segunda-feira, 21 de março de 2016
quinta-feira, 10 de março de 2016
Lista para a festinha
Não me conte em detalhes teu café da manhã. Nem o jantar com amigos, o que comeram, beberam e quanto custou.
O poeta não liga para o que cada um vai pagar, e se isso é justo. Não liga para a maneira como você administra teu patrimônio. Se vai se empanturrar de cerveja ou de refri na festa.
Além de organização, a vida precisa de emoção.
mais do que repetição - como a musiquinha da Xuxa no carro da vendedora de picolés - o cotidiano quer nos despertar.
Mais do que suprir necessidades fisiológicas, o café da manhã deveria dar prazer. Escute teu amor narrar o sonho bizarro que teve. Dê um tempo para as contas.
Mais do que ordens, obrigações e demarcações de poder, o trabalho deveria humanizar.
O poeta observa e conclui: a vida oferece muito mais!
Escute o pulsar da vida. Em alguns casos os excessos triplicam, em outros a escassez alardeia. Lugares onde a estupidez dá as cartas, lugares onde o amor faz besteira.
As coisas acontecem. O mais complicado é nossa sensibilidade captar isso... E se encantar.
Houve uma lista para a festa de amigos. Durante a semana o grupo debateu pelo whatsapp onde, quando e por que, qual seria o cardápio e o que cada um iria pagar.
mais sensibilidade e menos administração.
Como o prazer andou esquecido, perdi meu apetite. Vou ficar por aqui, embriagado pelo pulsar de um bom livro.
(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)
domingo, 6 de março de 2016
Para Bukowski
Ridícula essa inocência de olhar pro umbigo e fazer planos de perder peso, aumentar a musculatura e angariar olhares e corpos de algumas vadias. Aiaiai que bosta quase não ler e escrever, quando saem algumas linhas sofridas é pra amassar a folha e acertar a lixeira. O pior é o vexame matutino de dar de cara com o que escreveu ontem à noite depois de entortar uma garrafa de líquido duvidoso.
Ridícula essa pretensão de imitar Charles Bukowski.
(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)
quinta-feira, 3 de março de 2016
Inri Cristo
“Eu te perdoo por não me levares a sério”, fala docemente o homem que se autoproclama Jesus Cristo.
Tudo o que ele diz é em obediência a Deus, que chama
de “Meu paizinho”.
Essa devoção a um Deus onipresente e onipotente, em
vez de me comover, me faz rir.
Mas não o rejeito. Com tanta igreja e
representantes de Deus no mercado, é ele quem mais me atrai. É que, como eu,
ele também está ******* pra essa sociedade de *****.
Carrega uma cruz: ser impedido de falar.
Não ter mídia. E tem razão. Com tantos canais falando ***** por aí, por que não
deixar ele viajar no verbo?
Somos parecidos. Embora ele seja profeta do
caos, das revelações e previsões catastróficas, me pareço com ele, no aspecto
poético, pois a tudo observamos e escutamos, não abrimos igrejas nem cobramos
dos fiéis.
Mas não deixo de rir quando ouço dizer que Deus
fala com ele. Sua obediência e fidelidade me dão inveja. Por que não consigo
ser assim? Nessas horas quase me autoflagelo.
A culpa se esvai quando percebo que também sou
contador de histórias, como ele, o padre, o pastor, o pai, a mãe, a professora,
o avô, a avó... Creio que, quanto mais imaginação e invenção, mais agrada a
Deus.
Mas que entidade é esse Deus?
Se foi ele que criou tamanha máquina (fantástica)
que é o universo, por que dedicaria tempo a se importar com nossas *********?
E se Jesus, na verdade, for representado não por uma
figura humana, e sim, por exemplo, por uma vaca, gato ou jumento?
Diante de tantos discursos, decidi dar mais crédito
aos mais cômicos e imaginativos. Eles tornam a vida mais leve. É por isso que
já sou quase fã de Inri Cristo.
(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)
quarta-feira, 2 de março de 2016
Ana Cristina Cesar
faz três semanas
espero
depois da novela
sem falta
um telefonema
de algum ponto
perdido
do país
espero
depois da novela
sem falta
um telefonema
de algum ponto
perdido
do país
A poeta carioca Ana Cristina Cesar (1952-1983) foi escolhida como autora homenageada na Festa Literária Internacional de Paraty em 2016, que vai acontecer entre 29 de junho e 3 de julho, em Paraty (RJ). Ela é a segunda mulher a ser lembrada pelo evento. A primeira foi Clarice Lispector em 2005. Na edição deste ano, o autor homenageado foi o escritor Mário de Andrade.
Expoente da geração da Poesia Marginal, que nos anos 1970 se firmou distribuindo edições caseiras no Rio de Janeiro, ao largo do mercado editorial e sob o peso da ditadura militar, Ana C., como era chamada por amigos, fundou uma vertente marcante na poesia brasileira contemporânea (Fonte G1).
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016
No fundo, somos uns solitários
A esposa reclama que a máquina de lavar roupas
estragou. A outra diz que está com saudade, que foi ao salão, mudou o cabelo e
está louca para encontrá-lo.
Trocam-se os papéis.
Separa-se, encara pensão alimentícia e torna a
garota linda e cheirosa sua esposa oficial. Reordenam-se as regras e logo a
ex-outra é quem vai reclamar do vazamento da torneira da pia e da caixa de
descarga do banheiro.
Enquanto isso a ex-oficial tricota artimanhas para
estar sempre por perto e reivindicar o que lhe é de direito: fazer o impossível
para tornar a vida dele um inferno.
Ser e não ser. Um dia somos namorados, noutro dia
não. Um dia maridos ou esposas, noutro dia não. Amantes e ex-amantes. O campeonato
da vida muda suas posições em alta velocidade. E nem percebemos que somos uns tontos!
Não descrevo fatos reais, munição perfeita para
sites e revistas de fofocas. Farejo assunto qualquer para aguçar a curiosidade
de meus onze leitores (pressinto que logo, logo, chegarei a quinze).
Fios, teias, boa parte imperceptíveis, nos conectam
à realidade. Mas como esta anda vulnerável à neblina e ao lusco-fusco do “ouvi
dizer”!
Será que um marido perfeito pode ser amante
perfeito? Será que a amante perfeita pode ser esposa perfeita? Quem consegue
andar tranquilo nas trilhas da monogamia? E nas trilhas da poligamia?
Inventamos as regras não sem renúncia. Culpamo-nos
quando desobedecemos as mesmas. Também inventamos a tragédia e a comédia? Somos
tontos, ridículos e sérios ao mesmo tempo. E temos dificuldade para perceber o quanto
estamos aprisionados.
Leio um poema de Neruda e me pergunto como ele vê essas
danças de troca de papéis. Somos razão, somos pulsão, somos vontade de poder,
de sexo, de carinho... e de solidão.
Diz um trecho do poema “Cavaleiro solitário”,
traduzido por Paulo Mendes Campos:
“Os
entardeceres do sedutor e as noites dos esposos
unem-se como dois lençóis me sepultando,
e as horas depois do almoço em que os jovens
estudantes
e as jovens estudantes, e os sacerdotes se
masturbam,
e os animais fornicam diretamente,
e as abelhas cheiram a sangue, e as moscas zumbem
coléricas,
e os primos brincam estranhamente com as suas
primas,
e os médicos olham com fúria para o marido da jovem
paciente,
e as horas da manhã em que o professor, como por
descuido,
cumpre o seu dever conjugal e toma o café,
e ainda mais, os adúlteros que se amam com
verdadeiro amor
sobre leitos altos e longos como embarcações;
seguramente, eternamente me rodeia
este grande bosque respiratório e enredado
com grandes flores como bocas e dentaduras
e negras raízes em forma de unhas e sapatos.”
(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016
Poema de Emily Dickinson
Neste poema Dickinson fala a respeito de um enterro que ela provavelmente presencia por morar perto de um cemitério. Este enterro é associado por ela ao seu próprio, como revelado na terceira estrofe. A tradução é de paulo Mendes Campos.
Não era a morte, pois eu estava de pé
e os mortos estão todos deitados;
não era a noite, pois todos os sinos
punham a língua de fora ao meio-dia.
Não era o orvalho, pois na carne
sentia sirocos a rastejar...
Nem o fogo, pois os meus pés marmóreos
podiam guardar para si um frio santuário.
Era no entanto como se fossem.
Formas que vi
arrumadas para o enterro
lembravam as minhas,
como se a minha vida, recortada
e emoldurada,
ficasse irrespirável sem uma chave;
e como se fosse meia-noite, um pouco,
quando tudo que bate de leve pára,
e o espaço olha em torno,
e a geada horrenda, manhãs primeiras de outono,
bloqueia o chão palpitante.
Principalmente como o caos – frio, incessante –
sem saída ou ponto de apoio,
sem qualquer notícia da terra
para justificar o desespero.
ORIGINAL
1. It was not death, for I stood up,
2. And all the dead lie down;
3. It was not night, for all the bells
4. Put out their tongues, for noon.
5. It was not frost, for on my flesh
6. I felt siroccos crawl,
7. Nor fire, for just my marble feet
8. Could keep a chancel cool.
9. And yet it tasted like them all;
10. The figures I have seen
11. Set orderly, for burial,
12. Reminded me of mine,
13. As if my life were shaven
14. And fitted to a frame,
15. And could not breathe without a key;
16. And I was like midnight, some,
17. When everything that ticked has stopped,
18. And space stares, all around,
19. Or grisly frosts, first autumn morns,
20. Repeal the beating ground.
21. But most like chaos,--stopless, cool,
22. Without a chance or spar,--
23. Or even a report of land
24. To justify despair.
(Poema extraído da monografia de Aline Dimingues de Paiva. Cfe. site http://www.ufjf.br/bachareladotradingles/files/2011/02/Aline-Domingues.pdf)
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016
O galo do professor
O galo Gedeão, antes condenado, renasceu. De
lambuja, ganhou uma companheira, a Gerusa. Os dois desfilam no pátio de uma
casa a duzentos metros do mar, na praia de Arroio Teixeira. Parecem um casal de
velhinhos, renovados após descobrirem um grande amor. Agradecida com o doce
lar, Gerusa brinda a humanidade botando um ovo por dia.
Vamos à história do simpático casal. Um professor, o
galo sapiens da história, após uma semana comendo frutos do mar, rememorou os
galos e galinhas caipiras que sua mãe assava aos domingos no forno de fogão à
lenha, acompanhados da imbatível salada de batatas – o que seria da vida dos
descendentes de alemães sem a maionese aos domingos?
Naquela noite chegou a sonhar com o imponente galo
caipira assado na sua infância. Junto aos familiares, em torno da mesa, o
banquete só iniciava depois da oração puxada pelo pai. Após agradecerem a Deus,
o pai escolhia o primeiro pedaço de carne, seguido pelos irmãos mais velhos.
Com tantas lembranças da infância, galináceos
criados no pátio vivendo de alimentação saudável, como grama, frutas, milho e
legumes, o professor não titubeou em rejeitar a ideia de se fartar com um
daqueles frangos assados aos domingos em vários pontos da cidade, criaturas que
foram abatidas com mais ou menos sessenta dias de vida, alimentadas com ração
duvidosa, muitas vezes repletas de hormônios.
Pensou que um banquete à altura dos da sua história
não podia ser apressado. Precisava engordar o galo à sua maneira.
O galo foi
encomendado a preços módicos, de um feirante. No dia da entrega este não trouxe
um jovem e imponente galo, como prometera. Era um galo idoso, de esporas mal
cuidadas. O que fazer? Fechado o negócio, o galo passou a viver livre, leve e
solto no pátio. E como na natureza tudo renasce, no espaço verde e pertinho do
mar, respirando toda aquela maresia, o galo revigorou. Em pouco tempo estava no
ponto... No caso: pronto para o abate. Era o momento tão esperado: fazer um delicioso
frango caipira com direito a todos os temperos que cultivava no pátio.
Se quando criança via sua mãe puxar o pescoço de
galos e galinhas, depená-los, temperá-los e assá-los, particularmente o
professor nunca o havia feito. Sua consciência deu sinal de alerta quando
pensou na morte do galo.
Invadiram a memória do professor lembranças da
infância, as aulas de catecismo e a missa obrigatória nos finais de semana. A
missão de Noé de salvar um casal de cada espécie de bichos que povoavam a terra
insuflou sua sensibilidade. As determinações de Deus a Noé, de proteger todos
os bichos, despertou o lado humano, demasiado humano, do professor. E ele teve
certeza de que devia proteger, batizar e dar uma companheira a Gedeão.
Foram também decisivas suas leituras de Immanuel
Kant, nas aulas de filosofia no ensino médio. Para o grande filósofo alemão do
século VIII, se você tem consciência do que faz, e o faz usando o bom senso de
homem livre, então você sabe que o melhor para você não deve causar danos aos outros.
Em outras palavras, que a realização do teu desejo não prejudique os outros. E,
dando mostras de seus progressos em termos de sensibilidade e humanidade, o
professor compreendeu que esses outros
não significam apenas os sapiens, mas também os bichos. No caso desta
história, os galináceos.
Hoje o galo não é apenas o dono do terreiro. Às
cinco da madrugada inicia uma sequência de cantos. Além de pontual, exibe um potentíssimo
gogó. Aos poucos seu canto desperta outros galos. O canto de um puxa o canto do outro, dando mostras de que estão sintonizados. Ensinam-nos uma lição: que
sozinhos não bordamos uma nova manhã, a cada manhã.
Mas o reino animal tem suas surpresas e armadilhas.
Gedeão e Gerusa correm perigo. Precisamos avisar o professor de que as raposas
da praia estão à espreita. Por enquanto, com tantos turistas, comida é o que
não falta. Mas quando o verão acabar...
Como na vida tudo se renova, o professor não se
contenta em sentar na varanda dando milho aos galináceos, esperando mais e mais
ovos e realizando a vontade de Deus: “Crescei e multiplicai-vos”. Ele também planeja criar uma associação para
cuidar dos bichos maltratados e abandonados da praia onde vive.
(Teco, o poeta sonhador, em: de bichos & gentes)
terça-feira, 9 de fevereiro de 2016
Você, um consumidor do bem
Você que vai ao shopping e aluga o mostruário. Observa linhas e curvas, ângulos e formas, do pescoço até a cintura.
Você, que parcela o dia-a-dia em fatias de açougue,
mercado e farmácia, calcula o mês durante a noite, pra saber o quanto
pode esticar o seu carnê.
Você, um consumidor do bem. Que não se cansa de
vigiar e, se preciso for, acionar a polícia e o Procon.
Tens de deixar tudo em dia: IPVA, IPTU, vacinas e o
Título de Eleitor, e sorrir para as câmeras que te observam nas esquinas.
Você, que se acostumou com a rotina e serve de
exemplo e retidão. Para que tua vida continue tão bela quanto é, seja sério e
fiel consumidor.
Você, que controla gastos, raiva, medo e frustrações,
que desfila uma brisa de sabedoria, que troca o carro a cada final de ano, em
quarenta e oito suaves prestações.
Você, que absorve a opinião pública, previsível,
definitiva, com altas doses de senso comum.
Você, um consumidor do bem, que obedece às estatísticas.
Não as reais, frustradas pelo acontecer, mas as projetadas pelos deuses do
mercado econômico. Cresça, cresça, de preferência dois ou mais dígitos, até a morte te
acolher.
(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)
sábado, 6 de fevereiro de 2016
Ele se chama Pirapora - Rubem Braga
Chama-se Pirapora, o meu corrupião; eu o trouxe lá da beira do São Francisco muito feio, descolorido e sem cauda. Consegui uma licença escrita para poder conduzi-lo; apesar disso houve um chato da companhia aérea que implicou com ele na baldeação em Belo Horizonte. Queria que ele viesse no compartimento de bagagens, onde certamente morreria de frio ou de tédio. Houve muita discussão, da qual Pirapora se aproveitou para conquistar a amizade de um negro carregador, limpando-lhe carinhosamente a unha com o bico. Encantado com o passarinho, esse carregador me ajudou a ludibriar o exigente funcionário, e fizemos boa viagem.
A princípio eu me preocupava em saber o que o bicho comia. Hoje me pergunto o que ele não come. Carne de vaca; verduras, tomate, laranja, goiaba, miolo de pão, mamão, sementes, gema de ovo, palitos de fósforos e revistas ilustradas, praticamente tudo ele come. É mesmo um pouco antropófago, porque devora qualquer pedacinho de pele da mão da gente que descobre. Os alimentos mais secos ele os põe n'água e faz uma espécie de sopinha fria. Come e descome com uma velocidade terrível; tem um metabolismo alucinado, mas respeita rigorosamente a limpeza do canudo de palha em que mora. Adora tudo o que brilha, pedras preciosas ou metais, e fica bicando essas coisas com uma teimosia insensata, como a lamentar que não sejam comestíveis. Passa horas brincando com um pedaço de barbante, mas isso parece que lhe faz um pouco mal aos nervos. Peço às damas visitantes que retirem os anéis quando se aproximam da gaiola.
Mas a verdade é muito outra. Há um pequeno drama de família; estamos de mal.
O meu, não. Talvez a culpa seja minha, que o educo mal. Sei como deveria proceder com ele; movimentos sempre lentos, chantagem na base do miolo de pão, não lhe dando comida demais para que ele venha comer na mão; certa mistura de disciplina e carinho, sistema de prêmios e castigos. Enfim, aquele negócio dos reflexos condicionados.
Ele já estava bastante meu amigo quando cometi o primeiro erro; e ele reagiu. Afastava-se de mim; se eu aproximava o dedo, ele bicava com força. Despeitado com esse tratamento, eu devo ter sido um pouco brusco. Um dia em que ele não queria de jeito nenhum sair da gaiola eu o agarrei e o trouxe para fora à força. Não gostou.
O pior é que tomei gosto em irritá-lo. Estalo os dedos sobre sua cabeça, o que o faz emitir estranhos grunhidos, enchendo o papo de vento, esticando o pescoço e dando grandes assobios; fica parecendo um galo de briga; uma gracinha. Mas com essas provocações ele foi, devagar, devagarinho, criando um certo ódio de mim.
Não, ainda não será ódio. De outras vezes ele já levou um dia inteiro, até dois, sem me dirigir a palavra, e mesmo sem me olhar; mas logo o rancor sumiu de sua alminha leve, e voltamos às boas. Desta vez ele está há quatro dias completamente hostil, e minha presença o incomoda visivelmente. Por acinte trata bem qualquer pessoa estranha, o rufião. Mas creio que sua amizade é um bem ainda recuperável.
O pior é que eu digo essas coisas assim, mas no fundo sou um pouco rancoroso, e estou criando uma certa mágoa desse bicho ingrato que eu trouxe da roça para a Capital da República, até cheguei a ir à feira só para comprar comidinhas melhores para ele, dei gaiola grande e bonita, uma vez gastei oitenta cruzeiros de táxi só para vir em casa livrá-lo de uma chuva súbita. Não, não sei se ainda lhe tenho a mesma estima. Nosso último incidente foi há três dias, e ele ainda hoje à tarde me tratou com uma antipatia suprema e ainda por cima se desmanchou em graças e carinhos com o boy que veio buscar a crônica.
Acho que vou dar esse corrupião - ou despedir esse boy.
(Do livro, Para gostar de ler - volume 5 - Crônicas. Editora Ática)
A princípio eu me preocupava em saber o que o bicho comia. Hoje me pergunto o que ele não come. Carne de vaca; verduras, tomate, laranja, goiaba, miolo de pão, mamão, sementes, gema de ovo, palitos de fósforos e revistas ilustradas, praticamente tudo ele come. É mesmo um pouco antropófago, porque devora qualquer pedacinho de pele da mão da gente que descobre. Os alimentos mais secos ele os põe n'água e faz uma espécie de sopinha fria. Come e descome com uma velocidade terrível; tem um metabolismo alucinado, mas respeita rigorosamente a limpeza do canudo de palha em que mora. Adora tudo o que brilha, pedras preciosas ou metais, e fica bicando essas coisas com uma teimosia insensata, como a lamentar que não sejam comestíveis. Passa horas brincando com um pedaço de barbante, mas isso parece que lhe faz um pouco mal aos nervos. Peço às damas visitantes que retirem os anéis quando se aproximam da gaiola.
***
Agora ele está de rabo comprido, penas negras lustrosas e penas alaranjadas vibrantes de cor. Está realmente bonito, voa um pouco pela casa todo dia e toma banho duas vezes ao dia. Enfim, tenho todos os motivos para me orgulhar de meu corrupião; e devia estar contente. Mas a verdade é muito outra. Há um pequeno drama de família; estamos de mal.
***
Conheço muitas histórias de corrupião; corrupião que assobia o Hino Nacional; corrupião que só gosta de mulher, não tolera homem; corrupião que quando o dono da casa chega ele assobia até que abram a gaiola e ele pouse no ombro do homem; corrupião que passeia pelo bairro inteiro e volta para casa ao escurecer, etc.O meu, não. Talvez a culpa seja minha, que o educo mal. Sei como deveria proceder com ele; movimentos sempre lentos, chantagem na base do miolo de pão, não lhe dando comida demais para que ele venha comer na mão; certa mistura de disciplina e carinho, sistema de prêmios e castigos. Enfim, aquele negócio dos reflexos condicionados.
Ele já estava bastante meu amigo quando cometi o primeiro erro; e ele reagiu. Afastava-se de mim; se eu aproximava o dedo, ele bicava com força. Despeitado com esse tratamento, eu devo ter sido um pouco brusco. Um dia em que ele não queria de jeito nenhum sair da gaiola eu o agarrei e o trouxe para fora à força. Não gostou.
O pior é que tomei gosto em irritá-lo. Estalo os dedos sobre sua cabeça, o que o faz emitir estranhos grunhidos, enchendo o papo de vento, esticando o pescoço e dando grandes assobios; fica parecendo um galo de briga; uma gracinha. Mas com essas provocações ele foi, devagar, devagarinho, criando um certo ódio de mim.
Não, ainda não será ódio. De outras vezes ele já levou um dia inteiro, até dois, sem me dirigir a palavra, e mesmo sem me olhar; mas logo o rancor sumiu de sua alminha leve, e voltamos às boas. Desta vez ele está há quatro dias completamente hostil, e minha presença o incomoda visivelmente. Por acinte trata bem qualquer pessoa estranha, o rufião. Mas creio que sua amizade é um bem ainda recuperável.
O pior é que eu digo essas coisas assim, mas no fundo sou um pouco rancoroso, e estou criando uma certa mágoa desse bicho ingrato que eu trouxe da roça para a Capital da República, até cheguei a ir à feira só para comprar comidinhas melhores para ele, dei gaiola grande e bonita, uma vez gastei oitenta cruzeiros de táxi só para vir em casa livrá-lo de uma chuva súbita. Não, não sei se ainda lhe tenho a mesma estima. Nosso último incidente foi há três dias, e ele ainda hoje à tarde me tratou com uma antipatia suprema e ainda por cima se desmanchou em graças e carinhos com o boy que veio buscar a crônica.
Acho que vou dar esse corrupião - ou despedir esse boy.
(Do livro, Para gostar de ler - volume 5 - Crônicas. Editora Ática)
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016
Amor, volto já
O pesadelo de hoje tem nome: Aedes Aegypti. De tanto
povoar os noticiários, descoloriu minha vontade de ir pra rua viver o
carnaval. Quase invisível, mas tenebroso, ameaça sequelar meus netos e filhos
com o zika vírus.
O ministro telefonou pra dizer que conhece a
realidade. E deu uma ordem: evitem que se espalhe esse monstro!
Porém, nesta semana o ministro e os mosquitos podem
esperar. Amor, volto já. Vou me libertar desta aflição no carnaval, mesmo sabendo que
o inseto pode me picar.
Meu pulsar se deixou seduzir pelo ritmo da bateria.
Não, não quero perder o bonde da cultura popular. Perco o sono com medo de as novas gerações deixarem de ser gênios e se tornarem retardadas, se
o mosquito não for banido da face da terra. Mas por estes dias mente e corpo
expurgarão o tormento. Vou saltar pra rua, seguir o bloco da tradição e
do inconsciente coletivo.
Ôpa. Meu Bloco de Concreto bateu de frente com um
bloco mais prosaico: marmanjos vestindo fraldas geriátricas! E agora, como
poderei me alegrar sem antes compreender singela iniciativa? Com suas fraldas,
representam bebês ou velhinhos? Estão inaugurando ou no término da vida?
Um amigo diz que eles extravasam impulsos sexuais
impublicáveis à luz do dia. Outro conhecido, pelo visto bem informado, diz que
o grupo participa de um “Chá de beber” e que, se em Ijuí é novidade, é comum
nas grandes cidades.
Viram só tamanha criatividade? Aqui estamos nós imitando o
que acontece em outros lugares!
Grande ideia. Comemorar uma gravidez, a chegada no
mundo de um novo ser, reunindo um grupo de machos usando fraldas. Beber, beber,
e depois desfilar pelas avenidas, num tremendo buzinaço. Já pensaram se, junto
às buzinadas, acrescentarem um foguetório, espalhando o terror pra cima dos
velhinhos doentes, bebês de colo e dos bichos, indefesos aos barulhos?
Amor, volto já. Vou ali tentar compreender a curtura
popular.
(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)
Imagem do site http://revistadonna.clicrbs.com.br/comportamento-2/mulheres-no-carnaval-de-porto-alegre/.
Imagem do site http://revistadonna.clicrbs.com.br/comportamento-2/mulheres-no-carnaval-de-porto-alegre/.
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Viagem ao fim da noite
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