domingo, 19 de fevereiro de 2012

Anota aí, vai


Ah, se pudéssemos recuperar aquelas frases de efeito, ditas de um jeito espontâneo, na mesa do bar!
Na hora pareciam interessantes, e alguém falou, recomendando: "Anota aí, vai".
Mas nunca carregamos papel e caneta, e deve ser porque não acreditamos que temos capacidade de escrever algo interessante.
Se acaso alguma frase ou fragmento surgir, recorremos ao garçon, indiferente, desconfiado ou cúmplice, para trazer um pedaço de papel e caneta.
Como num jogo de cartas, as vontades são embaralhadas na mesa do bar. Cada um torce para que a sorte lhe traga melhores frases de efeito ou - que não é diferente - fartos olhares.
É pela quantidade de chopes que arriscamos apostas que, de dia, devido a claridade e a censura, nunca o faríamos.
E o círculo se completa na manhã seguinte, quando somos despertados pelo sentimento de culpa: "O que que eu fui fazer?!"
Espiamos nossos pecados.
Espiamos também as ditas frases "geniais" anotadas no pedaço de papel, e descobrimos, ridículos, que elas são bem fraquinhas...
Mas crescemos assim.
Lembremos da sutileza com que espiávamos pela fechadura segredos agitados pela curiosidade. Sabíamos o momento certo para entrar em cena.
Depois, éramos corroídos pela culpa, até o dia da confissão ao padre.
Crescemos e deixamos de ser atores. Ficamos medrosos do ridículo.
Medrosos até o segundo chope. Depois, dada a ordem ou súplica do "Anote aí, vai", temos certeza de que nossa idéia genial vai revolucionar o mundo.
Finalmente nosso cérebro processou algo interessante!

Vamos ao bar para espiar e anotar, quando possível.
Não o tamanho do lanche e refris pet que os casais, pais e filhos devoram.
Espiamos o frescor dos seus segredos, as trocas de olhares, caras alegres ou semblantes franzidos, lábios trêmulos ou bem desenhados.
Espiamos de cá e de lá, na ânsia de que algum olhar se choque com nosso olhar, e que se tivermos essa carta na manga (curinga?) aplacaremos, um pouco, nossa solidão.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

No dia em que o gato falou - Millôr Fernandes


Era uma vez uma dama gentil e senil que tinha um gato siamês. Gato de raça, de bom-tom, de filiação, de ânimo cristão. Lindo gato, gato terno, amigo, pertencente a uma classe quase extinta de antigos deuses egípcios. Este gato só faltava falar. Manso e inteligente, seu olhar era humano. Mas falar não falava. E sua dona, triste, todo dia passava uma ou duas horas, repetindo sílabas e palavras para ele na esperança de que um dia aquela inteligência que via em seu olhar explodisse em sons compreensivos e claros. Mas nada!

A dama gentil e senil era, naturalmente, incapaz de compreender o fenômeno. Tanto mais que ali mesmo à sua frente, preso a um poleiro de ferro, estava um outro ser, também animal, inferior até ao gato, pois era somente uma pobre ave, mas que falava! Falava mesmo, muito mais do que devia. Um papagaio, que falava pelas tripas do Judas. Curiosa natureza, pensava a mulher, que fazia um gato quase humano, sem fala, e um papagaio cretino mas parlapatão. E quanto mais meditava mais tempo gastava com o gato no colo, tentando métodos, repetindo silabas, redobrando cuidados para ver se conseguia que seu miado virasse fala.
Exatamente no dia 16 de maio de 1958 foi que teve a ideia genial. Quando a ideia iluminou seu cérebro, veio acompanhada da critica, auto-crítica: “Mas, como não me ocorreu isso antes?” O papagaio viu no brilho do olhar da dona o seu (dele) terrível destino e tentou escapar, mas estava preso. Foi morto, depenado e cozinhado em menos de uma hora. Pois o raciocínio da mulher era lógico e científico: se desse ao gato o papagaio como alimentação, não era evidente que o gato começaria a falar? Era? Não era? Veria. O gato, a princípio, não quis comer o companheiro. Temendo ver fracassado o seu experimento científico, a dama gentil e senil procurou forçá-lo. Não conseguindo que o gato comesse o papagaio, bateu-lhe mesmo – horror! – pela primeira vez. Mas o gato se recusou. Duas horas depois, porém, vencido pela fome, aproximou-se do prato e engoliu o papagaio todo. Imediatamente subiu-lhe uma ânsia do estômago, ele olhou para a dona e, enquanto esta chorava de alegria, começou a gritar (num tom meio currupaco, meio miau-miau-miau, mas perfeitamente compreensível):
– Madame, foge pelo amor de Deus! Foge, madame, que o prédio vai cair!
A mulher, tremendo de emoção e alegria, chorando e rindo, pôs-se a gritar por sua vez.
– Vejam, vejam, meu gatinho fala! Milagre! Fala o meu gatinho!
Mas o gato, fugindo ao seu abraço, saltou para a janela e gritou de novo:
– Foge, madame, que o prédio vai cair! Madame, foge! – e pulou para a rua.
Nesse momento, com um estrondo monstruoso, o prédio inteiro veio abaixo, sepultando a dama gentil e senil em meio aos seus escombros.
O gato, escondido melancolicamente num terreno baldio, ficou vendo o tumulto diante do desastre e comentou apenas, com um gato mais pobre que passava:
– Veja só que cretina. Passou a vida inteira para fazer eu falar e no momento em que falei, não me prestou a mínima atenção.


MORAL: O mal do artista é não acreditar na própria criação.


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O buraco do tatu - Sergio Capparelli



O tatu cava um buraco
a procura de uma lebre,
quando sai pra se coçar,
já está em Porto Alegre.


O tatu cava um buraco,
e fura a terra com gana,
quando sai pra respirar
já está em Copacabana.


O tatu cava um buraco
e retira a terra aos montes,
quando sai pra beber água
já está em Belo Horizonte.


O tatu cava um buraco,
dia e noite, noite e dia,
quando sai pra descansar,
já está lá na Bahia.


O tatu cava um buraco,
tira terra, muita terra,
quando sai por falta de ar,
já está na Inglaterra.


O tatu cava um buraco
e some dentro do chão,
quando sai pra respirar,
já está lá no Japão.


O tatu cava um buraco
com as garras muito fortes,
quando quer se refrescar
já está no Pólo Norte.


O tatu cava um buraco
um buraco muito fundo,
quando sai pra descansar
já está no fim do mundo.


O tatu cava um buraco
perde o fôlego, geme, sua,
quando quer voltar atrás,
leva um susto, está na Lua.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

O amor é um amor!


Elas gostam de vê-los dançar
elas gostam de vê-los pagar
elas gostam de vê-los comer
elas gostam de vê-los beber
elas gostam de vê-los errar
elas gostam de vê-los perder
elas gostam de vê-los sofrer
elas gostam de vê-los chorar
elas gostam de vê-los galantear
elas gostam de vê-los sorrir
elas gostam de vê-los partir...


Eles gostam de vê-las pedir
eles gostam de vê-las buscar
eles gostam de vê-las comentar
eles gostam de vê-las cozer
eles gostam de vê-las cerzir
eles gostam de vê-las lavar
eles gostam de vê-las passar
eles gostam de vê-las mandar
eles gostam de vê-las decidir
eles gostam de vê-las chegar
eles gostam de vê-las partir...


O que se gosta e o que se tem
o que se gosta e o que se perde
o que se gosta e o que se foge
o que se perde sem querer
o que se perde e o que se esquece
o que se perde e perde tempo a sofrer
o que se perde sem fazer alarde
o que se perde com muito alarde
o que se perde ao meio dia
o que se perde no fim da tarde...


O que se perde sem sede
o que se perde sem saúde
o que se perde sem amizade
o que se perde sem saudade
o que se perde sem felicidade
o que se perde sem liberdade
o que se ganha quando se ilude
o que se perde quando se invade
o que se perde quando se perde a graça
o que se ganha quando se abraça
o que se perde ser semelhante
o que se perde ser diferente...


Vivo entre o transitório e intransitivo
vivo mudando e sou humano
vivo perene e sou divino!


Quando amo eu transito
mesmo sem trânsito livre
bastou amar para descobrir
que amar é humano
para deixar o amor mais sublime.


Amar é transitório
do nascer ao perecer
amar é ganhar e perder...


Já que o amor transita de uma criatura a outra
cuidado, pra ele não ser via de mão única
escorregadia e nebulosa
via com ultrapassagens proibidas
via com ultrapassagens perigosas!


Os mais fortes ditam as regras
por isso reze antes de pegar a estrada
vais partir sem saber se vais chegar
vais partir sem saber se vais voltar
vais partir sem saber se vais sobreviver
vais viajar sem saber mais nada!


Amor não passa de verbo
nunca foi nem será substantivo
entre os verbos foi esquecido
no limbo dos intransitivos.


Amar é impulsivo
amar é compulsório
amar é sucessivo
amar é sucessório!

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Uma incrível batalha entre Dom Quixote de la Mancha e uma traça faminta



Dom Quixote ressonava dentro de um livro esquecido,
quando acordou assustado por um estranho ruído!
Uma traça devorava uma página amarela,
seu destino era “traçado” e triturado por ela!


Nessa página impassível, que a traça roia aos poucos,
Cervantes lhe condenava à condição de ser louco...
E a velha biblioteca, tomada pela aflição,
pode ver a realidade digerindo a ficção!


O velho herói deu um salto, procurando a sua lança;
chamou, do fundo da história, o seu fiel Sancho Pança...
Pensou em sair à busca, nos livros da mesma estante,
por outro guerreiro nobre, qualquer cavaleiro andante...


Arrepiou o bigode, bradou cruéis impropérios
culpando os tempos modernos e seus nocivos mistérios;
que toda a Literatura se encontra sob ameaça
e toda essa gritaria deu mais apetite à traça!


Nunca assim, tinha lutado contra revés tão daninho,
só contra ovelha e pastores e mais de trinta moinhos...
Pensou, temente, se a traça lhe roesse toda a idéia
ia esquecer das promessas que fez para Dulcinéia...


Tentou fugir a cavalo, mas não chegou ir distante,
a traça tinha roído um naco do Rocinante!
Quando já vinha cansado, judiado em cima do arreio,
ela vinha degustando dois capítulos e meio!


Nem mesmo um inseticida, um “flite” ou um semelhante
o nosso herói encontrava para o derradeiro instante...
Sozinho se debatia... Que, pra aumentar a desgraça,
a Dulcinéia e o Sancho vinham na “pança” da traça!


Quem diria Dom Quixote, enfim, de fato lutando
pra defender sua terra, que a traça vinha ocupando!
“Alto lá, traça bandida! Pois este papel tem dono!”
parafraseou Tiaraju, sem poupar garbo ou entono!


A traça olhou para o velho, com sua fome tamanha,
e atropelou o coitado que despediu-se da Espanha...
Comeu arreio e cavalo, traçou bigode e armadura
e, do Quixote espantado, não sobrou nem a loucura!


E a traça? Nunca mais vi... E nem quero saber da bruxa...
Só espero que se conserve longe da estante gaúcha!
Foi vista por Dom Casmurro, entrando no livro a trote,
ia palitando os dentes com a lança de Dom Quixote!

Rodrigo Bauer e Gujo Teixeira

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O pequinês da cunhada - Kledir Ramil

Zé Luís é um carioca bonachão, desses que se divertem com tudo e têm uma paciência de Jó. Dona Néia, a patroa, resolveu trazer sua irmã Marilia para morar com eles, pois andava deprimida desde a morte do marido. Veio a cunhada, as malas, as tralhas e Pingo, um pequinês com cara de poucos amigos.
Apesar de apenas um palmo de altura, Pingo foi tomando conta da casa. Rosnava o dia inteiro e enchia o saco de todo mundo, principalmente do Zé Luís. Não podia enxergar o pobre homem e atacava os calcanhares. Zé Luís começou a usar botas. Pleno verão, 40 graus no Rio de Janeiro e o coitado com bota de cano alto. Parecia um caubói do subúrbio. Como se não bastassem os ataques, o animal fazia cocô pela casa toda. E a cunhada não gostava de limpar sujeira de cachorro. Sobrava pra quem?
Depois de Pingo matar o angorá da vizinha e arrebentar a boca do filho da faxineira, Zé Luís decidiu dar um basta. Inventou uma história de um casal de amigos, sem filhos, que tinham um sitio em Xerém e andavam loucos por um bichinho de estimação. Propôs levar o pequinês. Seria tratado como um rei, teria ar puro, espaço para correr. Desconsolada, Marilia concordou com a proposta, convicta de que Pingo estaria melhor junto à natureza.
Zé Luís pegou a fera pela coleira, colocou na camionete, se mandou e sumiu com o bicho.
O tempo foi passando, Marilia sempre querendo saber notícias e Zé Luís desconversava, sem estender muito o papo. Mas todo dia ela insistia e perguntava pelo seu cãozinho. Aquela ladainha também começou a encher a paciência. Um dia, pra tentar encerrar o assunto...
- Cunhada querida! Falei com meus amigos do sítio. O Pinguinho está ótimo. Está se alimentando bem, crescendo que é uma maravilha. Já está deste tamanho - mostrando com a mão uma altura de 1 metro e meio do chão.
- Mas Zé - emendou Marília, desconfiada - pequinês não cresce tanto...
- Olha Marília... – continuou ele, abraçando a cunhada e oferecendo um gole de cerveja – com esse negócio de engenharia genética... os japoneses inventaram agora uma super ração que é impressionante. Diz que o Pingo é outro cachorro, tá até namorando uma Rotweiller...
E Marilia quieta, só observando de canto de olho. Resolveu tomar uma cerveja, vai fazer o quê?

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Nestas ruazinhas de Ijuí

Nestas ruazinhas de Ijuí
há muitos cães e cavalos.
"Minha casa, minha vida"
                         acampou
os gramados de futebol.
A gurizada recuou,
foi brincar no computador.


Poucos sobem nas árvores
andam de bicicleta
têm carrinho de rolimã...


A rua é exclusividade
de carros e motos
os piás estão atrás das grades
distantes do  murmúrio do riacho
distantes do mundo real.


A gurizada se exilou,
foi para o mundo virtual.


Minha cidade tem dinossauros
disfarçados
de quebra-molas
tem pilotos turbinados
disfarçados
de motoristas.


Eles correm
se locupletam
para fugir da vida.


Tem internet na praça
tem skatistas e boêmios
tem faixas de segurança
tem pedestres distraidos.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Era silencioso o amor - Bartolomeu Campos Queirós




Era silencioso o amor. Podia-se adivinhá-lo no cuidado da mãe enxaguando as roupas na água de anil. Era silencioso, mas via-se o amor entre os seus dedos cortando a couve, desfolhando repolhos, cristalizando figos, bordando flores de canela sobre o arroz-doce nas tigelas.
Lia-se o amor no corpo forte do pai, no seu prazer pelo trabalho, em sua mansidão para com os longos domingos. Era silencioso, mas escutava-se o amor murmurando - noite adentro - no quarto do casal. A casa, sem forro, deixava vazar esse murmúrio com aroma de fumo e canela, que invadia lençóis e dúvidas, para depois filtrar-se por entre telhas.
Experimentava-se o amor quando, assentados no calor da cozinha - pai e mãe - falavam de distâncias, dos avós, das origens, dos namoros, dos casamentos.
E, quando o sono chegava, para cada menino em cada tempo, era o amor que carregava cada filho nos braços para a cama, ajeitando o cobertor por sob o queixo.

do livro Indez, editora Miguilim,1989.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

SOLDADOS


Os brinquedos esquecidos
na penumbra do quarto
dizem que têm a minha cara.


Não sei se foi brincadeira
mas bastou ouvir aquilo
pra eu olhar mil espelhos.


Quando estou no quarto
olho nos olhos deles...
Quero de volta a saudade
dos meus brinquedos.


De tanto olhar e imaginar
eles envelheceram.
Então aconselharam
depositá-los num asilo.


Emburrado, guardei-os com cuidado:
eram caixas de soldados desarmados.


Libertei velhos aliados! –gritei.
- De hoje em diante quero amigos,
não quero subordinados!


Mamãe ficou chocada
quando percebeu
legiões de soldados
marcharem triunfantes
em cima da estante!

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

TELÓ, O GALO DA DISCÓRDIA


O jornal Zero Hora dos dias 24 e 25 de janeiro me despertou a atenção com as reportagens sobre o galo que “semeia a discórdia” no município de Capão Novo, no litoral gaúcho. O galo acorda veranistas, cantando de madrugada. É adorado por uns, detestado por outros.
A gauchada diverge, ao opinar sobre o destino do galo: degola, exílio, ou mantê-lo no seu posto, como o “rei do galinheiro”?
O episódio do galo de Capão Novo me leva a pensar nos argumentos pró e contra o “fenômeno” Michel Teló. Há tempos, por causa de outros fenômenos midiáticos, os argumentos se repetem: uns dizem que gosto não se discute. Outros dizem o contrário. Aqui eu lembro de uma frase, mais ou menos assim: “Gosto é gosto, dizia uma velhinha comendo sabão”. Os que a usam (ironicamente) pretendem mostrar que também para o gosto em arte há critérios que nos ajudam a identificar o que é ou não mais interessante para alimentar nossa alma - alimentar a alma porque não creem que curtir música, cinema, literatura, etc. seja apenas diversão ou passatempo.
Mas como a velha pode saber que existem outros pratos, sabores, temperos, etc? Como vai ter ampliada sua capacidade de escolher, se os seus sentidos (ouvidos, olhos, olfato, tato...) nunca experimentaram gostos diferentes?
Para mim, é fundamental termos a possibilidade de exercitar o “método” de comparação. Isso provoca nossos pensamentos. A coitada da velhinha nunca provou outros vinhos, queijos, temperos, iguarias. Esse é o dilema: se dependermos da mídia (generalizando), talvez não consigamos aperfeiçoar nosso gosto, já que ela nos pega, em muito, pela repetição. Tum tum tum o dia todo, nosso ouvido vai ter mais dificuldade de reconhecer (e de ter prazer) com o ruído da cascata, o burburinho do riacho, o canto do sabiá, do galo... Todos sabemos que, se ficarmos ouvindo uma betoneira numa construção, com o tempo aquele ruído vai se agarrar a nossos pensamentos, vai ser a trilha sonora da nossa mente por algum tempo.
Mas podemos “desligar” esses cantos de galo que consideramos indesejáveis. No caso do que ouvimos em música, basta usar o controle remoto da TV, trocar de estação de rádio, trocar o CD, DVD, etc. E, se quisermos tornar nosso ouvido mais eclético, basta ter curiosidade, pesquisar, conversar com as pessoas...
Por falar em galo, eu não me emancipei do canto dos galos na minha infância simples, no interior. Cresci e descobri outros sentidos para esse canto. Um deles foi na poesia de João Cabral de Melo Neto. Comecei então a tomar contato com a poesia e suas metáforas. O professor de filosofia Paulo Schneider me apresentou, quando fui seu aluno na UNIJUÍ, o poema “Tecendo a manhã”. Vou reproduzir aqui um parte dele:

Um galo sozinho não tece uma manhã:
Ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que amanhã, desde uma teia tênue,
Se vá tecendo, entre todos os galos (...).

Nas aulas de filosofia, o professor questionava a nós, seus alunos que ainda acreditavam em mudar o mundo: o canto de um galo desperta outros galos para quê? Para a emancipação humana. A tomada de consciência de nossa vida coletiva. O canto do galo pretende fazer eco na cabeça de outros galos, despertá-los para aqueles interesses que são coletivos. Neste sentido, gostaria que nosso canto de galo não se contentasse apenas com diversão, curtição, entretenimento, mas que também carregasse consigo o desejo de uma sociedade melhor.

Nostalgia. O galo de nossa infância cantava quando clareava o dia. O galo de Capão Novo canta às duas da madrugada, às quatro e às seis, diz a reportagem de Zero Hora. Ele se comporta assim porque está estressado, vive a competição de outros galos, já não é dono do galinheiro, precisa demarcar território... Quanto tempo vai demorar para esse galo ter empresário, site, marca registrada, enfim, uma máquina trabalhando para sua marca? Na indústria cultural é assim: hoje temos Teló, daqui a alguns meses será outro. É assim há décadas. Por isso se chama “indústria”. Ninguém é inocente.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Os poemas - Mario Quintana


Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti ...





 do livro Narizes de vidro. Editora Moderna.

Viagem ao fim da noite

O cachorro passa mancando... não me percebe. Compreendo: a vida é busca, é movimento. Quem prova isso é o motoboy e sua descarga barul...