Estava rodeado de pessoas, Doutor, todas com óculos escuros,
pareciam ceguinhos e falavam ao mesmo tempo, como numa torre de Babel. Falavam,
falavam, cada qual apegado à sua verdade. Não sei se isso aconteceu mesmo ou
se foi um sonho. Parecia uma reunião, mas não era. Parecia um comício, mas não
era. Parecia uma sala cheia de alunos, mas eu não era aluno. Parecia uma sala
de aula, mas havia velhos, crianças e jovens, e eu não era um professor. Foi
apenas um sonho, Doutor? Tem alguma verdade ou relação com a realidade?
Foi quando subi numa mesa ou caixote e tomei a palavra. Batia
na tecla de que a vida não se resume em receitas e despesas, cálculos, etc.
etc. Que o que permanece são as amizades, que a nossa memória retém mais são os
momentos que envolvem emoções junto com os outros. Como é difícil traduzir em
palavras o que senti, Doutor, o que marcou minha alma parece mais intenso do
que consigo dizer aqui pro Senhor. Já dizia Fernando Pessoa que o poeta não
consegue expressar em palavras o que ele realmente sente.
Mas voltemos ao aglomerado onde tomei a palavra e disse
intensamente minhas inverdades. Tudo o que eu precisava naquele momento era
contar uma história que empolgasse a multidão de cegos. Contava pra eles o que me vinha,
sem ter planejado antes. Era um atleta de um pequeno clube de um pequeno lugar,
habitado por pessoas simples. Apenas o presidente do clube era rico e por isso
pagava alguns jogadores. O papel do dono era possibilitar os encontros das
pessoas, garantir a estrutura para que todos vivessem satisfeitos. A comunidade
dava conta do resto, com suas festas, danças, jogos, paqueras, conquistas, perdas
e danos e celebrações religiosas. O dinheiro que alguém acumulou era apenas uma
ferramenta, um coadjuvante. Então, Doutor, quando a plateia cega estava empolgada e
pedia mais e mais histórias, eu comecei a falar das garotas do lugar. Dizia
que, mesmo que pudesse namorar com a garota mais bonita, porque era o ídolo do
clube, sempre ficava um vazio. Quanto mais garotas por perto, mais eu ansiava
por outra que estava em falta. Então lembrei da Sherazade a qual, com suas mil e uma histórias de heróis e vilões, de fadas e monstros, humanizou o rei cheio de ódio. Inventei pra multidão cega, dizendo que foi Sherazade que me narrou as histórias todas, que me conquistou e venceu meu vazio, preencheu o amor que me faltava. Caprichei no repertório e foi incrível, Doutor, com o passar das
histórias que contava os óculos iam caindo, e as pessoas deixavam de ser
ceguinhas.
(Diário de B. B. Palermo)