quarta-feira, 6 de maio de 2020

Se vocês não estão a fim, vou beber na minha ilha


- Apesar de principiante, tu não está totalmente cego. Até consegue sobrevoar essa névoa onde a manada dorme em berço esplêndido. Parece que tu é um dos poucos que não se desespera e corre em busca da redenção no final. Não me pergunte como fica o bem e o mal, Deus, o diabo, a salvação. Humanos falam demais e têm pouca sensibilidade, não compreendem os mistérios. Mesmo sem desespero ou esperança, talvez tu não tenha outra saída, senão também vendar os olhos e se jogar do alto, prendendo nas costas um paraquedas qualquer, imensamente frágil, despencando junto com a multidão. No desespero, pra fugir da insanidade individual, siga os demais, beba, relaxe, não te dobre pro sentimento de culpa. Teu ego tem essa mania de complicar tudo. Foda-se, ele, não precisa escolher sozinho, entre na fila e também caminhe rumo ao brete. Vocês estão acostumados com velhos clichês, como por exemplo "basta estar vivo" e "viver é muito perigoso". Daqui de cima, te garanto, a toda hora noto em vossos atos e hábitos o lugar comum de que "viver em rebanho é mais tranquilo".

Perplexo, analisava essa conversa e tentava adivinhar suas chances de razoabilidade. Aí, então, a voz do bichano metralhava noutra direção.
- Bobinho, só tu pode sobrevoar, imponente, o abismo. Afaste-se do rebanho. Retire a venda dos olhos. Tu pode levantar da mesa do bar depois de apenas uma cerveja. Tu pode escolher nem ir pro bar, e nem é porque tua garota te aguarda com seu amor incondicional e deveres e obrigações condicionadas.

  
Eu sabia que era impossível negociar com a garota um tempo e espaço mínimos. Eis uma luta cada vez mais paralisante. Mas como o mostrengo sabia disso?
 Estou perplexo com sua voz. Agora não aparece apenas de um rasante em campo aberto e depois de um ralhar estridente. O grito vem de todo e qualquer lugar, com diferentes tons, ora mais exaltados, ora mais calmos. Não sei se é sonho, ou se vem do alto e eu estou consciente e sóbrio. É possível, sim, que não esteja bêbado.
Eis uma de suas mensagens: "Eu sou o enviado, estou rastreando as cagadas de vocês, pessoinhas escrotas".
A compreensão embaralhou. Sei que não enlouqueci porque divago e ando em círculos, ora embretado pelo ceticismo,  ora pelo maravilhamento dessa novidade. (Me refiro à aparição da fera atrevida, criatura que visualiza nossas empreitadas de um jeito bem mais lúcido).
Minha percepção de como são as pessoas e coisas ficou mais aguçada, e isso não tem a ver com pó ou baseado.
Entendo vossa curiosidade sobre esse sujeitinho ousado. Também estou confuso.
Como saber se é correta a minha compreensão da realidade?
Se tanta gente delira, por que também não estou delirando?
Tenho quase certeza de que o bicho se aproxima para me aconselhar. Eu, um dos poucos interlocutores de que dispõe, que compreende sua angústia diante da grandiosa e quase impossível missão de reciclar as inutilidades diariamente produzidas por nós.
Não sei onde me classifico. Deu pane no meu cérebro.
Quero andar no mundo, dialogar, mas nada posso se a multidão não está a fim. Vou cuidar de minha ilha. Eis um bom motivo pra correr pro bar. São necessárias e suficientes algumas cervejas e poesia e uns capetinhas em volta, fazendo Tim-tim.

(B. B. Palermo)

sábado, 2 de maio de 2020

De novo ELE baixou das alturas



Aprendi com o filósofo Thoreau a meditar sobre a loucura da cidade, seu materialismo e artificialidade, e também a ter prazer nas caminhadas. O objetivo é me aproximar da natureza, de preferência aquela que menos sofreu interferência dos humanos. Caminho não para obter preparo físico, mas sim para encontrar inspiração.
Estava nessa de respirar fundo, inalando o ar "puro" e divagando sobre um monte de coisa, quando ELE de novo baixou das alturas. E foi logo dizendo: "Cadelão, aquela gorda bisbilhoteira falou mais coisas a teu respeito. Disse que tu tá igual uma barata que, depois de levar um pontapé, fica horas de pernas pra cima, se debatendo, desesperada pra voltar a ter o domínio da SUA realidade. Velho, não ligue para o que ela diz. Olhe ao teu redor, tu tem uma vida boa, embora simples, mas tem combustível e garotas pra pelo menos olhar e sonhar. Tu pode ser um bêbado devasso, mas teu semblante e o caminhar são leves, diferentemente desses indivíduos com sua pança de refri e comilanças nervosas e mil e uma preocupações e deveres e papéis sociais e muitos negócios e muita grana e nenhum propósito sublime na vida, apenas trabalhar e acumular. Meu, sei do teu sonho de ser muito lido e famoso. Tu quer mesmo isso? Então vai por mim. Nas tuas histórias, não confesse as coisas boas que tu fez na vida. Ninguém vai se interessar. Conte sim, em de-ta-lhes, as coisas mais sórdidas e sujas que tu fez e viu por aí, esse povo vai se deliciar e lambuzar de tanto ler e reler e pedir bis. Antes de subir, só mais um conselho, pra ti e teus amigos: fumem uns baseados, viajem... É bom pra relaxar... é bom pra dormir".

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Malditos, malditos, malditos!




Caminhava por aí mastigando os motivos pra esses putos não liberarem os 600 pilas, tô cheio de tanto ovo, frito e cozido e estrelado, meu crédito nos bares está por um fio, malditos, malditos, malditos! Gabinete do ódio, corvos do Centrão, oposição barulhenta e desorganizada feito Torre de Babel, só falam as tais merdas das obviedades, nada é sério nesse país, um governo babaca e ignorante que nem consegue matar minha sede de andarilho. A única verdade é a Janete, seu puteiro caindo aos pedaços traz a dignidade que não vejo em outro lugar.
Pisoteava essas implicâncias quando um urubu num voo rasante cagou na minha cabeça. Em seguida garganteou sua visão de cima, a respeito da realidade das coisas daqui debaixo. "Cadelão, uma capivara raivosa, que vive fazendo dietas da internet, me contou que tua vida não vale nem 600 pilas. Que a carniça do governo tá blefando com uma multidão de miseráveis como tu, e ela garantiu que isso é só o começo. Tu sabe o que mais a gorda falou? Que tu não tem serventia, tu é nada mais nada menos do que um rato que serve de cobaia pra esses pilantras de laboratório testarem uma vacina pro Covid 19 e faturarem bilhões. Mas fique tranquilo, tu é mais um dos 90% de pilantras dissimulados que ela conhece, isso, não importa a ideologia, que posam de santos nas redes sociais, mas ao olhar de perto são um bando de filhos da puta. Tô caindo fora, Cadelão, preciso voar bem alto e subir e subir e me purificar dessa carniça que é o lixão a céu aberto chamado mundo que tu vive. Ah, tu faz bem em se proteger dentro da bolha que tu nomeia de 'visão poética de mundo'. Inté, meu poderoso inocentinho".

(B. B. Palermo)


terça-feira, 28 de abril de 2020

Pega leve, Jesus


Estou na avenida e uma velhinha emparelha do meu lado e sorri e me "reconhece" e diz num verbo atropelado que sofre muito se sair de casa, "eu não consigo andar direito e não sei pra onde vou com essa máscara". Fitei-a desconcertado, e ela: "Da última vez que Jesus falou comigo ele disse 'ainda hoje serás um anjo ao lado de meu pai'".

Inventei uma desculpa qualquer e saí pela tangente e entrei no primeiro boteco e vi que Jesus estava comigo, com aquela cara de Beatle George,  e então falei "meu, tu é muito sacana, pega leve com essas criaturinhas ingênuas e apavoradas com a bosta desse vírus".

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Morte - passagem de um estado para outro...


DÚVIDA
Velha governanta do filósofo Descartes; avarenta e pechincheira, desconfia de tudo e de todos, menos dela.

GUERRA
Método Prático de Geografia.

MORTE
Nada de maior; simples passagem de um estado para outro - assim como quem se muda do estado do Rio Grande do Sul para o estado de Santa Catarina...

POBRES
Espetáculo predileto dos ricos.

RICOS
Espetáculo predileto dos pobres.

FRASES QUE MATAM
- Mas como você está bem conservado!

(Mario Quintana - Caderno H).

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Máscaras, máscaras, máscaras



Já nem sei se ela é personagem ou de verdade.
Sei que a dona da verdade estrangula meu ego:
- Cansei de apostar em você!
-Tu sabe que levo a sério o que tu promete.
- Agora já nem sei mais...

Como tu vai sair desse labirinto
e quebrar o cadeado dessa gaiola, Cadelão?
Ah, pois bem, tu corre e se refugia no bar... Bonito!

Dobro a esquina e sigo pela avenida e vejo rostos sérios,
nada de narizes e bocas, só máscaras, mascaras, máscaras.
Faço minha parte. Coopero com a ordem social,
guardo num saquinho que trago no bolso uma máscara preta e uma branca.
Testei antes de sair de casa e adorei o cheiro do pano novo,
e a senhora da loja foi gentil:
- Eu não lavo com água sanitária, esfrego com água e sabão de glicerina,
e o resto deixo por conta do sol.
Ao me despedir alcançou-me álcool-gel e eu senti um calafrio,
meu nariz farejou doses de uísque.
As pernas seguem pela avenida, enquanto a consciência fica presa
aos mandamentos da Tininha.
Ao cruzar por pré-adolescentes com seus fones de ouvido
me vem uma lembrança,
a vontade que sempre tive de saber os nomes dessas criaturas.
Um nome tem seus códigos, inclusive o desejo dos pais que o escolheram.
Penso em Virgília e Capitu e Marcela.
Penso nessa galera do Machado de Assis.
Sei, o nome marca o leitor tanto quanto o perfil psicológico do personagem.
Tento me colocar no lugar de Brás Cubas.
Esse soube contar, depois de defunto, a vida
enfadonha que teve.
Penso: qual dessas garotas tem o nome de personagens de nossa literatura?
Duas garotas correm, corpos atléticos, tênis confortáveis e estilosos.
Os nomes... Quero saber os nomes!
O meu amor, recordo agora, tem nome e apelido e muitos planos e desistências fáceis.
Fez umas corridas, insistiu pra que a acompanhasse, inventei uma desculpa,
acho que foi "não tenho pulmão, baby". Logo ela também desistiu.
Tinha seu ritual antes de flanar pela ciclovia.
Amarrava o cabelo e distribuía fartamente o protetor solar
e escolhia um dos seus quinze bonés maravilhosos.

- Tu é um insensível!
A frase ribomba por dentro e eu fantasio encontros com Sherazade,
contando-me aventuras grandiosas e maravilhosas de princesas e príncipes,
todos se redimindo de erros do passado através do amor.
É isso, uma contadora de histórias descongelaria meu coração.
Seria a pessoa certa para me salvar. Cadê?

Há um festival de máscaras que parecem ansiosas pra ter vida normal,
de cara limpa, sem medo de monstros invisíveis.
Apenas eu sigo devagar, atento a tudo, vou pra direita, vou pra esquerda,
vacilo, olho pra trás, sim, pareço bêbado.
Ando, paro, gesticulo em voz alta.
Diante de uma igreja fechada o padre diz à beata, outra ansiosa:
- As máscaras vão cair, igual as folhas deste outono.

Tininha espera o de sempre: que eu seja o cara que toda mulher e a comunidade sublima.
E assim ela me obriga a dirigir. E assim eu me mantenho quase sóbrio.
Rodamos de cabeça erguida, como convém, eu trocando as marchas, segunda e terceira, nunca a quarta ou a quinta, e ligando as setas e acelerando e pisando no freio como faz um verdadeiro líder.
Ela investigando o néctar da poluição desses ares incríveis do final de abril.

Estou perdido. Sou pobre e indeciso poeta, que prefere voltar a pé e sozinho para casa,
com cerveja suficiente para sentir a inspiração da noite e a alegria do crédito de uma semana liberado.
Nessas noites, acompanhado pela música barroca de Bach e dos blocos de papel e das canetas e sem a presença dela, sinto que o amor tem o momento certo para pulsar e correr na minha direção.
Foi o que lhe disse:
- Baby, não acelere esse calhambeque que é me reabilitar... Sou o que sou, sem uma vírgula pra tu regenerar. No momento certo, nosso encontro no jardim das almas vai florir. Não ligue pra esses obstáculos, são eles que nos vão aproximar.
Estou cansado de dizer pro meu bem:
- Guria, eu te ofereço poesia e filosofia e alegria e sexo razoável e tu me oferece juventude e energia... mais do que isso, tu atrai a explosão cósmica que é a essência do amor!
Eis o nosso embate. Tina de novo me leva a sério e ficamos bem por uma semana. Mas, é óbvio, eu preciso de um ventilador, mais do que isso, eu preciso de um respirador, quero uma UTI só para mim...
... pode ser o boteco mais próximo.

(B. B. Palermo)


sexta-feira, 17 de abril de 2020

Uma folha cheia de beijos com cinquenta tons de batom



Eu nunca sei se o cabelo dela está loiro ou castanho. Deve ser porque só tenho olhos pra aquele rabo sensacional. Ou porque meu tesão quer que ela seja loira. Sim, tem a ver também com minha condição etílica, mas isso é meu estado quase natural.
Demorei pra sacar que dentro dela habitam dois dogs. Isso, duas cadelas em conflito permanente. Uma shih tzu dócil e atenciosa e carinhosa, e uma pit bull indisciplinada e enlouquecida. Esses dois eus me obrigavam a planejar cada ação. E as suas várias explosões me indicavam o caminho.
É claro que eu adorava brincar com a dócil e carinhosa, mas ao mesmo tempo sentia que faltava algo, e isso deve ter relação com a busca por adrenalina. Assim: às vezes tinha vontade de aprisionar a pit bull num canil, mas aí ela me fitava com aqueles olhos. Primeiro chispando, e depois, aos poucos, serenando, e essa cena fazia a vara retesar no meio das pernas.
De qualquer maneira, ela era enigmática. Em muitas ocasiões rolava uma dificuldade pra decifrar suas mensagens e áudios que me enviava pelo Whats. Dizia: "Eu tenho o coração fechado". Isso me obrigava a demorados exercícios reflexivos, que demandavam, no mínimo, uma garrafa de vinho. Deus Baco me botava faceiro e então eu ligava pra ela e chutava opinião e ela chutava de volta, e estava tudo certo. Nos despedíamos com um "já estou com saudades" e "amanhã eu te ligo, paixão".
Gente, acreditando que agora estava no radar do amor verdadeiro, esses dias eu fui pra cama com dois litros de vinho na pança, duelando com a insônia e caindo na real: nosso papo foi muito barulho, como um carro de som anunciando uma boa nova, mas com pouca sinceridade. Jesus! Como chegamos a esse ponto?
Enquanto via na Tininha dois animaizinhos conflituosos, ela via no Cadelão um desajeitado e confiante mané perdigueiro. Isso, um excelente farejador de botecos onde jorrava uísque de segunda e vinho e cerveja. Mas não pensem que suas críticas faziam cócegas na minha autoestima. 
Como é mais cômodo falar dos outros do que de nós mesmos, adiantarei pra vocês uma coisinha: saquei que a guria se metamorfoseava, só pode, pela influência do pó. Ela sempre encontrava motivos pra se ajoelhar nas carreiras. Antes de uma prova pra obter carteira de motorista. Prova final de uma disciplina na universidade. Antes de ir pra balada. Na balada. No final da balada, ao retornar para casa, estando alegre ou frustrada.
Se estava em casa bebendo, esperando ela voltar de uma dessas festas, partíamos pra roleta russa, como mencionei na história anterior. Rolava uma discussão, eu alfinetava seus pontos fracos, Tininha incendiava e logo nos agarrávamos e dávamos aquela trepada inesquecível. Ao gozar, ela enfiava as unhas nas minhas costas e ombros e eu corria pro banheiro e o espelho mostrava o espetáculo do sangue escorrendo, diante de meus olhos aquelas unhas compridas e coloridas e bem feitas penetravam meu rosto feito de barro, aí o tesão maluco dançava, e o cheiro do sangue misturado ao seu cheiro de cavala galopavam. Corria pra cama onde ela me esperava, e logo estávamos brigando pela ponta no último páreo, e eu era o jóquei e dava uns tapas cada vez mais fortes nas suas ancas e garantíamos o primeiro lugar no final.

Já disse, uísque vagabundo altera meu estado de consciência. Devia ficar só na cerveja e um vinhozinho de vez em quando. Ontem a guria se comportou feito garotinha, isso, uma shih tzu toda afetuosa se enroscando no Cadelão. Imaginem, me presenteou uma folha cheia de seus beijos com cinquenta tons de batom. Não me contive e disse "meu bem, às vezes parece que tu é embalada por impulsos juvenis". Tininha se retesou, me lançou aquele olhar e eu pensei "hoje não vai ser arremesso de prato, vai ser de ventilador". Então o anjinho direcionou seu olhar para a mesa e apanhou umas coisas que eu tinha rabiscado. Decerto pensou que eu anotara umas ideias geniais. Amassou, calma e metodicamente, como se fosse cartesiana, e arremessou pra cesta do lixo. Porra! Foi um arremesso de três pontos! Apanhei a carteira e coloquei no bolso da calça, agarrei suas mãos, nossos corpos se roçaram, nossas energias vibraram, senti um tesão beliscando, era algo mais divino do que mundano, sussurrei no seu ouvido "eu também te amo"... e nos dirigimos, cambaleantes e esperançosos, para o bar do maneta.

(B. B. Palermo)


terça-feira, 14 de abril de 2020

Ela jogou contra a parede um prato Duralex que foi do enxoval de mamãezinha



Velho, tá complicado atravessar essa quarentena. Teoricamente quero me tornar sujeito melhor, menos corrompido, mas na prática a bebida fala mais alto.
Meus amigos de um posto de combustíveis deixam-me sentar num cantinho da loja de conveniência. Pulo um cordão de isolamento e me refugiu num pequeno espaço, sento num banquinho e escondo a cerveja e o copo atrás de uns objetos e faço de conta que escrevo, compenetrado, incríveis poemas e fascinantes ensaios.
A toda hora chegam os caras da POE, sei lá se indo ou se voltando do serviço, e é impressionante, eles não notam minha presença. A concentração se vai, o foco idem, como é que é, os cretinos não vão dar crédito pro poeta? Tu acha, maluco, que pra polícia eu sou invisível?
O sol atravessa as janelas do bar e a garçonete pede se eu quero que ela feche as cortinas. Não - respondo. É um crime não aceitar a companhia desse sol de abril. Além do mais, Baby, o deus sol, que nos observa e aquece e cuida, nos dá de graça vitamina D.
Em casa o tédio anda de muletas, e os cães do bairro ficam sem graça e latem por qualquer coisa e evaporam seu repertório, e eu me pergunto por que não tenho contemplado detalhes do que me cerca com o mesmo entusiasmo de outros tempos. Não posso esquecer de exercitar os cinco sentidos e multiplicar pelo menos por 10 o uso da imaginação.
Quando um ônibus dobra a esquina e bate de frente com meus olhos, tento rabiscar uma boa frase. Então o celular me desperta, Tininha envia uma mensagem. Merda, esqueci de deixar o aparelho no silencioso, não quero agora me preocupar com ela.
Daqui do meu cantinho visualizo o monitor do computador do caixa do bar, e na tela aparece o número 111. Bingo, vou apostar no Bicho. Aí a garçonete me lembra do isolamento, as bancas de jogo também estão de quarentena.
É isso. Restou-me apenas um jogo: roleta russa, com a Tininha. Regado com bom estoque de cerveja e paciência. Confesso que ela é a parte mais dolorida desses dias. Sua quarentena lembra as TPMs, e eu também fico pilhado com sua implicância, e então é aquela tentação, como aconteceu várias outras vezes, desejo partir pra uma DR.
Muito louca. É a mudança de rotina, quase não sai pra rua, nada de festas e outros programas com suas amigas, e depois isso: Tininha agarra meu calcanhar, bah, cara, não tenho escrito porra nenhuma, quero distância do teclado do noty, sim, como se o infeliz também estivesse contaminado pelo vírus. A doidona... e seus amigos. Eles não conseguem ter vida normal sem frequentar academia. Credo, não leia suas postagens  no Facebook. É cada coisa que as criaturas se envolvem, brincadeirinhas e polêmicas na política, por não suportarem o tédio do tempo livre.
Eu me pergunto: o que as amebas e os vermes e as bactérias e os vírus estão tramando nesse exato momento? Aposto que num século vindouro qualquer eles vão foder com os humanos. Sim, cara, com certeza eles estão se aperfeiçoando, enquanto os homo sapiens babacas, em vez de valorizarem e investirem na ciência, voltam seus lindos olhos para pseudogurus e pseudoteorias. Bah, cara, e quem consegue aguentar aquelas merdas, as tais das "teorias da conspiração"?
Rapaz, os "sapiens" dedicam boa parte da sua vida a um trabalho meio que escravo, repetitivo, mecânico. Eis o epicentro de suas vidas, tanto é que nos fins de semana, nas horas de lazer, enlouquecem os vizinhos com galanteios ridículos e música horrível a todo volume. Então, quando há a necessidade de se isolar por algumas semanas, longe da correria do trabalho e do comércio, eles não suportam a diferente rotina.
Caralho, lembrei agora dos cães, que foram domesticados pelos "sapiens" ao longo dos milênios, e essa sua "evolução" fez com que aceitem a condição de ficarem amarrados ou enjaulados em canis, como se esse fosse seu destino natural. Velho, onde foi parar toda a sua potencialidade? Pense no que os bichos e nós somos, e o que poderíamos ser.

Pra finalizar, criatura, nem te conto. Descobri que a Tininha tem uns cacoetes. Quando bebe e come uns salgadinhos ela tem vontade de palitar os dentes. Eu digo "Não!" e ela responde "Grrrrrr!". Aprendi com mamãezinha que isso é feio. E tem mais: esses dias exagerei no trago (que novidade) e, juro, quando ela se dirigiu à geladeira me pareceu que manquitolava, fiquei invocado, só faltava ela ter um defeito de nascença... Meu, insinuei uma sandice qualquer. Bah, a garota ficou furiosa, apanhou um prato que estava sobre a mesa e arremessou na parede. Era um dos pratos Duralex que ganhei de mamãezinha, isso, do seu enxoval, acho que da década de 70. Meu, pra quebrar um prato daqueles tem que pegar de jeito. Maluco, o prato virou farinha. Tá vendo só o que esse vírus de bosta tá fazendo com nossos nervos?

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Um silêncio tenso na sala de espera



No silêncio tenso da sala de espera
pobres guarda-chuvas dementes
deixam escorrer pingos da chuva.
Ela me observa
de máscara e olhos apavorados.
Cruzo e descruzo as pernas,
meu olho raio-x percorre
seu corpaço.
Acalmo-a através de
mensagens telepáticas.
"Não fique em pânico.
Isso não é nada.
Logo vai passar".

Pendurada numa parede,
Michelle Pfeiffer observa,
e eu lembro da adolescência,
quando sua performance nas telonas
inspirou tantas punhetas
gozadíssimas.
Sua juventude e alegria
não existem mais.
Agora ela vem me censurar
com semblante carregado,
balbuciando, num movimento
de lábios: "Que feio!".

Pobre Cadelão,
está cara a cara com o espelho.
Agora vai usar e estocar
dezenas de máscaras,
vai se camuflar e proteger
deses olhares
amedrontados.

(B. B. Palermo)


sexta-feira, 3 de abril de 2020

Que mais queres tu, sublime idiota? ("Memórias póstumas de Brás Cubas" - Machado de Assis)


Essa cambada de informações
que chegam de todo lado
deixam-me mais e mais vazio.
Um tédio compartilhado com quem não aprendeu
a pensar e a sentir, em tempos de ócio.
O que me faz doer as bolas é ter que dividir o oxigênio
com um bando de desocupados
que vomitam nos ouvidos sua gororoba.
Valha-me Deus,
que sorte poder ler um Dostoiévski
ou Leminski ou Machado... E tantos outros...
Também posso ouvir boa música, Um Schubert
ou Mozart ou Stravinsky... E tantos outros...
Não sinto falta dos aviões cortando o espaço aéreo
que minha vista alcança,
o que me enche o saco são mosquitos e papagaios,
verborrágicos e imbecis.
Não, não posso me queixar.
O que requer esforço maior
é deixar pra lá o celular
e evitar um passeio nesse mercado público
das opiniões obsessivas.
Ouvi dizer que o sexo continua em falta,
mesmo com o tempo disponível,
bocejando a nossos pés,
igual a um cão fiel.
Aqui estamos, devorando a sobremesa
do tempo
que temos à disposição
e não estamos nem aí.
Isso... Não admitimos
que logo seremos pontuais
em nossas sepulturas.

(B. B. Palermo)

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Tudo cairá no esquecimento feito cusparada numa vitrine de loja de grife



Vou driblar o puto do vírus
afogá-lo no álcool
aniquilá-lo através do cansaço,
algumas várias doses
até ele sucumbir
com falta de ar.

O cretino não vai ter chance
nada de tubos de oxigênio
e enfermeiras dedicadas e empáticas,
nas UTIs.
Vou atropelar essa natureza
audaciosa
com meu carrão blindado.

Não há poesia,
não há mistério,
só há tecnologia.
Até os meteoros são fotografados
como se fossem xoxotinhas das ninfetas
em sites pornôs.

Um tempo insuportável,
cretinos matraqueando política
como se soubessem abrir as janelas
para compreender esse mundo
em ebulição.
Papagaios filhos da puta
espalham gotículas do nada
misturando gasoso com líquido
e líquido com gasoso,
deixando a realidade
uma velha conhecida
massa miojo.
E esse nada
não será depurado
nem com oceanos de
álcool-gel.

Ainda bem que isso vai passar.
Tudo cairá no esquecimento,
como cusparada na vitrine
de loja de grife,
antes do amanhecer.

(B. B. Palermo)


Reflexão num boteco, onde uma cachorra preta enorme me observa com olhos tristes

A cadela já envelhecida

pode não reter na memória
as coisas boas ou más que viveu.
Tenho muita coisa represada,
experiências desagradáveis
que espreitam,
mesmo reprimidas.
Creio que a literatura é válvula de escape,
uma saída de emergência pra essa viagem
que é existir.
Uma viagem catastrófica e, também,
tantas vezes maravilhosa,
com surpresas tais que fazem 
com que a vida valha a pena.

(B. B. Palermo)

Pobrezinho do B. B. Palermo

  Uma amiga – hoje – me falou: – Américo, você trata muito mal o B. B. Palermo! Fiquei paralisado. Confesso que tenho algumas dificu...