segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O ORKUT DO NICHOLAS



Deparei-me com a difícil tarefa de traçar o perfil do Nicholas, para fazer seu orkut. Não pensem que estou seguro quanto à necessidade de expor meu gato de estimação na rede virtual. É que, me parece, estamos todos carentes de interatividade. E como nem sempre a relação com visinhos e amigos, pelos meios tradicionais, tem nos deixado satisfeitos, não vejo como fugirmos de novas aventuras, fazendo uso das ferramentas virtuais. Até já vi ser parodiada, em algum lugar, a frase que Fernando Pessoa eternizou: “Navegar na web é preciso, viver não é preciso”.

Não me perguntem por que o Nicholas merece interagir virtualmente. Eu decidi, movido pelas mais profundas convicções, que ele deve ampliar suas formas de convívio, para além dos quintais e telhados dos fundos das casas onde ele se move. Obviamente, fui sensibilizado pela maneira insistente com que ele roça cabeça, tronco e rabo em minhas pernas. E se isso não é um pedido por mais interação, então eu já não sei mais nada.


Tomada a decisão, vamos traçar o seu perfil. Eis um dilema: como diminuir a distância entre o que pensamos que ele é, e a imagem que ele faz de si próprio? Numa rápida pesquisa na internet, constatei que as pessoas colocam em seu perfil traços de sua personalidade considerados os ideais –os melhores. Por exemplo, ninguém admite que é carente de afeto. Vai dizer, simplesmente, “que está à procura de novos amigos”.


Pelo que tenho observado, muitas vezes o Nicholas aparece pra dar uma espiadinha e, passados cinco minutos, ele desaparece. Deduzo que veio saber se está tudo bem aqui por esses lados. Ele se preocupa com o bem-estar dos outros, é um ser altruísta.


Ao dizer essas coisas, percebo que estou me referindo à alma – de bichos e de gente. No caso da alma dos gatos, ela pode ser descrita comparando-a com a alma dos cães. Todo mundo sabe: cachorro é leal, companheiro. Quanto ao gato, dizem que ele “é doméstico só o suficiente aos seus interesses”. A Martha Medeiros (Z. H. de 10/02/2010) disse o seguinte: “Se você quer uma criatura que te siga, idolatre, agrade, atenda imediatamente ao ser chamada, que te convide a passear todos os dias, então não adote um gato”.


Isso é bom ou ruim? Não vem ao caso. O gato é mais “na dele”, é independente.


Por outro lado, se ele vem até minha casa, roça minhas pernas com cabeça e rabo, é porque traz nele traços humanos, ou busca por humanização. Foi por isso que ganhou um nome, data de aniversário, horóscopo, adereços do time a que torço, etc. E é assim que ele embarca, aos poucos, no mesmo barco que o meu, que é interagir numa sociedade de consumo.

Não pensem que não me perguntei a respeito da minha dedicação a um gato, quando tantas crianças estão com fome e desassistidas no R. S. e no Brasil. Claro que poderia me engajar em algum trabalho voluntário. Aliás, todos nós, que a cada dia cultivamos o jardim de nosso orkut, não poderíamos dedicar um pouco de nosso tempo e usar essa ferramenta para ajudar os outros?

Pensando bem, decidi dar um tempo para meu gato, vou deixa-lo passear pelos bosques e subir nos telhados da vizinhança, enquanto uso a internet para pesquisar sobre esses felinos. Vou me dedicar à poesia, ou melhor, ver que poemas foram escritos tendo os gatos como personagens. Essa é ou não é mais uma utilidade da internet? Vejam só este poema do Ferreira Gular, que encontrei num blog:


A fala do gato

O gato siamês tem uns vinte miados:
alguns são suaves, outros exaltados;
há os miados graves e há os engasgados.
É quase um idioma que ainda não entendo
mas o gato bem sabe o que está dizendo.
E até falou comigo em linguagem de gente.
Disse: "meu amigo", assim de repente.
Então eu acordei feliz e contente!
Era sonho, claro.
Mas, como se sabe,
é no sonho que ocorre o que se deseja
e no mundo não cabe.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

PEJUÇARA - Escobar Nogueira



NÚMEROS


Éramos 4.186.

Menos os jovens

que foram estudar na capital,

menos a mão-de-obra

que foi para o pólo industrial,

menos os aposentados

que foram morar no litoral,

menos os falecidos,

os fugidos,

os abduzidos,

restamos 3.678, no total.


Pejuçara ficará tão pequena

que poderemos nos contar a dedo,

que saberemos tudo da vida de todos,

que deixaremos de ser um povo

para ser uma família de novo.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

A metamorfose - L. F. Veríssimo


A barata acordou um dia e viu que tinha se transformado num ser humano. Começou a mexer suas patas e descobriu que só tinha quatro, que eram grandes e pesadas e de articulação difícil. Acionou suas antenas e não tinha mais antenas. Quis emitir um pequeno som de surpresa e, sem querer, deu um grunhido. As outras baratas fugiram aterrorizadas para trás do móvel. Ela quis segui-las, mas não coube atrás do móvel. O seu primeiro pensamento humano foi: que vergonha, estou nua! O seu segundo pensamento humano foi: que horror! Preciso me livrar dessas baratas!


Pensar, para a ex-barata, era uma novidade. Antigamente ela seguia o seu instinto. Agora precisava racionar. Fez uma espécie de manto da cortina da sala para cobrir sua nudez. Saiu pela casa, caminhando junto à parede, porque os hábitos morrem devagar. Encontrou um quarto, um armário, roupas de baixo, um vestido. Olhou-se no espelho e achou-se bonita. Para um ex-barata. Maquilou-se. Todas as baratas são iguais, mas uma mulher precisa realçar a sua personalidade. Adotou um nome: Vandirene. Mais tarde descobriu que só um nome não bastava. A que classe pertencia? Tinha educação? Referência ? Conseguiu, a muito custo um emprego como faxineira. Sua experiência de barata lhe dava acesso à sujeiras mal suspeitadas, era uma boa faxineira.

Difícil era ser gente. As baratas comem o que encontram pela frente. Vandirene precisava comprar sua comida e o dinheiro não chegava. As baratas se acasalam num roçar de antenas, mas os seres humanos não. Se conhecem, namoram, brigam, fazem as pazes, resolvem se casar, hesitam. Será que o dinheiro vai dar? Conseguir casa, móveis, eletrodomésticos, roupa de cama, mesa e banho. A primeira noite. Vandirene e seu torneiro mecânico. Difícil. Você não sabe nada, bem? Como dizer que a virgindade é desconhecida entre as baratas? As preliminares, o nervosismo. Foi bom? Eu sei que não foi. Você não me ama. Se eu fosse alguém você me amaria. Vocês falam demais, disse Vandirene. Queria dizer vocês, os humanos, mas o marido não entendeu; pensou que era vocês os homens. Vandirene apanhou. O marido a ameaçou de morte. Vandirene não entendeu. O conceito de morte não existe entre as baratas. Vandirene não acreditou. Como é que alguém pode viver sabendo que ia morrer?

Vandirene teve filhos. Lutou muito. Filas do INPS. Creches. Pouco leite. O marido desempregado. Finalmente, acertou na esportiva. Quase quatro milhões. Entre as baratas, ter ou não ter quatro milhões não faria diferença. A barata continuaria a ter o mesmo aspecto e a andar com o mesmo grupo. Mas Vandirene mudou. Empregou o dinheiro. Trocou de bairro. Comprou casa. Passou a se vestir bem, a comer e dar de comer de tudo, a cuidar onde colocava o pronome. Subiu de classe. (Entre as baratas, não existe o conceito de classe). Contratou babás e entrou na PUC. Começou a ler tudo o que podia. Sua maior preocupação era a morte. Ela ia morrer. Os filhos iam morrer. O marido ia morrer – não que ele fizesse falta. O mundo inteiro, um dia, ia desaparecer. O sol. O Universo. Tudo. Se espaço é o que existe entre a matéria, o que é que fica quando não há mais matéria? Como se chama a ausência do vazio? E o que será de mim quando não houver mais nem o nada? A angústia é desconhecida entre as baratas.

Vandirene acordou um dia e viu que tinha se transformado de novo numa barata. Seu penúltimo pensamento humano foi, meu Deus, a casa foi dedetizada há dois dias! Seu último pensamento humano foi para o seu dinheiro rendendo na financeira e o que o safado do marido, seu herdeiro legal, faria com tudo. Depois desceu pelo pé da cama e correu para trás de um móvel. Não pensava mais em nada. Era puro instinto. Morreu em cinco minutos, mas foram os cinco minutos mais felizes da sua vida. Kafka não significa nada para as baratas.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

CARNAVAL



Faces rosadas sobem as escadas.
É carnaval, e ela pode ser gata siamesa,
ou cobra fantasiada de ursinho de pelúcia.
Descubro a cobra com assombro.
Recuo, baixo a guarda, como fez Adão.
Furo os olhos, e meu mundo
se ilumina dos escombros.
Meu filme, finalmente, perdeu a dimensão.
Ela se aproxima e esbofeteia meu rosto,
diz que não tenho vergonha na cara,
devo pagar penitência e me auto-flagelar.
Elegante, desfila na passarela de um novo paraíso,
cheio de ultrajes sem estatística nem qualquer rigor.
De mãos abanando, tateio outra tribo,
não volto pra casa sozinho, seja lá
o que o paraíso for.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

TIRANDO O CHAPÉU PRA DEUS



Espantado, o pai escuta do filho a seguinte revelação:
- Não quero ser escritor, quero ser engenheiro! Adoro fazer cálculos, plantas-baixas de casas, e até já comprei uma calculadora!

Mas era só o que faltava, dias atrás o piá disse que não gostava de matemática!


É duro não colocar o desejo de pai no lombo do filho. Só resta agora ensaiar um diálogo com a cria:
- Filho, isso não é problema. Há grandes escritores e poetas, até compositores e músicos, que são engenheiros, médicos... Uma coisa não exclui a outra! Tu sabe que, no Brasil, pouquíssimos escritores conseguem viver de seus livros? É, eles têm que ter outra profissão. E vale o mesmo para os músicos, etc. Você conhece o Moacyr Scliar, não? Pois é, a maioria sabe que ele é escritor, e não é por acaso, ele é lido no mundo todo, e faz parte da Academia Brasileira de Letras. Porém, ele é médico também. E sabe que a arte da medicina tem tudo a ver com a literatura? Pensa no que as duas artes fazem, e você vai ver que isso é verdade. Se a literatura toca na alma das pessoas, a medicina toca na alma e no corpo. E o talento numa coisa não exclui o talento para outras.


Coincidência ou não, essa conversa de filho para pai deu-se na semana em que o Bagual nos deixou. Conheci ele, primeiro, como médico. Naqueles exames que nos autorizavam a usar a piscina do clube. A gente dava um basta nas frieiras às vésperas de abertura da temporada. Nosso sobrenome na carteirinha servia de pontapé para uma conversa animada. E ele sempre conhecia alguém da família!


Aos poucos, quando suas composições começaram a habitar nosso universo, desenhamos um grande poeta em nosso imaginário. Aí, à imagem pública do médico Martin Agnoletto estava sobreposta à do poeta Martin Agnoletto. Mas só agora é que eu me pergunto sobre esse talento de transformar as lidas do cotidiano em poesia, trançar a palha dos versos com a mesma desenvoltura de quem maneja um bisturi numa sala de cirurgia.


Bagual, isso é para poucos. A arte da palavra requer muito mais do que conhecimento técnico. Ao escrever lindas canções, deixavas te envolver numa atmosfera que era a de “ouvir a voz do coração”.


É o que eu tento, como pretendente a poeta sonhador. Mas é difícil! Chego a pensar, de vez em quando, que não nasci para isso. Mas é uma tal teimosia (pretensão exagerada?), uma crença de que, nalgum momento, serei visitado pela deusa da criação. E a toda hora me vem à cabeça um poema do Mário Quintana, intitulado Versículo inédito do Gênesis: “E eis que, tendo Deus descansado no sétimo dia, os poetas continuaram a obra da criação”.


Com alguma culpa, constato exatamente essa missão humana, apenas humana, como diz o Quintana, de continuar a criar, sendo essa a maior razão de nossa vida. Não, não estou descartando outras lidas do nosso dia-a-dia. Mas confesso que a eternidade em que acredito, com certeza absoluta, está na nossa capacidade de sermos criativos. Acho que era esse também o ideal de Fernando Pessoa, quando ele disse que “Viver não é necessário; o que é necessário é criar”.


A culpa por ter estado indiferente ao que se passava contigo, com a desculpa de ter andado muito ocupado, tem me levado a tentar decifrar (só agora?) o quanto você teria para nos dizer sobre a vida, o amor, a bondade, ou a maldade dos homens. Uma parte disso será revelado pela narrativa que vai nascer da memória de teus amigos e familiares. Mas a outra (grande) parte vou encontrar ouvindo as músicas e prestando atenção nas letras que você compôs. E uma certeza, a grande certeza, eu já tenho: tua eternidade está garantida, ao lado dos grandes criadores! Qual a importância disso, agora que vivemos a dor da tua falta entre nós? Só o tempo vai nos acalmar nessa hora, e a eternização de tua obra vai se solidificar com o passar do tempo.


Mas uma lição que aprendi do pouco convívio que tive contigo, acima de tudo, e que gostaria de confessar aos leitores, é o seguinte: de nada serve nossa inteligência, se ela não andar de mãos dadas com o nosso coração! Foi do convívio dessas duas partes de teu ser que nos presenteou com versos do tipo: “Na xucra bailanta” “no fundo dos céus” “tirando o chapéu pra Deus”!

Apenas este instante

  A prosa daquele senhor impregna o ar. Ao exalar suas frases, meio que balança a cabeça, as pernas, dá a impressão de que vai para muit...