domingo, 25 de março de 2012

O time foi rebaixado


Quando ouvimos falar do fracasso dos outros, não perdemos tempo para investigar os diversos motivos que levaram a tal desfecho trágico. Focamos nossa atenção na ponta do iceberg, a que aparece, e não conhecemos toda a sua base, que é imensa, e que ficou submersa.
Observo a fotografia do time, na coluna de esportes do jornal. Do lado esquerdo está o auxiliar técnico, um novato que faz pós-graduação em Educação Física. Ele gesticula, com ar de muito conhecimento. Seu sonho é fazer um estágio na Espanha, no grande Barcelona, treinado por Guardiola.
À direita, à sua frente, estão os jogadores, de mãos na cintura, meias arriadas, olhar distraído. O gramado, desparelho, meio verde amarelado, completa o ar de desolação ao cenário. O tema da palestra é "Dicas para ser um vencedor".

O time foi rebaixado.

Grande parte dos jogadores do time não passaram pelas categorias de base. Aprenderam a jogar futebol, desde a infância e adolescência, nos campinhos de várzea, nas vilas das cidades. Quebraram muitas vidraças das casas, dividiram espaço com vira-latas e cavalos, quase sempre de pés descalços.
Do mesmo jeito que o lendário Garrincha, que primeiro jogava pelo prazer, e depois para vencer, boa parte desses jogadores, principalmente os que jogavam do meio para frente, estavam mais preocupados em fazer jogadas de efeito, cheias de categoria, do que em fazer o gol. A bola na rede era um fim, não um meio.

O rebaixamento resultou de uma cobrança de pênalti, desperdiçada pelo artilheiro do time, Tom Zé.
O jogo estava nos acréscimos, e seu time perdia por uma a zero. Se ele empatasse o jogo, faturariam um ponto, que era o que faltava para não cair pra segundona.
Nos segundos que antecederam à sua cobrança, um filme de sua vida passou pela cabeça. Todas as jogadas repletas de categoria, os gols de “Pelé”, enfim tudo o que ele aprendeu nos campinhos de várzea, desde guri, quase sempre de pés descalços.
Se ele era o “Pelé” sem chuteiras, imagina agora com suas chuteiras importadas!
Dito e feito. Tom Zé decidiu bater o pênalti do que jeito que fazia nos velhos tempos.
Recuou uns dez passos da bola, correu e... fez uma cavadinha... Porém, a bola não ganhou altura e o goleiro adivinhou o canto. Tudo isso nos acréscimos...

Dois minutos depois, a caminho do vestiário, Tom Zé foi demitido pelo presidente do time, com a seguinte sentença:

- No meu time não joga perdedor!


 


domingo, 18 de março de 2012

Mapa do céu


Aos doze anos, a maturidade do meu Guri remove a máscara da ingenuidade, que se formou em mim.
Foi-se o tempo de crença na evolução linear. Agora vivemos os sustos da pressa que nos transporta de um lado para o outro, sonhando pra frente, andando pra trás.
Ele encontra no meio dos livros algumas agendas que usei, nos anos passados. Balança a cabeça e não me diz nada.
Então eu acordo: vivo a recolher o que já passou e não vai voltar.
Ainda acredito ser possível reciclar o passado, como sementes que, a qualquer momento, irão germinar.
A inocência é tanta, que olho pro céu e espero que os deuses decidam, em ruidosos congressos, um destino glorioso pra mim.
Agora o céu se abriu, como um mapa misterioso, sobre a minha cabeça.
Cada estrela me observa, no seu silêncio e distância infinita.
Tento puxar conversa, mas só ouço o eco de meu medo do desconhecido.
Meu Guri trouxe um mapa dos grandes, que ele encontrou numa enciclopédia.
Agora temos a geografia das estrelas no céu, seu nome e origem.
Mostrou-me o que guarda o céu. Divertiu-se com minhas lembranças ruidosas. Comentou curiosidades e jogou os meus medos ao léu.
Desperto e liberto o sorriso. Mesmo distantes, as estrelas têm nome e endereço, e eu estou vivo!

domingo, 11 de março de 2012

Homem no mar - Rubem Braga

De minha varanda vejo, entre árvores e telhados, o mar. Não há ninguém na praia, que resplende ao sol. O vento é nordeste, e vai tangendo, aqui e ali, no belo azul das águas, pequenas espumas que marcham alguns segundos e morrem, como bichos alegres e humildes; perto da terra a onda é verde.


Mas percebo um movimento em um ponto do mar; é um homem nadando. Ele nada a uma certa distância da praia, em braçadas pausadas e fortes; nada a favor das águas e do vento, e as pequenas espumas que nascem e somem parecem ir mais depressa do que ele. Justo: espumas são leves, não são feitas de nada, toda sua substância é água e vento e luz, e o homem tem sua carne, seus ossos, seu coração, todo seu corpo a transportar na água.


Ele usa os músculos com uma calma energia; avança. Certamente não suspeita de que um desconhecido o vê e o admira porque ele está nadando na praia deserta. Não sei de onde vem essa admiração, mas encontro nesse homem uma nobreza calma, sinto-me solidário com ele, acompanho o seu esforço solitário como se ele estivesse cumprindo uma bela missão. Já nadou em minha presença uns trezentos metros; antes, não sei; duas vezes o perdi de vista, quando ele passou atrás das árvores, mas esperei com toda confiança que reaparecesse sua cabeça, e o movimento alternado de seus braços. Mais uns cinqüenta metros, e o perderei de vista, pois um telhado a esconderá. Que ele nade bem esses cinqüenta ou sessenta metros; isto me parece importante; é preciso que conserve a mesma batida de sua braçada, e que eu o veja desaparecer assim como o vi aparecer, no mesmo rumo, no mesmo ritmo, forte, lento, sereno. Será perfeito; a imagem desse homem me faz bem.
É apenas a imagem de um homem, e eu não poderia saber sua idade, nem sua cor, nem os traços de sua cara. Estou solidário com ele, e espero que ele esteja comigo. Que ele atinja o telhado vermelho, e então eu poderei sair da varanda tranqüilo, pensando — "vi um homem sozinho, nadando no mar; quando o vi ele já estava nadando; acompanhei-o com atenção durante todo o tempo, e testemunho que ele nadou sempre com firmeza e correção; esperei que ele atingisse um telhado vermelho, e ele o atingiu".


Agora não sou mais responsável por ele; cumpri o meu dever, e ele cumpriu o seu. Admiro-o. Não consigo saber em que reside, para mim, a grandeza de sua tarefa; ele não estava fazendo nenhum gesto a favor de alguém, nem construindo algo de útil; mas certamente fazia uma coisa bela, e a fazia de um modo puro e viril.


Não desço para ir esperá-lo na praia e lhe apertar a mão; mas dou meu silencioso apoio, minha atenção e minha estima a esse desconhecido, a esse nobre animal, a esse homem, a esse correto irmão.

sexta-feira, 2 de março de 2012

A velha contrabandista - Stanislaw Ponte Preta

Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta. O pessoal da Alfândega - tudo malandro velho - começou a desconfiar da velhinha.


Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da Alfândega mandou ela parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim pra ela:


- Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco aí atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco?


A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais outros, que ela adquirira no odontólogo, e respondeu:


- É areia!


Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a velhinha saltar da lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia. Muito encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela montou na lambreta e foi embora, com o saco de areia atrás.


Mas o fiscal desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com areia e no outro com muamba, dentro daquele maldito saco. No dia seguinte, quando ela passou na lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra vez. Perguntou o que é que ela levava no saco e ela respondeu que era areia, uai! O fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês seguido o fiscal interceptou a velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia.


Diz que foi aí que o fiscal se chateou:


- Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com 40 anos de serviço. Manjo essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista.


- Mas no saco só tem areia! - insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta, quando o fiscal propôs:


- Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual é o contrabando que a senhora está passando por aqui todos os dias?


- O senhor promete que não "espáia"? - quis saber a velhinha.


- Juro - respondeu o fiscal.


- É lambreta.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Mãe em sonho - Paulo Mendes Campos

Diz um provérbio judaico que Deus, não podendo estar em todos os lugares, fez as mães. Como as mães são terríveis, como urdem dia e noite a trama do amor e da vigilância, como se inclinam, incessantes, ilimitadas, sobre os filhos, almas sempre verdes, sempre ameaçadas. Um homem põe barba e quer pensar com o  seu nariz; uma menina põe busto e quer pensar com o seu coração. De que ardis se socorrem as mães para endireitar corações e narizes sem machucá-los.
Sonhei com ela. Almoçávamos em sua casa, e eu tinha acabado de comer uma salada imensa, muito temperada, quando minha mãe me falou com uma voz superlativamente doce: Meu filho, você anda comendo muito, cuidado com a arteriosclerose.
Acordei em pânico e cheio de lúcida gratidão. Aparecer em sonho para aconselhar-nos é uma das espertezas das mães. Mas a sutileza de minha mãe foi ainda mais fina. Não ando comendo muito e nenhum sinal aparente me faz candidato à arteriosclerose. Minha mãe queria me dizer outra coisa. Usou do estratagema de que eu estava comendo muito para não magoar o filho. Na realidade, confesso, andava eu era exagerando na bebida, festas inelutáveis, exposições, lançamentos, um amigo que chegou, um amigo que se foi, coisas. Sim, tinha exagerado nesses últimos tempos. E o que minha mãe pretendia dizer é claro como água de filtro: Meu filho, você anda bebendo muito, cuidado com a cirrose.
Mas foi do coração que eu morri.

Ovelha desgarrada

  Manhã de domingo, Beiço deu as caras: – Velho. Andei pensando. Está na hora do Cadelão parar de cair nas sarjetas próximas a bares para ...