sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Quente - Bukowski


ela era quente, era tão quente
que eu não queria que ninguém mais a tivesse, 
e se eu não chegasse em casa na hora certa
ela já teria ido, e era uma coisa que eu não podia
suportar -
eu enlouquecia...
era uma idiotice, eu sei, uma infantilidade,
mas eu me deixava levar, eu me deixava levar.

eu entregava todas as correspondências
e então Henderson me colocava na coleta noturna
num velho caminhão do exército,
a porra da lata velha começava a aquecer na metade
do caminho
e a noite seguia
eu pensando na minha Miriam quente
e eu entrando e saindo do caminhão
enchendo sacolas com cartas
o motor prestes a fundir
a agulha do termômetro cravada no vermelho
QUENTE     QUENTE
como Miriam.

eu seguia saltando
mais 3 coletas e então de volta ao posto
eu estaria, meu carro
à espera de me levar até Miriam que estaria sentada em
meu sofá azul
com um uísque com gelo
cruzando as pernas e balançando os tornozelos
como costumava fazer,
duas coletas mais...
o caminhão enguiçou junto a um sinal, era o inferno
dando suas caras
mais uma vez...
eu tinha que chegar em casa até as 8, 8 era o prazo
final de Miriam.

fiz a última coleta e o caminhão enguiçou num sinal
a meia quadra do posto...
não tinha jeito de dar a partida, de jeito nenhum...
tranquei as portas, apanhei a chave e corri até o
posto...
me livrei das chaves... assinei o ponto...
a porra do seu caminhão está enguiçado no sinal,
gritei,
Pico com a Western...

... corri pela entrada, coloquei a chave na porta,
abri... seu copo de bebida estava lá, e um bilhete:

fio da puta:
isperei até 8 e sinco
você não me ama
seu fio da puta
alguém vai me amar
fiquei isperando todo dia

Miriam

servi um drinque e deixei a água encher a banheira
havia 5.000 bares na cidade
e eu percorri 25 deles
atrás de Miriam

seu ursinho púrpuro de pelúcia segurava o bilhete
e ele estava escorado num travesseiro

dei um trago para o urso, outro para mim
e entrei na água
quente

(Do livro "Queimando na água, afogando-se na chama"). 

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Cruzando o sinal vermelho



Mochila nas costas,
cabelo amarrado,
balançando,
da universidade pra casa,
da casa pra universidade.
A vontade ergue edifícios,
investe em negócios milionários,
basta Ela passar por mim e acenar.

Bobo, a dúvida sempre aparece:
Ela ficou vermelha?
Ela me quer?

No trânsito, a maior transgressão de uns serzinhos
é cruzarem o sinal vermelho.
Outros, se masturbarem com parcerias
proibidas à luz do dia.
Não sei qual é a minha transgressão,
diante de sua passagem,
Ela, o retrato nietzschiano da vontade de potência.

Quero transgredir, apesar de ser
um fraco, um tímido,
pisando em ovos ou brasas,
com medo de errar a mão e o pé,
não acertar a descida do degrau
embora sóbrio e à luz do dia.

Diante Dela, tenho medo
de errar no verbo,
ficar vermelho e
despencar no abismo.

Ninguém suporta cair.
Por isso que os bares
e seus estoques e os puteiros
e suas ninfas aguardam...

Na volta da boemia,
de madrugada,
eu cruzo o sinal vermelho.

(B. B. Palermo)



domingo, 8 de setembro de 2019

Pega esse Fernando Pessoa e enfia no rabo



O Ridículo me mandou áudios pelo WhatsApp
declamando poemas do Fernando Pessoa.
Tudo bem, admiro esse grande poeta.
Mas me senti humilhado, vocês sabem, ando travado,
não desenvolvo nem ao menos uns poeminhas escrotos.
E o Beiço dá-lhe poemas do irmão português.
Daí a pouco explodi:
- Pega esse F. P. e enfia no rabo!
Beiço retraiu-se. Veio com essa:
- Maluco, qual é, sei que você curte Fernando Pessoa.            
Principalmente o "Poema em linha reta".
E emendou:
- Cadelão, mandei o áudio desse poema
pros meus grupos de WhatsApp.
Esqueci de colocar sua autoria.
Velho, eles me elogiaram,
disseram que sou um grande poeta.
Meus Deus, uns até são pós-graduados.
O que você acha disso?
- Normal. A arte anda mal
das pernas nesse país.
- Sei que tu está no bar do Geni.
Pega um táxi e vem pra cá.
Estão aqui a minha namorada e o El Cabezón.
Chamei um Uber.
O taxista era um garoto de vinte e poucos
que tinha outro emprego
e que dirigia pelas madrugadas
transportando fantasmas
pra aumentar sua renda.
Falou que conhece todas as zonas da cidade
e disse que tem muita garota linda
então eu falei Que massa, cara,
qualquer dia você me mostra o mapa das minas.
Quando cheguei lá
o Ridículo manteve a tortura.
Era "Tabacaria", era "O guardador de rebanhos",
era "Autopsicografia".
- Cadelão, você não lembra,
esse livro do F. P. foi você quem me emprestou.
Claro que eu nunca mais devolvo hehehe.
- Pega esse F. P. e enfia no rabo!
Pra variar o repertório do sarau,
busquei no Google uns poemas
do Velho Safado.
A cada poema que eu lia
El Cabezón delirava:
- Cara, isso é o Cadelão!
- Capaz, eu nunca vou alcançar esse lirismo
e ceticismo e sangue jorrando
e o cheiro do álcool em cada verso - eu dizia.
Pensei, O que a mistura de vinho e cerveja e pó
não faz na cabeça de uma desgraça dessas.
Na volta para casa, no táxi, bêbado,
estava decidido a não mais me comparar
com os grandes, pra não me sentir
humilhado.
Pouco antes de acordar no início da tarde
do mesmo dia
O Fernando Pessoa
invadiu meu sonho.
Perguntei-lhe à queima roupa:
- Pessoinha, como fazer para escrever
pra caralho, assim como tu? Me diz,
Pessoinha, devo me penitenciar
das bronhas e das fodas com as putas,
canalizando toda minha energia pra criação?
Ele falava e falava.
Pelo menos eu via o movimento dos lábios.
Mas nada escutava.
Logo abandonou meu sonho
e chutou a porta do quarto.
Acordei com essa coisa na cabeça:
- "Se queres te matar, por que não te matas"?

(B. B. Palermo)

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Cláudia, qual é o teu signo?



Doutor Biza convenceu-me a frequentar um centro mediúnico.
- Cadelão, tu precisa expulsar essa vontade louca de beber. E tem mais, me disseram, tu anda travado, não consegue escrever.
Ele tem razão. Estou bloqueado. E quanto mais penso nisso, mais a inspiração foge.
O Doutor jurou que no Centro as inteligências altamente desenvolvidas me desbloqueariam, já que os canais da criatividade são infinitos.
Aconselhou que eu devia, como todo mundo, evoluir, deixar de ser um serzinho egoísta, fuxiquento, orgulhoso e odiento, e ser mais solidário, mais empático com os irmãos  que comigo dividem o planeta.
Algumas vezes,  ingenuamente, sonhei ser algo como um médium, psicografar poemas e histórias de artistas malucos de inteligência hiper-desenvolvida que aqui passaram em outras vidas. Fico travado porque não me aprumo, um escroto, meus olhos são sensíveis demais diante das barbaridades que assisto, uma rotina de competição, desejo de acumular, de se exibir, de dar valor quase que absoluto ao corpo. Como não suporto conviver com essa merda, corro até o bar mais próximo.
Ainda acredito (sou ingênuo diante de vossos lindos olhos?) que vou "receber" inspiração para meu grande livro, o qual vai resolver boa parte dos problemas: dinheiro, garotas, reconhecimento. E o Doutor garantiu que, no Centro, eu terei progressos nisso também.
Só sei que eu estava lá, esperando a boa nova que o Doutor profetizou. Saturei depois do último fiasco, tropeços em garrafas espatifadas e cotovelos e joelhos esfolados pelos tombos no retorno do bar para casa.
Era sexta à noite, havia uma multidão procedente de centenas de lugares que ficavam a centenas de quilômetros dali. Novo cenário, que me fez esquecer as crises ambientais e políticas e econômicas e outras tantas que nosso planeta atravessa.
Mas não consigo superar meus conflitos com Deus. Quando me deparo com crianças pedintes nas esquinas, em vez de estarem na escola, e seus pais igualmente pedintes e sem perspectiva de futuro, eu pergunto: Deus, você não vai fazer nada? Sua resposta, um rebote em que a bola está a cento poucos por hora, me derruba: Cadelão, você está sendo chamado  a semear gestos de amor, estenda as mãos, exercite a caridade. Por que você não canaliza tuas energias para o aprimoramento de tua alma? O impasse com Deus continua, não sabemos de quem é a responsabilidade para solucionar os problemas desse mundo, então eu corro pro bar, apanho o jornal e vejo os resultados das loterias. E deliro, fazendo promessas de que, se acertar sozinho na mega-sena acumulada, vou distribuir boa parte do prêmio em caridade. Sei, sei, eu vivo de promessas, e uma delas, inclusive, é a de diminuir o consumo de álcool. Sim, sim, creio na bondade do divino, e espero não ser expurgado, mesmo fazendo tantas merdas nessa vidinha finita.

O atendimento mediúnico, num grande ginásio, seria no início da manhã do dia seguinte. Instalei-me numa pensão que até poderia lembrar campos de refugiados ou de concentração, mas o contexto era outro, todos ali buscavam saúde, vida em vez da morte, ao contrário da experiência nazista. Todos movidos pela seu livre arbítrio, e não enjaulados por governantes psicopatas. Era bem limpo e organizado, com crianças e jovens e velhos, humaninhos como eu em busca da cura e motivados pela fé.
No restaurante, alimentação adequada para doentes que fazem dieta. Nada de café e bebidas alcoólicas e lanches com carne vermelha. Apenas sopas com legumes e grãos e sucos naturais. Todos estampavam olhares cansados das longas viagens, com suas sacolas e mantas e travesseiros e cobertores. Observava o ambiente, meio que familiar, e me roía de vontade de correr pra um boteco qualquer.
Então troquei olhares com uma garota loira. Lá fora despencava um temporal. Depois, no dormitório, ao subir na parte de cima do único beliche que me restou, notei que a garota, a loira, dormiria no beliche ao lado do meu. Disse-lhe:
- Se não conseguir outra cama, posso dormir no ônibus. Não quero atrapalhar.
Ela falou:
- Não me importo, só deito pra relaxar e esticar as pernas. Não consigo dormir mesmo.
Umas cinquenta pessoas empoleiradas. Velhas e velhos, com a saúde debilitada, deitavam nas camas da parte debaixo. Alguns já dormiam, e não passava de nove da noite.
Encostadinhos, puxei conversa e a garota contou por que estava ali. Tratava de um câncer incurável, segundo os médicos. Ficou hospitalizada durante quase dois anos, suportando a dor e a fraqueza resultantes da radioterapia, e inclusive teve que usar bolsa de colostomia, por causa de um intestino furado durante o tratamento.  Era de Porto Alegre, bancária, "encostada" no emprego esse tempo todo, e o marido, no momento de sua maior solidão e dor, abandonou-a e partiu com outra mulher.
Já disse outras vezes, sou curioso, não é tempo perdido ouvir os dramas da vida das pessoas.
Depois de conversarmos por um bom tempo, a luz do dormitório apagada, me vi numa lagoa. Sapos coaxavam, em diferentes ritmos e sonoridades. Alguns mais angustiados, outros meio sofridos e até parecendo darem os últimos suspiros. Roncos mais próximos do fim, outros mais serenos e esperançosos.
Não conseguia digerir a história trágica que a garota narrou. Afinal, era jovem e bonita, eu não acreditava que Ela passou por tudo o que me disse.
Na parede, atrás do travesseiro onde Cláudia deitara, havia uma pequena janela basculante envidraçada. O clarão dos relâmpagos realçavam seu cabelo loiro, e eu me ligava naqueles olhos azuis irradiando vida. Bobo, perguntei:
- Cláudia, qual o teu signo?
- Chiiiiiii... Sossega, senhor Palermo, senão daqui a pouco eles vão acordar e nos xingar.
Rimos e eu passei a noite me revirando no andar superior do beliche. No outro dia cedo, no atendimento da multidão dentro de um grande ginásio, eu carregava um bilhete no bolso, com meu nome e número de telefone e contas das redes sociais, para nos conhecermos melhor. Oxalá as  inteligências altamente desenvolvidas já estavam solucionando, pelo menos, meus problemas no amor.
Mas, como tem acontecido com meus escritos, eu travei. Simplesmente, não tive coragem de lhe entregar.

(B. B. Palermo)


quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Feitos uns para os outros



Ela disse Meu namoro já completou um ano
e vive cheio de perrengues.
Eu disse Não tenho ciúmes.
E perguntei Você não curte o poliamor?
Ela disse Tô sabendo, seu velho escroto,
e então riu daquele jeito kkk.

Sou um cara cheio de incertezas
e transpiro esperança.
Creio em anja da guarda
e na linguagem sutil do Divino.
E, repito, aposto numa relação triplex.
Entro onde o garoto falha,
dar flores, levar o cão pra passear
e juntar seu coco nas gramas dos passeios,
cuidar dos vegetais orgânicos,
dos grãos e dos cereais.
Porém, de vez em quando tomo meus porres
e me transformo num coroa devasso
e irônico.
Sei, sei, a relação em meses derreteria
como bolha de sabão.

Ela é comunista
e gosta das festas do padroeiro.
Sou inútil que tem orgulho do intelecto,
embora esqueça de todas as frases
que considerei importantes
dos livros que li.
Sempre choro por bobeiras
em dias de ressaca.
Tenho chorado muito.
Meus perrengues são outros.
Acredito no poliamor.

Minhas garotas aguardam
em algum lugar.
Como disse o poeta Cacaso,
fomos feitos uns para os outros,
agora só falta quem nos apresente.

(B. B. Palermo)


domingo, 25 de agosto de 2019

Todo mundo está latindo



Observe a bolsa de quatro mil reais nas mãos daquela senhora.
Observe a placa de "Vende-se" colada na parede do apartamento do quinto andar daquele edifício.
Observe a presença barulhenta dos crimes virtuais, muitas vezes envolvendo crianças e adolescentes.
Observe a caturrita que caiu da árvore, a qual foi retalhada pela motosserra. O pássaro teve uma asa estraçalhada e foi colocado numa gaiola e agora se esforça para aprender a linguagem dos homens.
Observe a garotinha paralisada diante do espelho por causa das espinhas no rosto.
Observe teus amigos e vizinhos obcecados com as séries de TV e tagarelando isso pela "falta de assunto" nas rodas de conversa.
Observe o vira-lata pirado recolhendo e escondendo dúzias de ossos.
Observe que muitos dos teus conterrâneos não têm capacidade ou interesse para cuidar de negócios.
Observe que as pessoas têm outros interesses, para além dos negócios e de acumular riqueza.
Observe que, assim como você, há mais sujeitos desprovidos de coragem, intuição e perseverança.
Observe que o conflito de gerações e a ruptura da juventude com valores estabelecidos ocorreu também em outras épocas.
Observe que sujeitos de gerações mais antigas compreendem as atitudes dos jovens e até se esforçam para se adaptarem ao "novo".
Observe a presença constante do ronco de betoneiras e retro-escavadeiras e motosserras e o canto dos galos ao amanhecer nos espaços urbanos.
Observe quantos velhos são cuidados por seus filhos.
Observe quantos velhos são abandonados como trecos inúteis em depósitos, esperando a morte.
Observe o desespero com que tentamos ser algo ou alguém, o esforço que fazemos para aparentar ser uma estrela ou astro aos olhos dos outros, sem poder disfarçar o sofrimento que nossos olhos irradiam.
Observe que as músicas que você cantarola em silêncio dizem muito sobre você. Mesmo que digam respeito ao teu mundo, o que alegra é que alguns outros também curtem isso.
Observe que todo mundo grita a sua verdade. Ah, e também observe que cada um carrega sua maçã do amor para ser leiloada.
Observe como o mundo é frio, cruel, calculista, enfim, estranho. Mas se você o percebe e não se acomoda diante disso, você não perdeu o que tem de melhor: a sensibilidade.
Você pode observar e relatar os fatos sem tirar conclusões precipitadas. Você pode ficar admirado ou chocado, alegre ou triste. Se você abrir mão de latir a todo momento, você vai alcançar o paraíso.

(B. B. Palermo)

sábado, 24 de agosto de 2019

Cadê minha liberdade de expressão?

Tem dias que a criatura passa dos limites e não consegue evitar uma confusão. E, além de bêbado, fica transtornado a tal ponto que ignora a possibilidade de no final, diferente das novelas e filmes, os conflitos não cessarem e todos (até os “bons”?) serem infelizes por um tempo. 
Foi o que aconteceu com o Beiço esses dias. Ao mesmo tempo em que desejava abraçar todo mundo, queria que eles fossem à puta que o pariu. Andava tão trágico como certo personagem de Gabriel García Márquez no livro Crônica de uma morte anunciada. Numa noite transtornada, deixou-me arrepiado diante do “trágico” e da “morte”. 
No bar do Geni, cheio de casais e adolescentes, entrou cambaleante falando a plenos pulmões em “xoxota”, “bundinha” e “trepada”. Na hora o Geni, forte como um pit bull, se coçou detrás do balcão. Aí eu disse: 
- Cara, fala baixo e não diz tanto palavrão. 
E ele: 
- Cadê minha liberdade de expressão? 
Então apontei na direção do balcão do bar: 
- Sabe o que o Geni esconde ali, ó? Um enorme taco de beisebol! 
E ele: 
- Ai que gostoso, adoro um taco!
A besta não sossegava, dirigia-se às mesas onde umas garotas bebiam e conversavam. Eu me perguntava se ele as conhecia. Dali a pouco retornava pra nossa mesa e comentava que aquelas garotas eram mal resolvidas, que não passavam de umas histéricas.
Passou a narrar seu plano de suicídio. Seria com uma moto de pelo menos mil e cem cilindradas. 
- Veja, Cadelão, como é fácil me matar. Em dez segundos, no máximo, chego a uma velocidade de duzentos quilômetros por hora, numa reta, e quando surge uma jamanta no sentido contrário miro bem no meio do para-choque e, numa fração de segundo, tudo estará resolvido. 
Disse isso e cantarolou “voar, voar, subir, subir, ir pra onde for...”. 
Eu falei: 
- Meu, você anda trágico. Brigou com a namorada?
Então ele cantou pra todo mundo ouvir: “Garçom, aqui nesta mesa de bar, você já cansou de escutar, centenas de casos de amor...”. Logo depois ele debochava: “O bobinho acreditou que penso em me matar hehehe!” E não sossegava: “Agora ficou claro para mim: o sentido da vida está nas putas”. Depois de outra dose de tequila: “O grande sentido da vida está numa putinha gostosa agarrada em meu pescoço sussurrando toda melosa ‘amore, amore, amore’”.
Nunca tinha notado o Beiço assim, tão TRÁGICO. Se de um lado ele dizia pra todo mundo no bar “obrigado”, “perdão” e “com licença”, de outro ele berrava “exijo respeito”, “você ofendeu minha honra” e “vamos duelar e um de nós vai morrer”. Então, em vez de começar uma luta mortal com o garoto de cabelo comprido e rabo de cavalo, sentado na mesa ao lado e que decidiu se intrometer, o beiçudo parecia implorar por um beijo. 
Depois de alguns minutos de sossego, devorando uma porção de batata frita, Beiço voltou à carga, isto é, disse num tom de voz que fez com que todo mundo se voltasse na nossa direção: “Hoje não quero o coração das putas, eu só quero a perereca!”.
Então eu providenciei nossa imediata retirada do bar. Foi um milagre o Geni, aquele enorme pit bull, não sair detrás do balcão empunhando seu bastão de beisebol.
(B. B. Palermo)

sábado, 17 de agosto de 2019

eddie e eve


você sabe
sentei no mesmo banco de bar por 5 anos na
Filadélfia

eu bebia álcool etílico e o vinho mais barato
apanhava nos becos de caminhoneiros bem-
alimentados
apenas para diversão de
senhoras e senhores da noite

nada lhe direi da minha vida de criança
é doentiamente 
irreal

mas o que quero dizer
é que fui enfim ver meu amigo eddie
depois de 30 anos

ele continuava na mesma casa
com a mesma esposa

deixo você adivinhar:
ele parecia bem pior do que eu

não conseguia se levantar da cadeira

uma bengala
artrite

o que restava a ele de cabelo havia
embranquecido

meu deus, eddie, eu disse.

eu sei, ele disse, me fodi, não
consigo respirar.

então sua esposa apareceu. aquela que uma vez fora a
magra
Eve com quem eu costumava flertar.
95 quilos
me olhando de soslaio.

meu deus, Eve, eu disse.
eu sei, ela disse.

ficamos todos bêbados. muitas horas depois
Eddie me disse,
vá para a cama com ela, faça-lhe algum bem,
eu já não sirvo para nada
mais.

Eve deu um risinho.

não posso, Eddie, eu disse, você é meu
chapa. 

bebemos um pouco mais.
infinitas garrafas de
cerveja.

Eddie começou a vomitar.
Eve lhe trouxe uma bacia
e ele vomitou dentro da 
bacia

me dizendo entre os espasmos
que nós éramos homens
homens de verdade
sabíamos as coisas de fato
por deus
esses moleques
não sabiam de nada.

levamos ele para a cama
tiramos sua roupa
e ele logo apagou,
roncando.

me despedi de Eve.
fui embora e entrei no meu carro
e fiquei ali sentado olhando para a casa.
então dei a partida.
era só o que me restava fazer.

(Bukowski, do livro "Queimando na água, afogando-se na chama".)

Viagem ao fim da noite

O cachorro passa mancando... não me percebe. Compreendo: a vida é busca, é movimento. Quem prova isso é o motoboy e sua descarga barul...