Lembro que ele guardava
mágoas e praguejava e maldizia uns carinhas e umas fulaninhas, eles eram
"cheios" e elas umas exibidas que se achavam.
Lembro que ele usava a
expressão "cunhenhem", e significava algo como um "coitado",
um "samoco" ou um "sem noção".
Lembro que ele buscava
uma namorada que seria seu par perfeito.
Lembro que
compartilhávamos a mesa no trabalho, e ele se deixava encantar com as histórias
que eu inventava, de aproximação às garotas e fiascos e perdas e conquistas.
Chamava-se Edilson e
nada sei de seus pais e irmãos, quem está por aí e quem já partiu.
Mais do que as palavras
que saíam de sua boca, lembro que sua expressão facial refletia um sujeito
ansioso e agitado.
Lembro que vim do norte
do Rio Grande do Sul e que ele me instruía sobre os bares e boates e padarias e
puteiros, onde rolavam orgias e outras coisas que deviam ser evitadas.
Lembro que naquela
época não havia HIV e poucos usavam camisinha, e chato e gonorreia eram coisas
normais.
Lembro que não tínhamos
medo da morte e do futuro, que vivíamos o "Carpe diem", lição que aprendemos
com o filme "Sociedade dos poetas mortos". Lembro que a cidade tinha
dois cinemas e muitos filmes eram bons, e então assistíamos no domingo e, de
novo, na terça-feira.
Lembro que o Edilson
tinha temperamento explosivo e fazia cara feia para chefes e patrões e
professores "xiitas", mas era nosso amigo e aceitava piadas e
brincadeiras.
Lembro que ele dizia
que quando fosse pra sala de aula os alunos iam se foder com ele.
Lembro que no futebol
ele era pouco habilidoso e batia muito.
Lembro que ele sonhava
ter um carro e, assim, conquistaria as garotas.
Lembro que nas festas
ele enchia a cara e tinha soluços e crises de choro. Lembro que nessas horas
necessitava de muita proteção, como se fosse o caçula da turma, ou a criança
mais nova da família.
Lembro que ele lutou
durante anos contra um tumor no cérebro, e que eu estava distante, enrolado com
minhas tentativas e alguns sucessos e alguns fracassos e paranoias. E quando
ele partiu dessa lembro de ouvir a notícia, mas viajava de férias e, indiferente,
não fiz qualquer esforço pra levantar acampamento.
Hoje tento recordar em
que região do cemitério ele jaz.
Agora não é uma questão
de lembrar. Disso eu tenho certeza. O tempo é implacável. A indiferença para
com meu amigo, a falta de memória e os olhos fixos para os desejos mundanos,
tudo isso vai nos derrubar e deixar perplexos. O tempo nos leva de roldão,
embora digam por aí que pensar nisso é mera filosofia irreal e inútil.
(B. B. Palermo)