- Por onde tu andou, Cadelão? Estava te esperando no Telmo, e tu nada de
aparecer.
- Beiço, tropecei numas coisas estranhas, ontem. Estava passando diante
do bar do Mestre Luli
e vi uns caras e duas garotas com um violão, e a música que cantavam era
decente,
então sentei na mesa ao lado e tomei uns chopes.
Lembro que eles cantavam a música do Zé Ramalho, "Sinônimos".
Em seguida o cara que tocava violão cantou uma do John Lennon.
Eu me empolguei ainda mais quando ele começou a cantar uma da Blitz,
até eu fui junto... "Longe de casa / a mais de uma semana".
Meu, tive a alegre lembrança dos embalos de sexta à noite,
e nem percebi a velocidade com que o chope do meu copo evaporava.
Rapaz, a percepção de que ainda existe vida inteligente neste planeta
me fez pedir à garçonete uma folha e uma caneta.
Fiquei lá curtindo as canções e anotando umas coisas.
O cara que tocava e cantava se sentia o centro da roda,
e improvisou a música dos Mamonas, "Robocop gay".
Uma das duas garotas, uma loira de 20 e poucos anos, notou que eu
escrevia algo,
e assim que a música terminou ela falou pro bando:
"Gente, o Nasi tá escrevendo um pedido. Tô curiosa pra saber que
música ele quer ouvir..."
Beiço, foi aí que o maluco que tocava e cantava me perguntou:
"Pô, Nasi, quando tu vai voltar a cantar com a banda IRA?".
Eu fiquei indignado, como pode não saberem quem eu sou?
Será que não leram nenhum livro meu?
- Cadelão, que delírio é esse?
- Ah, Beiço, eu sei que tu não acredita, mas estou emprestando vida ao
velho Bukowski.
- Puta que pariu, que viagem! Hehehe... Tá, mas diz aí, o que rolou?
- Eu falei pro cara: "Velho, tu não tá me reconhecendo? Nunca leu
nada do Bukowski?"
Aí ele falou: "Acho que tu tá mentindo. O Bukowski tinha uma cara
cheia de buracos,
e tu até que é bem bonitinho".
A galera toda riu e eu murmurei, meio sem jeito: "Obrigado,
mestre".
Voltei-me pras duas garotas e falei: "Que que foi, anjinhos
rebeldes, rolou ciuminho?".
As garotas se fecharam um pouco e eu pensei ter ouvido: "Credo,
esse Nasi é muito estranho!".
Voltei-me pro cara do violão e provoquei: "Aposto que tu não manja
nada de blues".
Beiço, o cara levantou de onde estava, parou na minha frente,
fez aquele solo e cantou em falsete uma das melhores da Janis Joplin.
O bar todo parou pra ouvir e no final foi aquele aplauso.
O amigo do cantor estava cambaleante e se despediu da galera.
Perguntei pro cara do violão: "De onde você é", e ele apontou
pro céu.
Todo mundo riu. Aí eu falei: "Entendi, você é um alienígena vindo
do planeta Zaros."
A morena de uns 30 anos falou pra mim: "Nasi, tu é bem bobinho, né?
Não percebeu que ele é um poeta que desceu das estrelas?".
Beiço, todo mundo riu de novo, e não tive saída, disse a eles de qual
planeta desembarquei:
"Galera, eu sou do planeta Gugus. Vocês conhecem?".
Rolou silêncio... Aí, declamei este poema do Ricardo Silvestrin:
"Em Gugus,
as pessoas nascem velhas
e terminam bebês.
Vão desaprendendo e esquecendo
uma coisa a cada mês.
Cabelos brancos
ficam pretos,
carecas ganham tranças.
Com setenta anos,
todo mundo é criança".
Perguntei pro cara, que continuava imóvel na minha frente:
"E aí, piradão, sou um garoto sarado ou um velho escroto?"
O cara fez "não, não" com a cabeça, se afastou e embarcou na
nave
em que seu amigo aguardava, um Uno
1998.
- Tá, Cadelão... E os anjinhos ciumentos, não rolou nada?
- Beiço, nem tudo tá perdido nessa vida. É claro que o bando me convidou
para sentar com eles.
E perguntaram: "Nasi, o que tu anda fazendo na noite
com essa cara de cachorro abandonado?".
Disse a eles: "Sou um escritor desesperado, à procura de minha
imaginação.
Ela fugiu de casa na segunda-feira e até hoje não voltou".
Beiço, as garotas tinham sobre a mesa um aparelho bluetooth, e se
esforçaram pra me impressionar.
A morena de uns 30 anos, cabelo negro farto, sobrancelhas enigmáticas,
assim como sua boca e os olhões negros,
tomou conta da conversa e começou a rodar o repertório musical que ela
curtia.
Meu, era Pixinguinha, Vinicius, Tom Jobim, Cartola, Elis, Adoniran
Barbosa...
Eu me perguntava, gemendo em silêncio:
"Cara, isso tudo existe? Será que morri e acordei no
paraíso?".
Elas falavam e falavam, eu delirava de prazer, e os dois caras decidiram
dar uma volta,
disseram que iam atrás de cigarros.
Aos poucos a morena tomou conta da mesa, e eu soube por que, era uma
geminiana dominadora.
Disse pra ela: "Guria, tu não é desse mundo!". Aí ela dizia:
"Eu... Eu sou aleatória".
Beiço, as gurias iam juntas pro banheiro e demoravam séculos pra voltar.
E os dois caras simplesmente saíram de cena.
Da segunda vez que retornaram do banheiro, a morena me falou:
"Nasi, não te preocupa, só rolou uns beijinhos... mas não fale pra
ninguém".
- Tá, Cadelão... E aí??
- O que rolou depois que o bar fechou eu não consigo narrar. É emoção
demais, cara.
- Tu tá é de sacanagem!
(B. B. Palermo)