domingo, 4 de outubro de 2015

O destino (à maneira dos... coreanos) - Millôr Fernandes

Encontraram-se os dois chineses.
— Olá, Shen-Tau, por onde andou?
— Ah, passei seis meses no hospital, Shin-Fon.
— Eh, isso é mau!
— Nada. Isso é bom: casei com uma enfermeira bacaninha.
— Ah, isso é bom!
— Que o que — isso é mau. Ela tem um gênio dos diabos.
— É, isso é mau.
— Não, não, isso é bom: o avô dela deixou uma herança e eu não preciso trabalhar porque ele acha que só eu sei cuidar do gênio dela.
— Oh, oh, isso é que é bom!
— Oh, oh, isso é que é mau! Com o gênio dela, às vezes não me dá um níquel. E como eu não trabalho, não tenho o que comer.
— Xi, isso é mau!
— Engano, isso é bom. Eu estava ficando gordo e mole — vê só, agora, o corpinho com que eu estou.
— É mesmo — isso é bom!
— Que bom! Isso é mau. As pequenas não me deixam e acabei gostando de outra.
— Êpa, isso é mau mesmo.
— Mau nada, isso é bom. Essa outra mora num verdadeiro palácio e me trata como um príncipe.
— Então isso é bom!
— Bom? Isso é mau: o palácio pegou fogo e foi tudo embora.
— Acho que isso é realmente mau!
— Mau nada: isso é bom. O palácio pegou fogo porque minha mulher foi lá brigar com a outra, virou um lampião e as duas morreram num incêndio. Eu fiquei rico e só.
— Isso… é bom… ou é mau, Shen-Tau?
— Isso é muito bom. Shin-Fon.

Moral: Nada fracassa mais do que a vitória, e vice-versa.



FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1979. p. 61-2. 

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Notícias de Marte


Quando ouço as notícias de Marte, olho admirado pro céu e agradeço aos deuses pela sorte de ainda estar vivo e poder receber as novidades de lá. Invento desculpas, lavo minhas mãos e fujo da responsabilidade de melhorar a porra do nosso planetinha. Aristóteles se equivocou quando disse que sou animal político, dada minha condição de homem racional. Fico excitado com as notícias de que pode haver água em Marte, enquanto uso a mangueira pra ejacular metros e metros do precioso líquido pra limpar minha calçada. 
Jogo roleta russa. Apresso meus dias por aqui, e acredito encontrar a salvação por lá.

(PENSADAS do Teco, o poeta sonhador)

sábado, 19 de setembro de 2015

Quem vem lá boiando no rio? - Ricardo Azevedo


É um barquinho de papel feito por um menino matando aula?
Uma folha de jornal?
Um baú de recordações?
Uma cédula de identidade?
Uma caixa-preta contendo verdades inexplicáveis?
Uma nota de mil?
Um mero ponto de vista?
Um artefato inútil?
Um manual de instruções?
Uma panaceia?
Anotações filosóficas atiradas ao léu?
Um plano de ação?
Um corpo afogado?
Pílulas anestésicas?
Pedaços picados de uma carta de amor?
Formas abstratas sem qualquer significado?
Mercadoria proibida por lei?
Um diário íntimo?
Um estupefaciente?
Um cheque sem fundo?
O resultado de um exame laboratorial?
Um documento falsificado?
Um brinquedo?
Um plágio?
Uma senha?
Uma sina?
Um cálice de veneno?
Uma prova de autoestima?
Um artigo de fé?
Um holerite?
Um canto de sereia?
Propaganda?
Letras de sangue contaminado por vírus?
A confissão de um crime ou de um sonho?
Uma garrafa trazendo a esperança
última de um náufrago?

Chegou a hora.
É urgente, urgentíssimo.
Torna-se imprescindível descobrir,
de uma vez por todas,
quem vem lá
boiando
nas palavras desse rio.


(Do livro Ninguém sabe o que é um poema).

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Conspirações



TECO - Muitos humanos acreditam em teorias conspiratórias por trás daqueles acontecimentos que eles não conseguem explicar...
ET - Aiaiai... Então é possível deles acreditarem que este reles etzinho é um Deus?!


segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Um apólogo - Machado de Assis


Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora?  A senhora não é alfinete, é agulha.  Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa!  Porque coso.  Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você?  Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser.  Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco?  Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas?  Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: 
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. 
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

(Do livro Meus primeiros contos. Editora Nova Fronteira).

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Solução


Se a vida anda ácida
se tudo se arrasta
se um dia vale a pena
e noutro perde a graça
se a coisa não engrena
se a mula encascata
se a escada desmorona
diz um palavrão
te erga desta lona

se um dia você é tudo
e noutro dia é nada
a solução já foi testada:
um dia chupe limão
no outro limo
                         nada.

(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Pedro Malasartes


Pedro montou uma tendinha de ferreiro, e ia muito bem, ferrando cavalos que apareciam por ali, ou fazendo outros servicinhos. Certo dia apareceram na sua tenda dois peregrinos, um moço muito suave, e um velho de barbas brancas. Malasartes pensou que queriam encomendar algum serviço e, pelo visto, coisa de pobre devia ser, pois usavam túnicas grosseiras, e estavam descalços. Mas queriam apenas a forja emprestada, por pouco tempo. O mais novo pegou uma velha que ia passando pela rua, colocou-a em cima das brasas, soprou bem, apanhou a mulher com as tenazes, colocou-a em cima da bigorna, e deu com o malho nela com vontade. Malasartes espiava. E o velho espiava. Malha que malha, dali a pouco, quando deu por acabado o serviço, o moço pôs a mulher no chão e da velha tinha feito uma moça nova, bonita, sem nenhuma ruga. A moça saiu dançando, contente.
Malasartes assuntou:
- Esse deve ser Jesus Cristo e o seu discípulo mais velho, São Pedro.
Horas mais tarde, apareceu sozinho, na ferraria, o discípulo.
- Ferreiro, empreste-me a forja por uns minutos?
- Como não?
São Pedro trouxe uma velhinha pela mão e explicou:
- Vou deixar a minha mãe bem moça e bonita.
Pôs a mãe na forja, soprou, soprou, e logo a tenda se encheu de cheiro de carne queimada.
- Isso não vai bem, São Pedro.
- Vai. É assim mesmo.
Tirou os torresmos do fogo, colocou-os na bigorna, mas quando o malho desceu, espatifou carvão e cinza para todos os lados. Saiu o velho, porta afora, desesperado, em busca do Mestre. Trouxe-o e Jesus ajuntou os pedacinhos da velha, arrumou, alisou, pôs na bigorna, malhou, e fez a velha como era, com o que São Pedro ainda se deu por muito satisfeito. Iam partir e, antes, o Mestre chamou Malasartes para um lado e disse-lhe:
- Pelo favor que nos fez, peça-nos o que quiser.
São Pedro logo falou:
- Peça o reino do céu, ferreiro.
- Que reino do céu? Reino do céu não enche a barriga. Quero que aquele que se sentar no banquinho que está aí diante da porta, não se levante sem eu mandar.
- Concedido – disse o Cristo – Pode pedir mais uma graça.
- O reino do céu – bradou São Pedro.
- Lá vem ele com o tal do reino do céu. Quero que todo aquele que subir na figueira que tenho no quintal não possa descer sem eu mandar.
- Concedido. E agora peça a última graça.
- O reino do céu... – gemeu São Pedro, assombrado por aquele homem não se importar com o descanso eterno.
- Faça o favor de não me aborrecer com essa história do reino do céu? Quero que quem entrar no meu surrão nunca mais possa sair sem o meu consentimento.
- Concedido.
Saíram os peregrinos e Malasartes ficou na bigorna, malho na mão, bam, bam, bam, pensando na estranha visita daqueles homens, e nos milagres que presenciara. E então acudiu-lhe ao espírito que se ele tivesse pedido dinheiro, bastante dinheiro, riquezas, certamente não precisaria estar batendo malho, para obter algum dinheirinho, para comer.
- Sou um burro. Mas já dou um jeito nisso.
Chamou o diabo e disse:
- Que é que você quer para me dar dinheiro?
- Muito?
- Naturalmente que quero muito. Barras de ouro, carteiras cheias, dinheiro que nunca se acabe enquanto eu viver, por mais que eu gaste. Isso é o que eu quero.
- Dê-me sua alma em troca.
- Não tem dúvida. Daqui a vinte anos pode vir me buscar.
Malasartes, desde então, levou vida de fidalgo. Passeava a mais não poder, gastava a rodo, tinha roupas belíssimas, carruagens, criados, adquiriu palácios, terras, milhares de pessoas trabalhavam para ele. A sorte nos negócios jamais o abandonava. Negócio em que punha a mão era certo prosperar. E assim ele levou vida boa e regalada. Depressa passou o tempo, pois tão feliz lhe corria a vida. Mal se lembrava do seu sócio o diabo, quando um dia chegou à janela e viu diante do portão a figura temível do Danado. Construíra Malasartes um palácio no lugar da tendinha, mas conservara, contra as opiniões do construtor, um banquinho de madeira junto ao portão, uma figueira ramalhuda no quintal, e a tendinha de ferreiro ao lado.
Vendo o diabo, Pedro Malasartes se adiantou todo amável.
- Como vai o senhor? Veio visitar-me?
- Vim buscar você. Vinte anos já se passaram.
- Já? – estranhou Malasartes, sinceramente admirado. – Então o senhor sente aí no banquinho e espere um pouco. Vou pôr as minhas coisas em ordem.
O Diabo sentou e esperou. E esperou. E esperou. Malasartes não aparecia. Não apareceu até a noite. O Diabo foi se levantar, para esticar as pernas, e quem disse que podia se despregar do banquinho? Forcejou por sair e quanto mais fazia, mais preso ficava. Malasartes estava bem passeando. Quando voltou viu o Diabo urrando como um desesperado, sem poder sair do banquinho. Riu a mais não poder, e falou:
- Se quiser sair daí, consinto, mas em troca de mais cinquenta anos de vida. Vida boa e riquezas como até aqui. Veja lá, hein?! E quero ficar moço e disposto durante todo esse tempo, como estou até agora e como foi até hoje.
O diabo não teve remédio senão concordar. Mal se viu livre do malfadado banquinho se escafedeu para o inferno. E eis Pedro Malasartes, às soltas pelo mundo, fazendo artes e malandragens quanto quis, moço, disposto, rico e gozando a vida. Nessas condições, não admira que não sentisse passar o tempo. Um dia, quando assuntou, cinquenta anos tinham se passado e o Diabo estava na sua porta novamente.
O Malvado foi logo dizendo:
- Não quero me sentar em banquinho nenhum. Vá tratando de arrumar a sua trouxa e vamos para o inferno.
- Está bom, seu Diabo. Não precisa brigar.
Pedro malasartes foi para dentro e ficou. Passou uma hora, passaram duas e três. No quintal, o Diabo via a figueira carregada de lindos figos escuros, madurinhos. Ele estava com fome, fazia muito tempo que saíra do inferno, e, guloso, subiu à figueira e comeu os deliciosos frutos, até se fartar. Quando foi descer, quem disse que podia?
Experimentou escorregar pelo tronco abaixo, parava no meio. Experimentou pular, armava o pulo, largava o corpo, nem do lugar saía. Compreendeu então que estava prisioneiro para sempre do Malasartes. Muitos e muitos dias levou o Malasartes para voltar. Andava também pelo mundo, fazendo artes. Quando veio, encontrou um Diabo sucumbido de desgosto, e disse:
- Eu consinto que o senhor saia, seu Diabo. Mas, já sabe. Amor com amor se paga. O senhor me concede aí uns cem aninhos mais. Já sabe como: vida boa, riquezas, saúde, mocidade...
O Diabo concordou com tudo quanto ele quis, e por cem anos o Pedro Malasartes desfrutou da mais bela vida que alguém já teve até hoje. Um século depois, na porta do palácio encontrava-se o mesmo Diabo.
- Entre, Seu Diabo. Faça o favor. Por aqui. Venha ver a tendinha que eu morava, antes que o senhor, bondosamente, me concedesse tantos favores.
O Diabo torceu o nariz, a essa conversa, mas foi entrando. Não quis sentar, ficou em pé. Não quis comer coisa alguma. Recusou ficar à sombra da árvore.
- Assim o senhor se cansa. Espere um pouquinho que vou arrumar o meu surrão e já venho.
Demorou desta vez, mas não muito. Nem sequer saiu de casa. Dali a pouco apareceu, arrastando um grande surrão.
- Seu Diabo, o senhor podia ajudar a amarrar meu surrão.
O Diabo não disse nada. Foi. Quando se abaixou para amarrar o saco, Pedro Malasartes deu-lhe um empurrão por trás, e o enfiou rapidamente no surrão. O Diabo esperneou quanto pôde, pererecou que deu o dia, mas viu que não poderia sair. E daí deu de implorar ao Malasartes que o acudisse.
- Ora, Senhor Diabo. O senhor onde está, está muito bem. Eu vou acudi-lo para que o senhor me leve para o inferno hoje ou daqui alguns anos? Não. Fique aí e bom proveito.
Mas depois que o Diabo prometeu que nunca mais o procuraria, permitiu que ele se fosse.
Malasartes viveu mais alguns anos e um dia morreu. Morreu e foi direitinho para o céu. Quando São Pedro abriu a porta e deu com ele, bradou:
- Saia já daqui, seu herege, seu danado. Vá para o inferno! Você não quis pedir o reino do céu ao Mestre, agora se afomente!
- Pois então eu vou para o inferno. Lá não há de ser ruim assim como dizem.
Foi. Bateu à porta, veio o Vadio abrir, e quando deu com Malasartes, fez uma cara muito feia e bradou:
- Passe daqui, Malasartes. Pensa que me esqueci do banquinho, da figueira e do surrão? Já de minha porta, e não me apareça mais.
Com toda paciência, Malasartes desandou o caminho e foi à porta do céu, de novo.
Ali, contou a história a São Pedro, e pediu:
- O senhor podia me deixar ficar aqui na porta um pouco, descansando.
São Pedro encolheu os ombros e não se importou mais com ele. Mas, nas idas e vindas do santo porteiro, às vezes a portava ficava entreaberta. Pela fenda, o Malasartes atirou o boné lá para dentro. Depois, queria, porque queria ir busca-lo.
- Pois vá, e não me amole – respondeu São Pedro.
Malasartes, mais que depressa, entrou e ficou.
- Eu daqui não saio. Ouvi dizer que quem entra no céu não sai mais.
E então, para que Malasartes não ficasse fazendo artes no céu, Deus fez erguer um monte de trigo do tamanho de todas as nuvens juntas; mandou que os anjos misturassem alpiste, milho e feijão a esse trigo. E mandou por último que o Malasartes separasse as espécies. Quando já está quase tudo pronto, vem o vento forte e mistura de novo. E dizem que até hoje o Malasartes está no céu, separando o trigo.

(Do livro Lendas e fábulas do Brasil. Selecionadas, prefaciadas e recontadas por Ruth Guimarães. Ed. Cultrix)


quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Sonhei com Rita Lee


Sonhei com Rita Lee. Ela fazia shows pelo Sul do país. No intervalo de um show que ela fazia na vila onde nasci fui conversar com ela. Disse-lhe que sou seu fã desde a música “Ovelha Negra”, do disco “Fruto proibido”, lançado em 1975. Então ela falou da importância desse disco para a história do rock nacional que surgia na época. A grata surpresa foi quando, no meio da conversa, a rainha do rock brasileiro pediu para que eu falasse sobre quem era o Teco poeta sonhador...

sábado, 29 de agosto de 2015

Preferências


Em vez dos carrões engarrafados na hora do rush, prefiro o lata-velha que desfila solitário na madrugada.
Em vez do chafariz luxuoso na entrada do shopping, prefiro crianças brincando com mangueira d’água na periferia.
Em vez de orelhões vandalizados avenida abaixo, prefiro o muro grafitado diante da escola.
Em vez da limpeza obsessiva com lava-jato das folhas da calçada, prefiro a vovozinha cultivando flores no jardim.
Em vez de me exercitar monitorado por médico e personal trainer, prefiro caminhar tomando sorvete.
Em vez de planejar passo a passo meu futuro, prefiro adoçar o presente com sonhos e devaneios.
Em vez do silêncio dos inocentes, prefiro tomates verdes fritos.
Em vez de estar a dois passos do paraíso, prefiro apanhar um táxi pra estação lunar.
Em vez de ser o Poderoso Chefão, prefiro ser Dom Quixote.
Pra quem diz que é feio andar fora dos trilhos, digo que é tão comum ser normal!


(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

terça-feira, 25 de agosto de 2015

O enforcado - Lendas e fábulas do Brasil


Era uma vez um homem que veio de longe, apoiado a um bordão, como um peregrino, e que, como um peregrino, trazia sandálias de couro e roupas em farrapos. Andou dias e dias, noites e noites, semanas e meses a fio, buscando sabe Deus o que.
Certa vez as sombras da noite o alcançaram em pleno descampado e ele não saberia dizer se estava longe ou perto de uma cidade, porque uma alta montanha em frente lhe fechava o horizonte. E então, cansado de andar, vendo uma árvore copada, no campo, resolveu nela passar a noite. Descalçou as sandálias, subiu agilmente pelo tronco, acomodou-se entre os galhos e adormeceu, como as aves.
Em torno era tudo silêncio. Pouco a pouco, os animais noturnos, silenciosos, saíram de suas tocas e iniciaram a caça pelos arredores.
Era tarde já, quando o homem acordou com um rumor de vozes humanas. Depois, ouviu um longo canto, e, erguendo a cabeça que tinha apoiado à forquilha formada por dois galhos, viu ao longe pequeninas luzes que ondulavam com o vento, endireitavam-se, iam de um para o outro lado, porém caminhavam, evidentemente, para o lado onde ele estava.
- Que será? – pensou, com um arrepio na espinha.
Ao aproximarem-se, reparou que eram homens vestidos com longas camisolas brancas e que levavam velas acesas. Na frente caminhava um padre, com uma cruz nas mãos.
O homem empoleirado esfriou.
- Será procissão das almas? – pensava, batendo os dentes de medo. Decidiu permanecer imóvel, para que não percebessem que ele estava ali.
Qual não foi, porém, o seu espanto e o seu susto, quando os homens pararam justamente sob a árvore, onde ele estava, e um deles falou:
- Qual de nós vai subir à árvore para trazer o homem?
Viu que eles se entreolhavam e que nenhum parecia disposto; no entanto, acabariam por se decidir. E mal pôde falar, de tanto que tremia:
- Ninguém precisa subir. Eu desço.
Nem podia acreditar no que viu em seguida, tão esquisito lhe pareceu tudo aquilo. Assim que lhe ouviram a voz os homens largaram as velas, o padre jogou a cruz para um lado, e saíram todos correndo, como se tivessem visto, naquele momento, Satanás em pessoa e, atrás dele, um milhão de demônios.
- Santo Deus! – gemeu o homem, benzendo-se.
Pulou da árvore e saiu correndo também, mas em direção oposta à dos outros.
Assim que o dia clareou, o peregrino voltou ressabiado, curioso para ver se descobria o que havia acontecido naquele malfadado lugar.
- Eu com medo deles e eles com medo de mim, essa é boa! – resmungava intrigado.
Foi direto à árvore e correu-lhe um frio pela espinha. Lá estava, balouçando no ar, um homem enforcado.
Então, compreendeu tudo. Os que iam retirar o criminoso enforcado, para enterrá-lo em algum cemitério, pensaram que fora o morto quem respondeu que ia descer.
Mais tarde, quando o peregrino chegou à cidade, havia lá uma grande agitação. Faziam-se grupinhos em todas as esquinas, nas praças, diante da casa do padre.
Ele parou ali, para ouvir as conversas. Diziam que um enforcado respondia ao que lhe perguntavam.
- Vai-se ver é alguém que morreu inocente – opinavam.
- É capaz.
- Que aconteceu? – perguntou o peregrino, acercando-se.
- Pois foi um criminoso enforcado, fora da cidade, num angico que há no meio do campo, e ontem à noite Seu Padre e os homens das irmandades religiosas foram buscá-lo, para fazerem o enterro dele, que é falta de caridade deixar um corpo pendurado para os urubus comerem. Pois não é que na hora de irem buscar o corpo, quando confabulavam para ver quem ia subir, o defunto falou lá em cima, que não precisava ninguém subir não, que ele descia!
O peregrino nada disse.
Em suas andanças pelo mundo havia aprendido que às vezes é de boa política ocultar a verdade.
Atravessou a cidade em silêncio, em silêncio se foi, e nunca souberam os habitantes do lugar o que havia realmente acontecido.


Do livro Lendas e fábulas do Brasil. Selecionadas, prefaciadas e recontadas por Ruth Guimarães. Ed. Cultrix.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Morreu mesmo - Lindolfo Gomes

Um novato foi mandado podar umas árvores. Como não tinha prática nesse serviço e era muito tapado, apoiou a escada num dos galhos e pôs-se a serrá-lo. Passava por ali o vigário da freguesia (o padre da paróquia) e o advertiu:
- Olha, amigo, desse modo vens abaixo!
O moço era, além de estúpido, teimoso. Sem dar maior atenção ao padre, continuou o trabalho.
O padre prosseguiu o seu caminho. Vai por um pouco... Zás! Parte-se o galho e vem ao chão tanto a escada como o podador, que ficou com um dos braços em petição de miséria.
Quando se recuperou, ficou admirado com a adivinhação do padre, e pensou consigo mesmo que, se o padre tinha adivinhado seu tombo, poderia também adivinhar o dia de sua morte. Foi ao encontro do padre e falou-lhe:
- O senhor disse que eu ia cair da árvore e, dito e feito, caí mesmo. Bem que eu queria agora que o senhor adivinhasse o dia da minha morte.
O padre achou aquilo engraçado e resolveu zombar um pouco dele.
- Olha, bem sei quando você vai morrer. Será na hora em que, indo de viagem, montado na sua mula, você a vê soltar três puns seguidos.
O rapaz agradeceu muito e foi-se.
Todas as vezes que viajava, tranquilo na ruana, ia muito atento pra ver quando a mula soltava os tais puns.
Certa feita, ao chegar a uma volta do caminho, a mula preparou-se toda e soltou um, dois, três puns...
O novato, que os havia contado com o coração aos pulos e acreditando na previsão do padre, julgou chegada a sua hora extrema, atirou-se da sela pro chão e soltou um grito:
- Morri!
Não se moveu mais, seguro de que estava morto.
Vai depois, passaram por ali uns trabalhadores que deram com ele estendido no meio do caminho. Crendo-o morto, foram buscar uma rede no vizinho mais próximo, puseram-no dentro dela e o conduziram para sua casa, rezando todo o terço.
Lá muito adiante, obra de uma légua, havia duas encruzilhadas.
Os homens ficaram indecisos: qual delas seria o caminho mais curto para chegar ao cemitério?
Começaram a teimar entre si, até que o defunto ergueu a cabeça do fundo da rede e disse-lhes:
- Olhem, amigos, no tempo que eu era vivo, o caminho mais curto era à esquerda.
Assombrados, os homens atiraram a rede ao chão com o defunto e tudo e fugiram em disparada.
Com a queda o rapaz morreu de verdade.
E a adivinhação do padre foi acertada: o bicho morreu mesmo!

(do livro Contos populares brasileiros, edições Melhoramentos)


Ovelha desgarrada

  Manhã de domingo, Beiço deu as caras: – Velho. Andei pensando. Está na hora do Cadelão parar de cair nas sarjetas próximas a bares para ...