, inclusive algumas lendas quando a região era habitada por indígenas, eu me esforçava para que rolasse um clima sensual. Está bem, vou abrir o jogo, Doutor: transávamos diante de uma legião de estátuas, santas e santos, de velas acesas por pagadores de promessas, e sob o olhar sereno e complacente da santa padroeira. Quando eu levava as namoradas para conhecerem a gruta realizava tudo quanto pedi na adolescência, após descobrir as maravilhas que uma pica proporciona. Foram dezenas de novenas e pedidos realizados diante da santa. Sim, os adultos, submissos e crentes, pediam para que chovesse depois de seca, ou pediam uma farta colheita, ou boas vendas no comércio. Meus pedidos eram menos grandiosos, orbitavam em torno de genitálias, bundas e peitos. Me diz, Doutor, qual o pecado de se viver a juventude “como se não houvesse amanhã”, e aproveitar o dia (carpe diem) como se fossemos (e éramos) uns punheteiros meio “poetas mortos”?


(Diário de B. B. Palermo)

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Precisamos falar sobre o voo do pavão


Você quer falar sobre pássaros. É que você ficou admirado com o voo do pavão.
Você quer falar sobre carros. Você quer falar de negócios imobiliários. Mas a conversa se distrai e desliza para a notícia do site, de que nossa correta cidade viveu mais um suicídio.
Não é notícia qualquer, como o acidente do carro ou da motocicleta, ou do bandido preso. Mesmo banalizada, não é a notícia de todo setembro, da Chama Crioula acesa, do aumento da cesta básica, da ameaça de geada para o nosso lindo e frágil trigo.
Você quer falar de pássaros. Não do voo, mas sim da troca de plumagem e das lições que podemos tirar de um recomeço.
Você quer falar do olhar daquele menino ou da pré-adolescente. Quando você olha com mais cuidado, além da cor, há alegria, tristeza ou algo indiferente. Não esqueça que ágeis bailarinas fazem suas performances nas retinas.
Você quer falar do ciclista que aproveita o início do crepúsculo depois do dia de trabalho. Da maratona do casal que a cada primavera decide entrar em forma.
Você pode falar dos pacotes que planeja para o final do ano e o verão.
Mais do que tudo, fale, fale, para ter mais leveza do que o voo do pavão.
Fale, fale muito, até pra soltar os nós que te prendem a garganta.
Se, além de falar, aquilo de que falas fizer eco em teus ouvidos, a ponto de te dar alguns sustos e a bússola apontar um recomeço, perceberás então que és mais do que papagaio, superarás a inteligência para viver sentimentos.
Você pode falar de como foi importante a atenção daquela garota. Se para ela não custou nada, para você abriram-se clareiras emocionais. Mesmo que tua palavra te pareceu ridícula, não se dissipou com o vento norte, que anuncia ventanias e trovões.
Fale, fale em diferentes lugares, para além dos teatros da vida onde usamos coleira e estamos amarrados porque dizem que “é assim que deve ser”.
Talvez o pavão seja lindo não porque possa voar, mas por ter uma bela plumagem. Talvez ele nos fale com as cores que exibe e não com o seu voo. Precisamos ficar atentos quando o pavão silencia e decide voar, pois ele pode despencar em direção ao abismo.
Você precisa falar. Mas não esqueça de que, em certos dias de ventos fortes, as pessoas também precisam de teus ouvidos.


(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

sábado, 10 de setembro de 2016

Ela não sabe a força que tem


quando ela aparece com aquele sorriso 
de jeans e floresta de cabelos lambidos 
pra cima e pra baixo com fone de ouvidos 
seu olhar meloso parece dizer 
que o crepúsculo hoje vai se atrasar 
eu fico bobo eu fico paralisado 
não olho não penso não vejo não sinto 
o que rola aqui do meu lado 
basta o seu olhar distraído 
pra tudo parar a viagem 
o trabalho o relógio a novela 
o apito da fábrica e do trem 
e até os sabiás na primavera 
apenas ela é quem surge e vem 
ela linda e adolescente 
e que ainda não sabe
ainda não sabe a força que tem

(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

domingo, 4 de setembro de 2016

Doutor, eu devia ter dado flores a ela


- Enfrentei o medo de conhecer a garota. Convidei-a para tomar um café numa padaria do centro da cidade. Bem, receava sentir de novo a indiferença. É assim, Doutor, você mostra interesse, manda recado, porém a garota não diz nada. Será que as mulheres desejam que você rasteje, implore? Sei, Doutor, que o jogo é simples, primeiro precisamos cativar, seduzir. Tenho percebido certa esterilidade nas relações, quando a pessoa, de cara, desiste de conhecer alguém, e colher os frutos, doces ou amargos. Será que isso acontece apenas comigo? Doutor, tenho lido sobre “fórmulas mágicas” para conquistar uma mulher. No Google há muito conteúdo (será que tem conteúdo?) falando sobre isso, de que, veja só a expressão, “as mulheres se tornam presas fáceis pela emoção”. Até parece, Doutor, que a magia da conquista se resume numa caça!
- Hum...
- Convidei-a para conversar sobre nossas leituras. Aguardava com expectativa a chegada de um livro que encomendei pela internet, de um autor que até hoje nada li. Chama-se Knut Hamsun, e o título do livro é “A fome”. Como tomei contato com este autor? Em seu livro, “Mulheres”, Charles Bukowski diz que Knut foi o maior escritor do mundo. Enquanto aguardávamos o café, por baixo da mesa a mãos tremiam e suavam frio, os pés estavam incontroláveis. Tentava desviar do seu olhar, mas não conseguia. Não saberia dizer se os seus cabelos, pretos e lisos, tinham pintura ou eram naturais. Mas isso não importava. Reparava nos seus brincos e já me distraia com seus olhos. Doutor, isso é o ETERNO, este instante, momento em que tudo para, os carros na rua ali em frente, o noticiário da TV, a garçonete que fica como estátua, ao trazer o café. Quem prega que a alma e os valores são eternos está sendo um grande cínico! Dane-se a vida eterna! O momento em que estive diante dela é que se eternizou!
- Aham...
Então ela começou a falar... Foi tão bonito! Seus lábios em câmera lenta, a música de sua voz... Tudo me enfeitiçava. As mãos saíram do esconderijo, debaixo da mesa, e não foi apenas para sacudir o sachê com açúcar, Doutor. Os dedos tamborilavam, insinuavam aproximar-se das mãos dela. E ela aceitou entrelaçar seus dedos aos meus! Até consegui lembrar um poema, que dizia algo a respeito do meu amor. Incrível, Doutor, declamei o poema sem esquecer nenhum verso!
- Aham...
- Aí ela exclamou: “Nossa, que lindo! Amei!” Então pensei “Você que é linda!” “Muito mais do que linda, você é gostosa!” E então, no mesmo instante, ouvia-se ao fundo a música do Chico Buarque Quero ficar no teu corpo / Feito tatuagem / Que é pra te dar coragem / Pra seguir viagem / Quando a noite vem... E eu fiquei cantarolando apenas com o movimento dos lábios...
- Aham...
- Foi bom demais... Mas, enfim...
- Hum...
- Embora não saiba, quem vende flores não é um vendedor qualquer. Se aquela criança que vendia flores entrasse na padaria e viesse em direção à nossa mesa, com aquelas rosas vermelhas, impulsionaria um grande amor! Notei a menina cruzar a rua e vir em nossa direção, mas, não sei por qual motivo, não entrou na padaria, seguiu em frente pela calçada. Doutor, juro que pensei correr em direção à porta, chamá-la e comprar um botão de rosas para dar à Ninfa. Porém, vacilei naquele INSTANTE. Sério, Doutor, minha obsessão pelo eterno presente me levou a deixar escapar aquele MOMENTO mais do que romântico da ação: dar uma flor à garota.
- Aham...
- Aquele vacilo, que durou poucos segundos, foi a gota d’água para que eu mergulhasse numa melancolia sem fim, que não sei se vou superar. Sim, é como uma tatuagem que se instalou  no meu corpo, como espinhas num corpo adolescente, ou como a agonia expressa pela barriga enorme ou pelas costas curvadas de alguém. É isso, Doutor, a melancolia, e seu peso invisível, compenso com muita masturbação. Óbvio, depois do gozo me sinto mal, e aí busco o bar mais próximo para beber e ver futebol pela TV.
- Bem... Todos cultivamos lugares que servem de refúgio... Será que você se acostumou a habitar uma zona de conforto?
- Será, Doutor, o tal amor platônico?


(Diário de B. B. Palermo)
Imagem do site https://www.one.org/us/2014/06/23/should-you-be-buying-from-children-on-the-streets/.

Viagem ao fim da noite

O cachorro passa mancando... não me percebe. Compreendo: a vida é busca, é movimento. Quem prova isso é o motoboy e sua descarga barul...