Certo dia, ao desembarcar na parada de ônibus a
alguns quarteirões de casa, eis que surge um mamífero quadrúpede (da família
dos caninos, Doutor) e passou a me seguir. Acho que me confundiu com algum
velhinho que ele aguardava desembarcar do ônibus, pensei. O vira-latas me
acompanhou até em casa. No seu olhar percebi a postura de quem dava as cartas,
como se dissesse EU é que escolho dividir tua moradia, desde que EU decida o
que é melhor.
À medida que o Arthur foi ficando, Doutor, remoo
a seguinte dúvida: como ele estava mais acostumado com as ruas do que em casa,
devo “prendê-lo” para evitar que corra o risco de ser atropelado pelo movimento
louco da cidade, ou domesticá-lo, dando-lhe
todas as regalias dos pet shops, roubando-lhe a antiga rotina? Conhecidos
me disseram que o Arthur quase sempre acompanha os velhinhos, não apenas até as
paradas de ônibus, mas também quando se dirigem aos postos de saúde, escolas,
asilos. Diante de tantas virtudes, é claro que me sinto culpado por cultivar
tão poucas qualidades. Sim, Doutor, em vez de fazer algo para melhorar o mundo,
fico horas na internet, invado sites pornôs e me masturbo. Enquanto o cão da
triste figura vai pras ruas sempre disposto a acompanhar os desamparados, eu só
tenho olhos para as garotas, seus cabelos, cintura, bumbum, seu jeito de andar,
ansioso para atrair sua atenção. O Senhor acha que desisti de acreditar na
humanidade e não passo de um gigantesco verme?
A liberdade do Arthur é um dado importante, o Senhor
tem razão. Tenho muito a aprender com ele. Um escritor precisa conhecer a vida
como ela é, ir pras ruas, alimentar-se do fluxo. Mas fico angustiado. Esses dias
o Arthur sumiu por quarenta e oito horas. Bebi demais, Doutor, liguei para
dezenas de pessoas, até o Cara! apareceu pra dar palpite. Não, não quis postar
fotos do bichinho no facebook, quis preservar sua identidade. Vamos deixar para
outros humanos a mania de exporem seus bebês e crianças na internet. Perderam o
senso do ridículo. Aliás, Doutor, essas mulas não fazem a mínima ideia do que é
ser ridículo.
Ah, sim, ainda não descrevi o Arthur. É preto, de
porte mais pequeno do que médio, e tem uma cara séria de quem sempre anda
desconfiado. Deve ser porque ele está boa parte do tempo batendo de frente com
os perigos desse mundo, Doutor. Escrevi um conto prontamente aceito por uma
revista de circulação nacional com o título “Arthur, o cão da triste figura”.
Uma narrativa lírica que tenta mostrar que a beleza é relativa (de menor
importância) diante da gangorra entre defeitos e qualidades de alguém. O que é
ser bonito ou feio? Ainda bem que os cães não dispõem de juízo estético. Não
perdem tempo com isso. Simplesmente nos escolhem e acolhem. E amam. Dizia
também no conto que Arthur encarna o espírito dos cães que aparecem na literatura,
como em Marley e a cadela Baleia, de Vidas
secas.
Há um termômetro que ajuda a compreender minha relação com o
vira-latas. Tomo consciência de que devo desestressar quando não lhe dou
atenção e carinho, quando estou mal-humorado, nessas horas caminho por aí, do
jeito que ele faz, para encontrar com amigos, relaxar e beber umas cervejas.
O Arthur evidencia como anda meu carma: se estou
sentado próximo ao seu tapete, ele se enrosca e deita sobre meus pés e nossas
energias fluem de um para o outro. Então, Doutor, minha sensibilidade retorna,
e decido dar-lhe uma boa educação musical. A música clássica, principalmente Tchaikovsky
e Chopin, deixa-o mais relaxado, percebo pelo movimento do rabo e das orelhas,
ainda mais se for depois que ele volta de suas missões voluntárias pela cidade.
As virtudes do Arthur, Doutor, me levam a pensar
sobre meus defeitos. Os cuidados que temos um para o outro me tornam um homem
melhor. Por isso sonho que ainda vou dar certo com alguma mulher. O que o
Senhor acha, Doutor?
Formou-se uma dúvida. A preocupação do Arthur com os
velhinhos, mendigos e desamparados pelas avenidas da cidade e seu trânsito agressivo, não
dá mostras de que ele não é um simples vira-latas, mas sim um anjo?
(Diário de B. B. Palermo)