Tenho procurado fazer leituras lúcidas, em meio a essa torre de Babel de informações que me deparo a toda hora, com relação aos manifestos que estão ocorrendo no país. Me chamou especial atenção o texto abaixo, com sua lucidez crítico-literária que o diferencia da maioria dos colunistas que tenho lido.
Sinto falta da Dívida Externa nessas manifestações. Houve um tempo em que todo mundo falava da Dívida Externa. Existia até um cálculo de quanto cada brasileiro devia já ao nascer. Nas manifestações de então, as pessoas carregavam faixas ou pichavam as paredes com a frase clássica: "Fora FMI!".
Tinha uma mulher do FMI que vinha para cá. Ela usava talleur e carregava uma pasta. Era uma mulher muito séria. Obviamente, estava insatisfeita com o Brasil e se reunia com os ministros e o presidente para fazer cobranças. Eu via fotos daquela mulher sisuda nos jornais e ficava com raiva dos Estados Unidos. Malditos ianques! O Briza é quem tinha razão quando falava dos interésses.
Lembro de altruístas na faculdade que juravam que, se ficassem bilionários, pagariam a Dívida Externa. Com o pagamento da Dívida Externa matariam o dragão da inflação e a serpente do desemprego, e o Brasil estaria salvo. Aqueles meus colegas devem ter ficado bilionários, porque a Dívida Externa se extinguiu como as máquinas de escrever, o dragão da inflação virou lagartixa e a serpente do desemprego agora é uma minhoca. Mas, que coisa, o Brasil ainda não foi salvo.
Hoje, nas manifestações, ninguém mais reclama dos Estados Unidos, da Dívida Externa ou do FMI. O inimigo não está mais no Exterior, embora continue no lado de fora e acima do brasileiro: é o Estado, o Sistema ou até a "Grande Mídia" e os empresários. Trata-se de uma atitude muito saudável. Alivia a pressão psicológica interna. Se você compra peças de carro roubadas, faz gato na TV a cabo, superfatura a nota, sonega imposto ou fura a fila, você faz porque o patrão e o Estado o oprimem e a Grande Mídia não denuncia.
Você vive mal, a classe média vive mal. Não teria como viver bem: 80 milhões de pessoas ascenderam de classe social no Brasil, nos últimos 10 anos. São 80 milhões se movimentando, como os hunos pressionando os germanos e os germanos derrubando o Império Romano. 80 milhões ocupando um espaço que antes não ocupavam. O Brasil foi feito para menos gente. Não há tantas estradas, médicos, engenheiros, energia elétrica, pintores, pedreiros e água para tantos consumidores. Falta estrutura para crescimento tão rápido, e quem devia prever a estrutura gastou em corrupção, inchaço da máquina pública, tudo o que sabemos.
Quando o menino cresce rápido, doem-lhe os ossos. Gera mal-estar.
O mal-estar da classe média desbordou para as ruas. A vida está ruim e alguém precisa resolver isso logo. Quem? Alguém que está do lado de fora e acima. É lá que reside o Mal. Não mais nos Estados Unidos, não mais no FMI, talvez nos gabinetes arejados do poder, talvez dentro dos carros com vidros escuros, talvez até debaixo dos capacetes da polícia. Sabe-se lá. Mas isso tudo alguém vai ter que resolver.
* Texto publicado na Zero Hora desta sexta-feira, 21/06/2013.