terça-feira, 11 de abril de 2017

Intertextualidade


Para entender o que é o conceito de "intertextualidade", um exemplo divertido. O jogo do "não confunda": Não confunda "bife à milanesa" com "bife ali na mesa", Não confunda "conhaque de alcatrão" com "catraca de canhão", Não confunda "força da opinião pública" com "opinião da força pública". Como se vê, é possível elaborar um texto novo a partir de um texto já existente. É assim que os textos "conversam" entre si. É comum encontrar ecos ou referências de um texto em outro. A essa relação se dá o nome de intertextualidade. 
Há vários exemplos de intertextualidade na literatura. Veja, a seguir, como Ricardo Azevedo brinca com o famoso poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade.

Quadrilha - Carlos Drummond de Andrade

João amava Teresa que amava Raimundo 
que amava Maria que amava Joaquim que 
amava Lili que não amava ninguém. 
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o 
convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para 
tia, Joaquim suicidou-se e 
Lili casou-se com J. Pinto Fernandes que não 
tinha entrado na história.

Quadrilha da sujeira - Ricardo Azevedo

João joga um palitinho de sorvete na 
rua de Teresa que joga uma latinha de 
refrigerante na rua de Raimundo que 
joga um saquinho plástico na rua de Joaquim que 
joga uma garrafinha velha na rua de Lili. 
Lili joga um pedacinho de isopor na 
rua de João que joga uma embalagenzinha de 
não sei o quê na rua de Teresa que 
joga um lencinho de papel na rua de Raimundo 
que joga uma tampinha de refrigerante 
na rua de Joaquim que joga um papelzinho 
de bala na rua de J.Pinto Fernandes 
que ainda nem tinha entrado na história. 
Do site  https://educacao.uol.com.br/disciplinas/portugues/intertextualidade-textos-conversam-entre-si.htm

sábado, 8 de abril de 2017

Eu cá, detesto putos!


 Que não haja dúvidas, detesto putos!

   Detesto-os porque são mais novos do que eu. E não posso com isso!

   Além do mais, há demasiados putos! E fazem muito barulho a divertir-se!

   Quando pedem que lhes conte uma história… …acreditam em tudo o que digo!

   Aprendem depressa coisas incrivelmente difíceis.

   Ainda por cima, têm tempo para não fazer nada… …a não ser palermices.

   Mas quando lhes dou umas palmadas, eles choram e eu fico muito triste.

   E dormem demasiado bem. Ou então, têm medos ridículos.

   Também os detesto porque quase nunca estão doentes. Mas quando ficam doentes a sério, tornam-se o centro do mundo.

   Comigo, não é assim!

   Detesto os putos; veem coisas que eu já não vejo!

   Detesto especialmente aqueles que mamam…

   e aqueles que se tornam como as mães cedo demais.

   Além de tudo isto, os putos gostam muito dos animais.

   E quando gostam muito uns dos outros? Então aí, adeus discrição!

   Detesto os putos porque não os consigo esquecer…

   Mas quando vemos um, esquecemo-nos do que é velho. E não suporto isso!

   Quando se põem a cantar em conjunto, é tão bonito que até choro. E detesto parecer-me com um puto que chora.

   Como detesto a franqueza deles!

   E, como se não chegasse, segundo dizem, eles desenham melhor do que eu.

   Conclusão: detesto os putos… porque mesmo se lhes digo que os detesto, eles gostam ainda mais de mim!
Pef 
Moi, j’ai horreur des gosses! 
Paris, Albin Michel Jeunesse, 1998 
(Tradução e adaptação)

Do blog http://eixodoleitorcrateus.blogspot.com.br/

As velhinhas da Rue Hamelin - Rubem Braga


 Paris, setembro – Rue Hamelin, onde morreu Proust. Ali pertinho é a rua Lauriston, onde morreram muitas outras pessoas menos conhecidas: ali era a casa das torturas da Gestapo. Mas na rue Hamelin há coisas imortais: suas velhinhas não morrem nunca. Há aquelas duas que vão todo dia ao mesmo bistrô; uma corpulenta, sempre de chapéu, que lê o Fígaro e reclama da qualidade do vinho, mas reclama com uma dignidade que se ajusta bem aos seus 70 anos e muitos anos; reclama e bebe. Mora um pouco para abaixo de minha casa, e eu gostaria de imaginar que mora na casa em que morreu Proust; mas não.
          Atravessa a avenida Kleber com um passo lento no seu vestido negro sempre impecável; como todas essas outras digníssimas velhas usa um vestido que se fecha no pescoço em uma espécie de gola alta, onde há rendas e talvez elástico, talvez barbatana, uma gola que mantém a cabeça ereta através dos séculos, capaz de ver de cima, sem se curvar, as pequenezas do mundo presente. Atravessa a avenida sem olhar para os lados, como se todos os choferes de Paris tivessem o dever de respeitá-la; talvez ao se aproximarem de sua pessoa esses carros motorizados se transformem secretamente em coches e diligências, para fazer ambiente para a sua travessia.
          A outra velhinha tem o ar triste – e come muito. Não creio que dure muito; mas é verdade que há trinta anos atrás ela poderia dar a mesma impressão. É infinitamente velha, e apesar da gola apertada anda devagarinho a olhar disfarçadamente para o chão, como se temesse tropeçar e cair dentro de alguma sepultura. Sua própria velhice já deve ser uma coisa muito velha; ela deve ter perdido algum neto muito querido na guerra franco-prussiana e desde então tem esse ar triste.
          Há ainda uma velha pobre, mas também vestida com a maior dignidade. Outro dia cheguei à janela, atraído por alguns sons feios e tristes que pareciam querer se encaminhar no sentido de uma certa melodia: era essa velha que cantava. Cantava no meio da rua, em pleno sol, parada, olhando os cinco andares de janela. Hesitei um instante antes de lhe jogar algum dinheiro. Sua presença era tão severa como a da genitora de um magistrado mineiro em dia de missa de sétimo dia pela alma de outra genitora de outro magistrado, na igreja de São José. Temi ofendê-la jogando-lhe dinheiro, como já fizera em benefício do cego e da mocinha ou do homem da rebeca ou do algeriano do macaco que dança ao som do tambor. (Sim, porque a rue Hamelin tem seus artistas errantes). A velha senhora tentava cantar uma velha canção; joguei-lhe algumas moedas dentro de um maço de cigarros. Parou de cantar e recolheu o dinheiro com um gesto difícil e lento, sem se dignar a me agradecer.
Há dois velhos extraordinariamente magros, extraordinariamente brancos, vestidos de negro, com chapéus negros, que andam juntos mas não se falam nunca, como se há quarenta anos atrás tivessem esgotado de maneira irremediável o último assunto; mas há um velho que, segundo descobriu dom Carlos de Reverbel, adora o trato com os outros seres humanos. Veste-se com menos esmero, talvez com uma limpeza duvidosa; até seus cabelos brancos e sua pele parecerem mais encardidos pelos anos e pelas intempéries. Usa uma espécie de sobrecasaca imutável e gosta de ficar parado perto do metrô Boissères. De vez em quando detém um transeunte. Já assistimos essa cena, que o próprio dom Reverbel, com sua paciência já viveu duas vezes. O ancião pede desculpas e faz alguma pergunta sobre a direção em que deve viajar para uma certa gare. A pessoa explica com gentileza: descer em Trocadero, pegar então a direção de Sèvres, etc. O velho ouve com a máxima atenção, movendo a cabeça; e acaba perguntando se não seria muito incômodo mostrar-lhe o itinerário no mapa. Vêm então os dois até o mapa e a explicação é repetida. O velho agradece muito, e outro segue o seu caminho, convencido de que praticou uma boa ação. O que não é inexato. Seria inexato, porém, pensar que o digno senhor pretendia ir a rua Molitor ou a qualquer outra parte. Nunca. Jamais desce as escadas do metrô; continua ali na calçada, com um ar meio desorientado, a espera de outra pessoa a quem perguntará o itinerário de outra estação. Nunca vai, nunca foi a parte alguma; nasceu, já de sobrecasaca, num desses escuros casarões da rue Hamelin, e no lugar de morrer talvez vire estátua na pracinha ali atrás: há muitas estátuas em Paris e se esse velho se disfarçar em bronze e ficar quietinho no meio do jardim, ninguém duvidará que ele seja, por exemplo, o próprio Hamelin. (Desconfio vagamente que é).
          Mas foi na esquina de Galilée que assisti a um dos encontros mais tocantes que me foi dado presenciar na vida. Vinha de um lado uma velhinha e de outro lado outra. À primeira vista eram iguais; vestidas de negro, luzidias, com passos miúdos, magrinhas como duas formigas. Duas formigas quando se encontram param, para conversar – e as velhinhas pararam na esquina. Durante um instante, uma pareceu observar com atenção a outra; e cada uma deve ter chegado à conclusão de que a outra estava irrepreensível, desde os sapatos pretos até o chapéu preto, desde a bolsa até a pintura das faces. (Porque essas velhinhas de Paris muitas vezes se pintam: além de se pintarem, creio que se armam com espartilhos e outros mecanismos capazes de suster na vertical seus minguadíssimos restinhos de carne que talvez de outro modo, libertados de tudo isso, virassem cinza e se espelhassem ao vento dos boulevards). As duas formiguinhas se fiscalizaram um instante, eram ambas tão incrivelmente velhinhas que talvez cada uma apenas quisesse se certificar de que a outra realmente ainda estava viva, ainda existia ao cabo de tantos séculos. Ambas resistiram à crítica – e então como ficaram alegrinhas em se ver! Como ficaram alegrinhas! Parei para vê-las; trocavam palavras gentis com suas vozes de meninas roucas, agitando um pouco, ao falar, as duas mãos, movendo um pouco para a frente os corpos mirradinhos, concordando, agradecendo, sorrindo infinitamente felizes. Então se separaram – e apenas achei um pouco exagerado que, ao se separarem, uma dissesse “au revoir” à outra. Não, elas não se reverão: não, tudo tem um limite, mesmo essas velhinhas dessa rue Hamelin. Certamente cada uma chegou à sua casa, deitou-se assim mesmo toda bem vestidinha, em sua caminha, trançou as mãos sobre o peito murcho – e morreu, afinal.


Do livro 200 crônicas escolhidas. Editora Record.

Ovelha desgarrada

  Manhã de domingo, Beiço deu as caras: – Velho. Andei pensando. Está na hora do Cadelão parar de cair nas sarjetas próximas a bares para ...