sábado, 3 de agosto de 2019

Por favor, Dona Flor, aceita teu marido de volta, aceita



Estava no bar do Telmo lendo jornal e bebendo algumas. Daí a pouco chegou um grupo de mulheres, duas delas com seus maridos. Um dos casais carregava um bebê de uns seis meses. Imaginem a operação envolvida pra se levar um bebê num jantar de amigos num bar, numa noite de inverno. Carrinho, cestinho, cobertores de lã, sacola com fraldas e mamadeira, etc., etc.
O brinde do reencontro foi pelo aniversário de uma amiga e, claro, com várias fotos para postar no Facebook.
Eu tentava escrever um poema para uma garota que trabalha numa confeitaria, perto de minha casa. Todo o dia queimo minha grana com sanduíches e doces, só pra vê-la se engraçar. Ela se exibe parecendo rir de minha cara mas, como me transformo num palerma quando me apaixono, não percebo nada.
O bebê choramingou.  A mãe falou pras amigas: “Ela não faz cocô há dois dias”. Disse uma outra: “Você precisa comer mamão. Essa fruta é laxante. Com a amamentação, isso passa pra criança. Vai fazer cocô logo logo”.
A mãe então lembrou de um episódio quando voltou a tomar cerveja, depois do período de gestação e da quarentena. “Fomos jantar fora. Tomei umas cervejas com meu marido. Em casa, antes de dormir, amamentei a nenê. Vocês não imaginam. Ela começou a rir que não parava mais. Pegou no sono às três da manhã!” Disse uma outra: “Criatura, você embebedou a criança”.
Como não tinha jeito de não ouvir o que conversavam, pedi outra dose pro Telmo. Uma das amigas foi até o carrinho e pegou o bebê no colo. “Nossa, parece chumbo!” A mãe disse: “Ah, não exagera”. “Dê pra ela meio comprimido de laxante. Logo, logo ela fica bem levinha”.
E foi assim que a inspiração ficou pra outro hora. Daí a pouco entrou no bar, meio desnorteado, um amigo meu de beber umas e outras em algumas espeluncas da cidade. Com aquela cara, pressenti que algo tinha acontecido. Fiz um sinal pra que bebesse comigo. Eu levo jeito pra psicólogo. Isso, gosto de escutar as pessoas contarem suas paranoias e tragédias, e o Flori me parecia com cara de trágico.
“Daí, meu amigo! Que cara é essa?” “Minha mulher meteu o pé na minha bunda”. “Putz... O que você aprontou dessa vez?” “Nada demais. Cara, tô casado há quinze anos. Juntos, construímos uma linda história. Temos nosso menino, o Pedro Geromel, e também um cachorro, o Cebolinha”. “Mas, assim do nada, tua mulher não ia te botar pra fora de casa”.
Então ele contou em detalhes o episódio que desencadeou a crise do casamento. Num sábado, depois do expediente, encontrou alguns amigos e decidiram conversar e tomar algumas cervejas. Estendeu-se, o dia passou rápido nesse sofrimento que é ir de bar em bar. A noite avançou, novos amigos, histórias de amores, festas e aventuras, e o MEDONHO esqueceu-se de voltar pra casa. Foi com a turma a um baile, num bairro da cidade.  Ele tentava me convencer, e concordei, de que essa fraqueza, por si só, não tem tanto poder para sacudir as bases da lei e da ordem do sagrado matrimônio. No dia seguinte, porém, na hora de colocar os fatos em panos limpos, meu amigo disse à esposa que chegou tarde porque havia sido convidado pro aniversário do filho de um amigo. Lá, o jogo de canastra invadiu a madrugada.
No baile Flori ganhou um prêmio. Nossa, Ele que nunca ganhou nada em sorteios, durante a vida toda! Era um frango assado, patrocinado por um mercadinho do bairro.
Dada a quantidade de cerveja que lhe subiu à cabeça, esqueceu-se completamente do galináceo. O baile foi um sucesso, e na segunda-feira pela manhã uma emissora de rádio anunciou os ganhadores dos brindes sorteados.
Pro seu azar, a esposa sintonizava aquela emissora, naquele instante.
Acusado de mentiroso e infiel, e pra dar uma resposta à altura dos anseios de familiares e amigos, Dona Flor botou a criatura pra correr. Arrependido, e morando de favor na casa de um parente, ele sente falta da esposa, do filhinho e do cachorro, sua pátria e porto seguro.
“Cara, fiquei tocado com tua história. Acho que isso não é motivo suficiente para acabar um casamento”. “Quando entrei no bar e te vi, fiquei pensando...” “No quê?” “Você, que é escritor, podia bolar uma carta pra convencer Flor a me aceitar de volta. Pode ser uma carta anônima”. “Hum, posso criar um pseudônimo”. “Faço um churrasco e ainda te pago meia dúzia de litrões se a carta convencer Flor a me perdoar...” “Fechado”.
No dia seguinte escrevi uma carta. Dizia assim:
Dona Flor, não necessito da sabedoria de um guru para afirmar que os dias atuais são muito perigosos.  Em cada esquina surge um anjo mau disposto a colocar minhocas em nossa cabeça, e levar nossos amores à perdição.
Cabe lembrar à senhora de que nem Flori, nem qualquer outro homem, funcionam como relógio suíço: certinhos, previsíveis, totalmente ajustáveis. Aliás, nem os homens nem as mulheres.
Para não ser acusado de machista, vou citar algumas frases ditas por mulheres, no livro “O amor de mau humor”, de Ruy Castro, com o objetivo de fazê-la mudar de ideia e aceitar seu marido de volta.  
Embora madame Stael diga que “o amor é a história da vida de uma mulher; e um episódio na vida de um homem”, convém prestar atenção no conselho de Dorothy Parker: “Conserve os dedos abertos... e o amor fica. Feche-os, e ele se desprende”.
Marido é coisa séria, dona Flor. Diz ZsaZsa Gabor: “Maridos são como fogo: extinguem-se se não forem atiçados”.
Quanto ao casamento, este nem sempre representa o paraíso. Diz Dra. Joyce Brothers: “O casamento não se compõe apenas de uma comunhão espiritual e de abraços apaixonados; compõe-se também de três refeições por dia, lavar a louça e lembrar-se de pôr o lixo para fora”.
Sem querer desanimar-te nesse sonho de manter reto o teu casamento, veja o que disse Helen Rowland: “Quando uma garota se casa, está trocando a atenção de muitos homens pela desatenção de um só”.
E para dividirmos as responsabilidades a respeito das dificuldades no casamento, diz Mae West: “Nunca pergunte a um homem por onde ele andava. Se não estava fazendo nada errado, não precisa de álibi. E, se estava, a culpa é sua, minha filha”.
 Dona Flor, Flori precisa muito de você. Tanto é que veio a público, como se esta carta fosse sua serenata e buquê de flores, para dizer-te o quanto te ama.
Depois dos puxões de orelha, o que seu homem mais precisa é de colo. Portanto, aceite-o de volta, abra-lhe as portas e acolha-o na segurança do teu abraço. Não se sinta humilhada; parafraseando François Truffaut, saiba que, no amor, vocês mulheres são profissionais, enquanto nós, homens, somos amadores.
Meu amigo colocou a carta anônima no correio dois dias depois. Antes do final de semana seguinte Flor o aceitou de volta, mas com algumas ressalvas, que ele preferiu não narrar.
Além da meia dúzia de cervejas e do churrasco no bar do Telmo, ele apresentou sua esposa ao autor da carta. Nesse momento tive consciência de minhas dores interiores... Quer dizer, gosto de ajudar a curar as dores de amores dos outros, mas não consigo ME AJUDAR. Por que será, hem meus amigos?
Ali, diante-daquela-flor-de-li-ca-dís-si-ma, fiquei louco pra narrar minhas leituras de Nelson Rodrigues, de que não amamos na presença, e sim na falta e blá-blá-blá... Porém... Ela disse que serei um escritor famoso. Então paguei mais uma dúzia de cervejas. Todos ficamos bêbados, cantamos abraçados e desafinados e fomos felizes por algumas horas.

(B. B. Palermo)

sábado, 20 de julho de 2019

Meus porres e filmes roncando no sofá às três da manhã



De novo esqueci de levar o Dicão pra passear, o pobre anda com o intestino preso, mesmo se fartando com aquela ração importada. Ontem escolhi um filme louco, a minha cara, bebi todo o estoque e dormi pesado no sofá. Filmes de sexo e violência, como os de Tarantino, estão no meu ritmo, uns seres fracassados, decadentes, irmãos de lutas e tombos mas não desesperamos.
Em condições normais de sede e de culpas, não me interesso por filmes. Mas na bebedeira, corro pro Youtube e aí é a repetição do mesmo, volto aos velhos enredos. Em horas normais ouço música clássica e (ainda) não vi a Namo de cara feia, criticando meu gosto musical, tipo "nossa, como você suporta essas músicas horríveis?". Se um dia isso acontecer creio que a relação já era.
Se Namo insinua uma crítica a respeito dos excessos da noite passada, desconverso. "Você reparou na quantidade de buracos pelas ruas da cidade? E as rótulas, meu Deus, a gente nunca sabe qual o comportamento dos motoristas!".
Merda, esqueci de trocar o óleo do carro e pedir pro mecânico averiguar as pastilhas de freio. A suada mesada corre perigo. 
Namo quer ser vegana. Encontrem-me nas gôndolas do supermercado, me esgueirando por entre senhoras bem informadas por nutricionistas, à procura de brotos e grãos e cereais e nozes e frutas secas. Está fissurada pelas proteínas vegetais, quer se afastar das malditas carnes que entopem artérias e abrem as portas para o câncer.
Deus do céu, como é difícil garantir a vida a dois e o ócio indispensável à criação, a chopeira transbordando e não perder de vista o jogo do bicho e de sinuca e a proximidade de alguns amigos ordinários. Como o trânsito nas rodovias, eu preciso de áreas de escape, senão o sapato fica três números a menos no meu pé. 
E esses malditos copos sujos. De nada vale a ótima cerveja se os copos estão sujos. E Namo não quer estragar as unhas postiças, e quando lavo a louça irrompe uma guerra na pia, é enorme o risco de algum prato ou copo espatifar.
Meus livros manchados de cerveja e de vinho, os marcadores de página são recibos de jogos feitos ou bilhetes rasurados com números que sonhei e que pretendo apostar. Eis a síntese da minha odisseia, ou falta de sorte, que seja. Jesus, parece impossível alcançar a sonhada emancipação financeira sem fazer parte do mercado de trabalho.
Para que a dialética do casamento funcione alguém deve ser ludibriado de vez em quando. Deixo espalhadas sobre a mesa anotações dentro de livros e dezenas de folhas rasuradas, que chamo de inspirações para poemas e histórias. Proibi Namo de botar as mãos nessas preciosidades, para não invadir a privacidade nem espantar a diva criação.
Enquanto assisto o jogo de futebol pela TV e remoo essas coisas, Namo faz seu tricô e me observa serenamente, com olhos afetuosos. Do nada, um pensamento me invade e entristece, coisas de quem anda se informando sobre as sandices do mundo: muitas tartarugas que se alimentam do plástico espalhado pelos oceanos e então elas morrem antes de completarem cinquenta anos.

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Outra cama - Bukowski


outra cama
outra mulher
mais cortinas
outro banheiro
outra cozinha
outros olhos
outro cabelo
outros
pés e dedos.
todos à procura.
a busca eterna.
você fica na cama
ela se veste para o trabalho
e você se pergunta o que aconteceu
à última
e à outra antes dela…
é tudo tão confortável —
esse fazer amor
esse dormir juntos
a suave delicadeza…
após ela sair você se levanta e usa
o banheiro dela,
é tudo tão intimidante e estranho.
você retorna para a cama e
dorme mais uma hora.
quando você vai embora é com tristeza
mas você a verá novamente
quer funcione, quer não.
você dirige até a praia e fica sentado
em seu carro. é meio-dia.
— outra cama, outras orelhas, outros
brincos, outras bocas, outros chinelos, outros
vestidos
cores, portas, números de telefone.
você foi, certa vez, suficientemente forte para viver sozinho.
para um homem beirando os sessenta você deveria ser mais
sensato.
você dá a partida no carro e engata a primeira,
pensando, vou telefonar para janie logo que chegar,
não a vejo desde sexta-feira.
(Tradução: Pedro Gonzaga)

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Esse é o teu momento



Cada vez mais você se convence de que essas conversas nas paradas de ônibus, nas lancherias, nos bancos de praça e de consultórios e de escritórios, você acredita que elas farão pouca diferença para os rumos do mundo. Também as notícias que sugamos das redes sociais e outras coisas mais que estonteiam nossa alma e ouvidos, no máximo contribuirão para nosso estresse e excessos na comida e bebida e então tome-lhe intestino preso ou flatulência ou enxaqueca.
Gurus, seja de que área for, vomitam suas teses aleatórias, que insistem que são verdade, e o fazem para angariar mais seguidores e engordar sua conta bancária.
O AGORA não passa de um momento qualquer no interior de um caldeirão fervente e borbulhante, com vários ingredientes em conflito, às vezes em fogo alto, às vezes em fogo baixo. Mas você vive ESSE momento. Aproveite-o, então.
Sim, você pode saltar da ponte e rodopiar e ser recolhido num saco com os ossos quebrados, e ser transportado até a perícia, numa frieza e objetividade, como se fosse um saco de adubo para plantas, depois aguardar no necrotério, devidamente numerado e com atestado de óbito para então ser despachado pro cemitério e logo ser esquecido.
A fervura continua, indiferente.
Você pode ir à Marte, armar a barraca, cultivar abobrinhas, e nada mudará, serão apenas notícias passageiras. Porém, esse é o TEU momento. Aproveite.
Não vale à pena sofrer se não chamares atenção. Há tantos egos que se posicionam como se fossem o centro, porém logo tudo vira página de jornal que vai acender o fogo da lareira ou receber o cocô de cães e gatos da família.
Vivamos esse aleatório, embora seja um instante no interior de um processo que se desdobra há bilhões de anos.
Apesar de tudo, esse é o TEU momento. Então, aproveite. Faça algo que dê prazer, como era o BRINCAR, na infância.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 9 de julho de 2019

Se não existissem as mulheres, o dinheiro serviria pra quê?



Dia desses bebia uma cerveja redondinha, acompanhado pelo Beiço, e eis que um conhecido estacionou ali por perto seu carrão importado. Fez de conta que não nos viu. Fingimos que não o vimos.
O cara sempre foi competente em fazer carreira no magistério e sindicatos. Pessoa bem comportada, bom pai e amigo, figura esclarecida, na concepção dos filósofos modernos.
Acima de tudo, um "socialista dinheirista", expressão que o Beiço sempre repete.
- Cadelão, os caras juntam a maior quantidade possível de grana, e muitos acabam gastando com filhos paranóicos ou drogados, que foram criados debaixo de suas asas. Não consigo compreender essa obsessão por acumular, imagine o tempo dedicado a isso.
- Quem sabe esteja certo. Pra ele, é melhor investir em imóveis do que em lazer, arte, literatura e outros prazeres.
- Que nada, está faltando alma, meu amigo, o declínio do planeta está acelerado.
- Eu gostaria de ter grana, só pelo prazer em gastar. Se fosse rico, se estivesse rodeado de luxo, pegaria as putas mais lindas da parada e escreveria porra nenhuma.
- Hehehe... Você desocupado e duro já anda escrevendo nada.
O cretino ergueu o copo, num brinde.
- Aos dinheiristas!
- Diz aí, meu brother, se não existissem as mulheres, dinheiro serviria pra quê?
- Sabe o que eu ouvi de uma garota esses dias? "Nunca tive dinheiro, até que baixei as calcinhas".
- Hehehe... Lembrei de uma frase da atriz Mae West: "Um centavo economizado é uma garota perdida".
- Dinheiro, dinheiro... E tempos difíceis. Confesso que estou com medo, tenho me preocupado com meus irmãos de passagem por esse planetinha.
- Fala sério, Cadelão.
- Até pensei ser voluntário num projeto que apoie os velhinhos aposentados nos abrigos. Ou contar histórias num hospital de câncer infantil.
- Puta que pariu. Toma um porre que amanhã você não se lembra dessa loucura.
- Você tem razão. Meus planos para o futuro não duram uma semana.
- Hehehe... Que eu saiba, persistência você teve foi nunca.
- Mas amanhã poderá nascer um cara novo.
- Jesus, desconfio que você está lendo auto-ajuda! Volta, maluco, seja o que tu és!
- Atitude, meu caro, um dia eu mudo de atitude.
- To sabendo.

(B. B. Palermo)


quarta-feira, 3 de julho de 2019

Carta para Boccaccio



Estou inquieto e solitário, parecendo as roupas expostas como Cristo na cruz, nos cestões das lojas quase vazias. Os olhos vermelhos imploram atenção enquanto o povo passa, indiferente a tudo. Esse sentimento é momentâneo, outras imagens e cenas tomam seu lugar. Comi a magrela que tem uma loja de lingeries e perfumes importados ali, na outra esquina. Duas décadas atrás eu era um jovenzinho disputado pelas garotas. Xotas havia até demais. Eu esnobava. Hoje a empresária finge, ou nem sabe que eu existo.
Tudo é parte do processo.
Meu amigo, sei que o entedio com esses comentários, devia apenas descrever os fatos do jeito como prometi.Tomara que a decadência não me tenha como alvo, ela e sua pressa.
Vida que segue. Logo que cheguei no bar e sugava a primeira metade de uma long neck tentando esquecer a garota da loja de perfumes e a ressaca crônica, apareceu uma madame com seu cachorrinho no colo, com cara de guaxinim, um Spitz Alemão anão. O pet latiu, madame xingou e, impressionante, suas vozes eram semelhantes. Tudo se encaixava.
Coisas estranhas. Velhos resmungando no espaço vazio do bar. Deve ser o mesmo papo que repetem pros médicos nos consultórios e pras enfermeiras e cuidadoras e caixas de supermercado e atendentes de farmácias. Sim, século XXI, longevidade é o que se vê. Caixas e caixas de remédio + qualidade de vida, principalmente nos bairros de classe média e alta da cidade. Preciso espiar o que rola nas periferias. Creio que serão outras as descrições.
Às vezes me culpo por parecer preconceituoso com os velhos. Não sei por que me deixam ansioso. Só pode ser o desperdício de tempo viverem quase cem anos.
Temos todo tipo de velhos: os mansos, os agressivos, os saudosistas, os desmemoriados. Contam as horas para que chegue a noite e finalmente dormir. Amanhã tudo se repete. Tédio. Em sua maioria, parecem autômatos. Se chegar vivo a uma certa idade, vou dar um jeito pra que alguém me faça uma eutanásia, sem culpas a esse camarada, é claro.
Aqui no bar, observo a tia que brinca com o bebê de um casal de jovens, seus amigos.
- Quem vai fazer um aninho? Quem? Quem? Parabéns a você!...
Ninguém liga pra ela, deve ter bebido meia dúzia de garrafas. Ainda é jovem, mas a necessidade de repetir aqueles papos que todos estão por aqui a tornam uma velha chata. Já disse, sou preconceituoso.
Lembranças aleatórias. Minha última foda consumou-se rápida, rápida, não durou mais de três minutos e decepcionou as estatísticas, passou longe de trezentas estocadas e o meu coração saiu pela boca. Era como uma canção adolescente que não suporto ouvir agora. Melosa demais, entorpecedora de rebanhos, como diria Nietzsche. Pena você não ter vivido na época Dele. O cara saiu-se bem demais.
Merda. Já me desgarrei do rebanho? Talvez. Sou agora uma ovelha bebum e mal-humorada.
Outro cara que admiro é o Beethoven. Viver depois dele, desfrutar da Quinta Sinfonia em Dó Menor, é estar no lucro. Sua criação é potente, como uma pimenta que encontrei dia desses no supermercado. Chama-se Naga Morich, a pimenta.
Pra finalizar, estou relendo anotações que fiz por aí, nos bares. Leio e, pra maioria delas, faço um X com caneta tinta vermelha e escrevo HORRÍVEL. Foi o jeito que criei pra ter mais disciplina e reacender o amor próprio.
Inté.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 25 de junho de 2019

Carta para Nadja



Preciso de sossego. Para com essas mensagens no WhatsApp, sei que você está trepando com um plantador de soja, dos graúdos, nem vem, vi tua postagem no Facebook.
Dá um tempo, meu pau sangra e toneladas de pó repousam debaixo da cama, e isso não é pesadelo.
As amizades naquele teu bar são barra pesada, veja bem, sou escritor de meia dúzia de leitores guerreiros e persistentes, um sonhador que bebe vinho de dez reais a garrafa, mas que sabe que vai chegar lá, e tua tara por carne está roubando minha energia.
Foder é bom, eu adoro, mas o tempo está voando e eu tenho uma tonelada de ideias para teclar.
Foder é bom, mas eu sinto que o tesão de cadela no cio está sugando a minha arte.
Nadja, você acredita que me dá bem demais. São orifícios de todo lado e gemidos e gritos que inflam meu ego, mas você nunca vai me dar Nietzsche e Hemingway e Bukowski e John Fante.
Daí que me apaixono quando troco mensagens com jovens universitárias que se especializaram em literatura pós-moderna, onde o sujeito ou a história ou o personagem morreu, ou o filho da puta se metamorfoseou, ou se dividiu e reproduziu em múltiplos EUS... enfim... que se foda.
Meu bem, elas leem o que escrevo e comentam no privado e inclusive criam perfis falsos pra seguir a literatura de um louco dançando no inferno ou sugando o leite das tetas das hienas, elas querem bisbilhotar e devem ter breves orgasmos ao pensarem de onde vem a seiva que Cadelão ejacula no papel.
Está bem, está bem, admito, essas garotinhas torram meu saco, mas você poderia ser mais refinada. O apetite insano, o vocabulário grotesco, os palavrões, a boca que às vezes exala um hálito que lembra velório e vela queimada, então saiba por que evito teu beijo.
Pra não ficar louco, preciso escrever, senão saio pra rua e escalo postes e conserto a iluminação pública e devolvo a luz a essa cidade neurótica.
Preciso algo mais do que sexo. O excesso deixa tudo vulgar e previsível, como uma imensa freeway esperando o entra e sai na calmaria do amanhecer.
Nadja, tudo bem você sugar o litrão de cerveja no bico e se empanturrar de x-burguer e música de sofrência, mas escute, você fala demais, qualquer assunto é como se fosse o fim do mundo, é tanta opinião sem propósito que, ao ouvir essas merdas, dá vontade de ser um torturador de ratos.
O mundo está sem alma e você não dá sinais de que vá acordar, os patins estão empoeirados e você só pensa em unhas e sobrancelhas, enquanto guerras ameaçam estourar.
Compreenda, cansei de você  pagar motel e lotar três vezes o frigobar com cerveja e ice e chocolate. Cansei de assumir o papel de garanhão, cansei de te ver tirando dezenas de fotos nas festas pra se exibir e competir com outras piranhas.
Podes dizer que é neurose, mas na minha cabeça uma história de amor precisa acabar pra outra começar. Sei que não tem lógica, sei que vou sofrer, porém preciso limpar o roupeiro, botar cobertores e travesseiros no sol.
Está bem, está bem, eu volto a abrir a porta, mas vê lá, não quero ser alvejado por uma dúzia de tiros de um plantador de soja ciumento.
A vida se renova, meu bem, eu sou escravo da criação, o que foi já era, morreu, preciso cavalgar outros rabos. Aqui lembro do Bukowski, que diz "não estou morto, preciso ver as xotas. Cada flor é uma nova flor. As outras estão mortas".

(B. B. Palermo)

sábado, 22 de junho de 2019

Onde está a cabeça dos caras




Um maluco foi empinar sua motocicleta importada de mil cilindradas na avenida, a uns trinta metros do bar onde eu conversava com dois amigos. Perdeu o controle, já era noite, a moto rodopiou e voou em frente, acompanhada de faíscas por causa do atrito com o asfalto, e o sujeito rolou uma dúzia de metros e se chocou num carro que vinha no sentido contrário. O voo da motocicleta seguiu na contramão, chocando-se no pneu traseiro de um carro estacionado e foi pro outro lado da rua, uns cinquenta metros adiante.
- Caralho, e se o foguete vem em nossa direção?
- Já era, baby.
Um sujeito que estava numa mesa ao lado correu pra organizar o trânsito. Depois foi ajudar o cara da moto. Por incrível que pareça, o retardado estava consciente e sem qualquer osso quebrado.
- O filho da puta nasceu de novo.
- Já pensou se a máquina alcança as crianças que circulavam de bicicleta pela calçada?
Enchi o copo e observei a bolha se formar no bico da garrafa. Rechacei um pensamento que ganhava forma, "que pena não estar morto nessa hora". Agora que estou vivo, sinto o paladar a cada gole. Um dos meus amigos achou que era momento de dizer "viva bem cada minuto, como se fosse a frase ideal para iniciar um romance".
Com seus smartphones em punho, pessoas tiram fotos, gravam vídeos, antes que a motocicleta seja recolhida e o maluco conduzido ao hospital e antes que cheguem os caras da Brigada.
Como um balão que estoura sem ter alcançado o seu máximo, broxo ao ver toda essa cambada manuseando seus aparelhos. Precisam se ocupar, e eu necessito inventar algo para distraí-las desse hábito ridículo.
- Se a cabeça dos caras não está no aparelho, está no pau - disse outro de meus amigos.
O cretino dedicou muito suor pra cavalgar numa máquina de dar inveja a amigos e conhecidos. Mas pra se exibir na avenida não pode exagerar na bebida nem no pó. De que serve tudo isso?
Penso que ele deveria ser minha plateia, e não o contrário. Mas não levo jeito pra coisa. Não consigo escrever textinhos curtinhos e engraçadinhos pra chamar a atenção desses semiretardados.

(B. B. Palermo) 

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Nem que seja no purgatório



Pra ser sincero, e isso eu só conto pra vocês, não me estresso com as questões políticas e seus desdobramentos. Sei, pela idade e experiência, que a maioria das pessoas se comporta como vira-latas, latem, latem, mas na hora do "vamos ver", arriam o rabo entre as pernas. Ninguém é santo. Muitos podem ser ingênuos, ovelhas obedientes, mas se a corda esticar tornam-se babacas, militantes infantilizados, de um lado e de outro, e de má-fé e lambedores de saco e de botas.
Estava no bar do Maneta me esforçando pra acompanhá-lo no copo, ouvindo repetidas vezes seus planos e ladainhas. A mulher preferia ir à igreja a ter que dar pra ele. Os filhos discordavam de qualquer opinião do pai, sua autoridade já era. Garganteava, pela enésima vez, sua necessidade de acampar e pescar e morar numa chácara. Pensei em dar-lhe uns conselhos, como agradar a mulher, tomar banho mais seguido, ficar cheiroso, vestir uma roupa nova.
O pilantrinha me elegeu seu companheiro, "convidado especial", pra irmos num puteiro de quinta categoria. Se afeiçoou a uma garota que, logo vi, de pouquíssimas virtudes e sensibilidade. Só dava pra ele e aguentava seus papos porque ele metia sem dó a mão no bolso.

faceiro, logo estiquei o olho pra uma garota magérrima e dentinhos ralos e saltados e cabelos curtos, que trabalhava de garçonete. Juro que na hora me pareceu atraente, porém ao encontrá-la no outro dia, sóbrio, saltou aos olhos suas olheiras e cara chapada e voz meio travada e então minha decepção foi enorme.
O dia seguinte é o de menos. Maneta, empolgado, pagava todas, e eu usei meus trocados pra rodar, na máquina, rock dos anos Oitenta.
Quando a dentuça miudinha se aproximou, depois da troca de olhares, brotou o velho e mesmo desejo, o de adotar pets abandonados. Foi o que fiz. Ela se desfez do avental, acariciei seu rosto e cabelos. Apanhou o celular e me mostrou fotos de como era seu cabelo: preto, liso, que alcançava a bunda. Mas estava endividada, ganhou mil reais com a tosa. Foi aí que eu pensei que ela seria a cadela perfeita pra tomar conta do meu canil.
Ela me beijou e disse que gostou de minha pessoa e, do seu canto, agarrado à loira insensível e pouco confiável, o Maneta liberou dúzias de cerveja e rosnou "nada de uísque com energético".
Embora alto, notei as conversas e movimentos estranhos nos fundos do bar, uns caras bêbados quase se pegando e nos espiando desconfiados, e então uma luz me avisou de que eu e meu amigo poderíamos estar em perigo e o melhor a fazer era cair fora. Além do mais, Maneta tinha poucas opções, eram três da manhã, a mulher esperando por ele, e a puta pressionando pra assumir a titularidade e ganhar um bar dele, pra que ela administrasse.
O banheiro era um cubículo ordinário, e ficava do lado de fora. No caminho, olhei pro céu pra me sentir afagado e menos solitário, compartilhando o olhar e a presença das estrelas. Foi quando me deparei com umas luzes despencando do firmamento, explosões estranhas que ribombavam e sacudiam e fizeram tremer portas e janelas do puteiro.
 - Puta que pariu! É hoje, o meteoro tão aguardado acabou de chegar! Eis o momento perfeito: todo mundo, corruptos, fascistas ou comunistas, putas  e escritores fracassados, todos, todos irão pelos ares!
Atônito, retornei pro bar. Maneta acertava a conta, escrevi o número do meu telefone num caderno que a garotinha me alcançou e sussurrei "paciência, hoje o mundo veio abaixo, mas amanhã vou te foder gostoso, nem que seja no purgatório".

(B. B. Palermo)




sábado, 1 de junho de 2019

Um sujeito de classe média



A chuva e o bar me encharcam há três dias. Quando me chamam "Palermo!" levo um susto, tenho a impressão de que sou um pano encardido, pendurado num varal e trespassado pelos olhos da comunidade. Prefiro ser chamado "Cadelão!", aí me sinto na mesma condição do servente de pedreiro ou do encanador ou do catador de lixo.
Liguei a TV, uma da manhã, sintonizei um programa de entrevistas. Três convidados debatem sobre a importância medicinal e a liberação da Cannabis, e então meus olhos brilham e eu me lembro das toneladas de baseado, as bobagens que pronunciei, chapado, as milhares de canções que ouvi e o êxtase que experimentei, muito mais do que um cidadão do bem possa imaginar.
Esforço-me pra me colocar no lugar desses heróis, sejam crianças, adolescentes ou adultos, criaturas classificadas como de classe media. Fico arrepiado só de imaginar os perigos a que esses anjinhos estão submetidos, são as drogas e o álcool, os juros dos cartões de crédito, todas e nenhuma ideologia, o formato da terra, direitistas e esquerdistas furiosos, o sertanejo universitário.
É inevitável o pesadelo. Como um aficionado por armas, desperto rodeado por fantasmas. Nem falo de conflitos familiares ou do bullying nas escolas. Pressionado por tantas informações que se digladiam, fascistas versus comunistas, asnos versus raposas, porcos versus bois e vacas etcétera e tal, sou surpreendido por crises de ansiedade e de suor e de choro e uma vontade louca de encher a cara, e o motivo, ó caros amigos escrotos, o motivo é o de estar boiando na água fria desse mundinho que desfrutais.
Os filhos da puta colocam em risco minha condição social, que é a de poder comprar uma TV de cinquenta polegadas em quinze prestações, e digo o mesmo pro carrinho popular, que lavo e deixo brilhando e suas rodas tinindo todo o sábado de tarde.
 Sonho de consumo. Ter uma gorda conta bancária e uma pança enorme, só pra me estressar e correr pra academia cinco vezes por semana, a cada verão, e postar selfies caprichadas pra impressionar as garotas.
Desejo de consumo. Queimar fatias do meu salário nas farmácias, ter um prazer sádico ao ouvir os vendedores gargantearem lançamentos de complementos e vitaminas para isso e para aquilo.
Sonho de consumo. Ter uma dúzia de notas de cem na carteira e sentir uma alegria incomum ao ouvir a balconista dizer que os produtos tais são bons porque estão vendendo bem. Não comprar nada naquele instante, dizer que vai voando a um compromisso e que retornará logo depois.
Um privilegiado. Ao cair a noite deixo o celular no silencioso, pois grupos de conhecidos do WhatsApp, a que fui encarecidamente convidado a participar, desfilam mensagens de fé, de oração, Deus e Jesus e Virgem Maria e mais isso e aquilo. Imagens e caricaturas, como se fossem uma parelha de cavalos e sua carruagem me conduzindo pela escuridão da Idade Média em direção à prometida luz que vem do céu.
E de novo estou fulo e com desejo de botar meu exército nas ruas, chutando e cuspindo e dividindo olhares raivosos com as donas de casa fazendo compras em dias de preços estourando. 
Que merda, eu não precisava sofrer ao dar de cara com os clichês de sempre. Eu devia me acostumar com essa gente que vive agarrada em muletas e bengalas e andadores.
Cinismo e cara de pau. Saber que os outros estão compartilhando merda, também fazer isso e fingir que considera essas merdas edificantes para a vida desses boçais.
Cinismo e cara de pau. Não me afastar desses grupos. Ter esperança. Quem sabe amanhã alguém se inspire pra além da superfície e compartilhe algo que me entorte o queixo. Ó meus irmãos, companheiros de longos ensaios de imbecilidade, tudo o que espero é que algum de vocês me surpreenda com novidade e intensidade, como se me visitasse chutando a porta.
Eu podia estar transando sem camisinha, pegando e espalhando por aí o HIV, ou bamboleando pelas calçadas podre de bêbado. Porém, aqui estou com minhas pantufas e lareira em brasa e TV moderninha, vendo programas de quinta e bebericando cerveja puro malte porque sou um cara bem informado, cervejas que contêm cereais não maltados não passam de suco de milho, pelo menos foi o que postaram nas redes.
 Eu sou o que se poderia definir de cara útil, um bosta que todo dia se esforça pra ser promovido e classificado pelo IBGE como de classe média. Um sujeito que tem prazer bovino e uma visão mediana das coisas.

(B. B. Palermo)

Rua Jardim da Paz, 3030, apto 303

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