sexta-feira, 21 de maio de 2010
LABIRINTO - Hermínio Bello de Carvalho
Acho bonito falar alemão.
Por isso, talvez, eu não queira aprender a falar alemão.
Se eu falasse alemão
as pessoas iriam dizer, simplesmente, "ele fala alemão"
e aí perderia toda a graça.
A graça está em achar bonito falar alemão.
Por isso, às vezes,
eu deixo de fazer algumas coisas.
Deixo de dizer que te amo
porque dizer que te amo soaria como uma banalidade
a mais
nesse mundo cheio de banalidades.
E simplesmente me calo, deixo a barba crescer,
escrevo poemas para depois apagá-los de minha lembrança
e esqueço coisas que seriam inesquecíveis
simplesmente porque perdi a capacidade
de reter as coisas boas em minha memória.
Do livro Trem de Alagoas e Outros Poemas.
quinta-feira, 20 de maio de 2010
SEMAFORO
Ficar ou ir em frente.
Eis a dúvida.
Ela sorri
mas seus lábios
não se movem.
Parecem dizer:
- Até quando você
vai ficar aí parado?
Eis a dúvida.
Ela sorri
mas seus lábios
não se movem.
Parecem dizer:
- Até quando você
vai ficar aí parado?
terça-feira, 18 de maio de 2010
HISTÓRIA TRISTE DE TUIM - Rubem Braga
João-de-barro é um bicho bobo que ninguém pega, embora goste de ficar perto da gente, mas de dentro daquela casa de João-de-barro vinha uma espécie de choro, um chorinho fazendo tuim, tuim, tuim....
A casa estava num galho alto, mas um menino subiu até perto, depois com uma vara de bambu conseguiu tirar a casa sem quebrar e veio baixando até o outro menino apanhar. Dentro, naquele quartinho que fica bem escondido depois do corredor de entrada para o vento não incomodar, havia três filhotes, não de João-de-barro, mas de tuim.
Você conhece, não? De todos esses periquitinhos que tem no Brasil, tuim é capaz de ser menor. Tem bico redondo e rabo curto e é todo verde, mas o macho tem umas penas azuis para enfeitar. Três filhotes, um mais feio que o outro, ainda sem penas, os três chorando.
O menino levou-os para casa, inventou comidinhas para eles, um morreu, outro morreu, ficou um. Geralmente se cria em casa é casal de tuim, especialmente para se apreciar o namorinho deles.
Mas aquele tuim macho foi criado sozinho e, como se diz na roça, criado no dedo. Passava o dia solto, esvoaçando em volta da casa da fazenda, comendo sementinhas de imbaúba. Se aperecia uma visita fazia-se aquela demonstração: era o menino chegar na varanda e gritar para o arvoredo: tuim, tuim, tuim! Às vezes demorava, então a visita achava que aquilo era brincadeira do menino, de repente surgia a ave, vinha certinho pousar no dedo do garoto.
Mas o pai disse: "menino, você está criando muito amor a esse bicho, quero avisar: tuim é acostumado a viver em bando. Esse bichinho se acostuma assim, toda tarde vem procurar sua gaiola para dormir, mas no dia que passar pela fazenda um bando de tuins, adeus. Ou você prende o tuim ou ele vai embora com os outros, mesmo ele estando preso e ouvindo o bando passar, esta arriscado ele morrer de tristeza".
E o menino vivia de ouvido no ar com medo de ouvir bando de tuim.
Foi de manhã, ele estava cantando minhoca para pescar quando viu o bando chegar, não tinha engano: era tuim, tuim, tuim... Todos desceram ali mesmo em mangueiras, mamonas e num bambuzal, dividido em partes. E o seu? Já tinha sumido, estava no meio deles, logo depois todos sumiram para uma roça de arroz, o menino gritava com o dedinho esticado para o tuim voltar, mas nada dele vir.
Só parou de chorar quando o pai chegou a cavalo, soube da coisa e disse: " venha cá". E disse: " o senhor é um homem, estava avisado do que ia acontecer, portanto, não chore mais".
O menino parou de chorar, pois seu pai o havia consolado, mas como doía seu coração! De repente, olhe o tuim na varanda! Foi uma alegria na casa que foi uma beleza, até o pai confessou que ele também estivera muito infeliz com o sumiço do tuim.
Houve quase um conselho de família, quando acabaram as férias: deixar o tuim, levar o tuim para São Paulo? Voltaram para a cidade com o tuim, o menino toda hora dando comidinha a ele na viagem. O pai avisou: "aqui na cidade ele não pode andar solto, é um bicho da roça e se perde, o senhor está avisado".
Aquilo encheu de medo o coração do menino. Fechava as janelas para soltar o tuim dentro de casa, andava com ele no dedo, ele voava pela sala, a mãe e a irmã não aprovavam, o tuim sujava dentro de casa.
Soltar um pouquinho no quintal não devia ser perigo, desde que ficasse perto, se ele quisesse voar para longe era só chamar, que voltava, mas uma vez não voltou.
De casa em casa, o menino foi indagando pelo tuim: "que é tuim?" perguntavam pessoas ignorantes. "Tuim?" Que raiva! Pedia licença para olhar no quintal de cada casa, perdeu a hora de almoçar e ir para a escola, foi para outra rua, para outra.
Teve uma idéia, foi ao armazém de "seu" Perrota: "tem gaiola para vender?" Disseram que tinha. " Venderam alguma gaiola hoje?" Tinham vendido uma para uma casa ali perto.
Foi lá, chorando, disse ao dono da casa: "se não prenderam o meu tuim então por que o senhor comprou gaiola hoje?"
O homem acabou confessando que tinha aparecido um periquitinho verde sim, de rabo curto, não sabia que chamava tuim. Ofereceu comprar, o filho dele gostara tanto, ia ficar desapontado quando voltasse da escola e não achasse mais o bichinho. "Não senhor, o tuim é meu, foi criado por mim".
Voltou para casa com o tuim no dedo.
Pegou uma tesoura: era triste, era uma judiação, mas era preciso, cortou as asinhas, assim o bichinho poderia andar solto no quintal, e nunca mais fugiria.
Depois foi dentro de casa para fazer uma coisa que estava precisando fazer, e, quando voltou para dar comida a seu tuim, viu só algumas penas verdes e as manchas de sangue no cimento. Subiu num caixote para olhar por cima do muro, e ainda viu o vulto de um gato ruivo que sumia.
Acabou-se a triste história do tuim.
A casa estava num galho alto, mas um menino subiu até perto, depois com uma vara de bambu conseguiu tirar a casa sem quebrar e veio baixando até o outro menino apanhar. Dentro, naquele quartinho que fica bem escondido depois do corredor de entrada para o vento não incomodar, havia três filhotes, não de João-de-barro, mas de tuim.
Você conhece, não? De todos esses periquitinhos que tem no Brasil, tuim é capaz de ser menor. Tem bico redondo e rabo curto e é todo verde, mas o macho tem umas penas azuis para enfeitar. Três filhotes, um mais feio que o outro, ainda sem penas, os três chorando.
O menino levou-os para casa, inventou comidinhas para eles, um morreu, outro morreu, ficou um. Geralmente se cria em casa é casal de tuim, especialmente para se apreciar o namorinho deles.
Mas aquele tuim macho foi criado sozinho e, como se diz na roça, criado no dedo. Passava o dia solto, esvoaçando em volta da casa da fazenda, comendo sementinhas de imbaúba. Se aperecia uma visita fazia-se aquela demonstração: era o menino chegar na varanda e gritar para o arvoredo: tuim, tuim, tuim! Às vezes demorava, então a visita achava que aquilo era brincadeira do menino, de repente surgia a ave, vinha certinho pousar no dedo do garoto.
Mas o pai disse: "menino, você está criando muito amor a esse bicho, quero avisar: tuim é acostumado a viver em bando. Esse bichinho se acostuma assim, toda tarde vem procurar sua gaiola para dormir, mas no dia que passar pela fazenda um bando de tuins, adeus. Ou você prende o tuim ou ele vai embora com os outros, mesmo ele estando preso e ouvindo o bando passar, esta arriscado ele morrer de tristeza".
E o menino vivia de ouvido no ar com medo de ouvir bando de tuim.
Foi de manhã, ele estava cantando minhoca para pescar quando viu o bando chegar, não tinha engano: era tuim, tuim, tuim... Todos desceram ali mesmo em mangueiras, mamonas e num bambuzal, dividido em partes. E o seu? Já tinha sumido, estava no meio deles, logo depois todos sumiram para uma roça de arroz, o menino gritava com o dedinho esticado para o tuim voltar, mas nada dele vir.
Só parou de chorar quando o pai chegou a cavalo, soube da coisa e disse: " venha cá". E disse: " o senhor é um homem, estava avisado do que ia acontecer, portanto, não chore mais".
O menino parou de chorar, pois seu pai o havia consolado, mas como doía seu coração! De repente, olhe o tuim na varanda! Foi uma alegria na casa que foi uma beleza, até o pai confessou que ele também estivera muito infeliz com o sumiço do tuim.
Houve quase um conselho de família, quando acabaram as férias: deixar o tuim, levar o tuim para São Paulo? Voltaram para a cidade com o tuim, o menino toda hora dando comidinha a ele na viagem. O pai avisou: "aqui na cidade ele não pode andar solto, é um bicho da roça e se perde, o senhor está avisado".
Aquilo encheu de medo o coração do menino. Fechava as janelas para soltar o tuim dentro de casa, andava com ele no dedo, ele voava pela sala, a mãe e a irmã não aprovavam, o tuim sujava dentro de casa.
Soltar um pouquinho no quintal não devia ser perigo, desde que ficasse perto, se ele quisesse voar para longe era só chamar, que voltava, mas uma vez não voltou.
De casa em casa, o menino foi indagando pelo tuim: "que é tuim?" perguntavam pessoas ignorantes. "Tuim?" Que raiva! Pedia licença para olhar no quintal de cada casa, perdeu a hora de almoçar e ir para a escola, foi para outra rua, para outra.
Teve uma idéia, foi ao armazém de "seu" Perrota: "tem gaiola para vender?" Disseram que tinha. " Venderam alguma gaiola hoje?" Tinham vendido uma para uma casa ali perto.
Foi lá, chorando, disse ao dono da casa: "se não prenderam o meu tuim então por que o senhor comprou gaiola hoje?"
O homem acabou confessando que tinha aparecido um periquitinho verde sim, de rabo curto, não sabia que chamava tuim. Ofereceu comprar, o filho dele gostara tanto, ia ficar desapontado quando voltasse da escola e não achasse mais o bichinho. "Não senhor, o tuim é meu, foi criado por mim".
Voltou para casa com o tuim no dedo.
Pegou uma tesoura: era triste, era uma judiação, mas era preciso, cortou as asinhas, assim o bichinho poderia andar solto no quintal, e nunca mais fugiria.
Depois foi dentro de casa para fazer uma coisa que estava precisando fazer, e, quando voltou para dar comida a seu tuim, viu só algumas penas verdes e as manchas de sangue no cimento. Subiu num caixote para olhar por cima do muro, e ainda viu o vulto de um gato ruivo que sumia.
Acabou-se a triste história do tuim.
segunda-feira, 17 de maio de 2010
A vingança das abelhas
A notícia foi publicada há uma semana, mas só me deparei agora porque o jornal foi colocado no banheiro, no lugar de um tapete que estava secando no varal. Abelha vai fazer falta, diz seu título. Os americanos estão preocupados com o desaparecimento das abelhas. Está diminuindo a polinização de lavouras nos EUA. No Brasil, estudos indicam que a produtividade é muito maior em áreas próximas à fauna e flora preservadas.
Mesmo encarcerado à intimidade do banheiro, onde posso me desligar do mundo exterior, a colisão com a notícia mexeu comigo, e esse contato com a sina das abelhas deixou-me pensativo e com um certo sentimento de culpa.
É que eu tenho um quintal enorme, com árvores enormes, quase uma micro-floresta. Meu vizinho dos fundos, não sei se por convicção ou se para competir comigo, deixa também seu quintal florescer. Na minha ingenuidade de cidadão preso aos direitos e deveres, perco o sono só de pensar que um enxame de abelhas “sem floresta” invada e tome posse de meu quintal. Se isso acontecer, será que a justiça vai me conceder reintegração de posse?
Mas a constatação de que ao ler o jornal muita coisa passa despercebida também me deixou intrigado: com tanta informação diária, não tem como filtrar e guardar tudo. Só que essa notícia (ínfima) sobre a realidade das abelhas e sua importância para o futuro da humanidade é de tirar o sono. Por outro lado, não posso transformar o santuário que é o banheiro em mais um lugar de estresse. Nele, fomos educados para evacuar, de maneira prazerosa se possível, tudo que recolhemos no percurso do dia, mas que não nos serve mais.
Só que a notícia sobre as abelhas veio mostrar que muitas notícias de jornal não são descartáveis só porque amanhã virá outra edição mais atualizada no seu lugar.
É por isso que me dá arrepios só de pensar que, mesmo dispondo de toda a parafernália atual de informática, nem por isso terei garantida a inspiração e criatividade suficientes para escrever algo significativo. Aliás, é a velha angústia de ter que enfrentar uma folha em branco, impassível e indiferente.
Enquanto centenas de folhas impressas de jornal diariamente vêm chamar minha atenção, não há nenhum rastro de abelhas por aqui (graças a Deus!). Mas isso poderá significar o meu/nosso fim e de todo o planeta.
domingo, 16 de maio de 2010
MEU IDEAL SERIA ESCREVER... Rubem Braga
Busquei no Google a crônica do velho Braga História triste de Tuim, que vou ler para os alunos de quinta a oitava séries do Ensino Fundamental do IMEAB/Ijuí-RS na próxima semana, e tive a grata surpresa de encontrar esta crônica.
Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse -- "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria -- "mas essa história é mesmo muito engraçada!".
Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.
Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse - e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse - "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!" . E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.
E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago - mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina".
E quando todos me perguntassem - "mas de onde é que você tirou essa história?" - eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história...".
E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.
A crônica acima foi extraída do livro "A traição das elegantes", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1967, pág. 91.
sexta-feira, 14 de maio de 2010
FÁBULA - Adão Ventura
Engolir sapo seco
ou vestir a camisa
dos camaleões.
Engolir sapo seco
por qualquer traste
ou migalha.
Engolir sapo seco
ao sabor do esterco
e da farsa.
Engolir sapo seco
ou mijar
pelas pernas abaixo.
Engolir sapo seco
ao invés
de sangrar os porcos.
Do livro Costura de nuvens.
ou vestir a camisa
dos camaleões.
Engolir sapo seco
por qualquer traste
ou migalha.
Engolir sapo seco
ao sabor do esterco
e da farsa.
Engolir sapo seco
ou mijar
pelas pernas abaixo.
Engolir sapo seco
ao invés
de sangrar os porcos.
Do livro Costura de nuvens.
quarta-feira, 12 de maio de 2010
AS ESTAÇÕES ENVELHECEM
O velhinho passou vagarosamente. Esforçava-se para amenizar os vacilos que o distraiam de ir em frente.
Na hora emergiu a máxima de Heráclito, do Ser e do Vir a Ser. A constante mudança, nossa e das águas do rio. Não somos os mesmos de ontem, e as águas que agora passam não serão as mesmas que amanhã vão passar.
É inevitável. A máquina complexa do organismo envelhece, e não esconde seu declínio.
Nessas alturas falam-nos de viver com sabedoria. E acho que para isso necessitamos ter consciência de que essa máquina não pode tudo. Os órgãos envelhecem, mesmo que células que morrem dêem lugar a células que nascem, e tudo se renova, como as estações do ano.
Dizem que viver sabiamente é nos resignarmos com a perda da potência que desfrutávamos quando éramos mais jovens. De uma hora para outra diminui a energia e o ritmo.
Saltava aos olhos o esforço daquela criatura ao tentar vencer a força gravitacional. Mas a lei é objetiva, formal e universal. Não se atreva, meu velho, quando "tudo é da lei".
É grave termos esquecido da passagem inexorável do tempo, e as mudanças que ele traz.
Partes de um todo, se envelhecemos, as estações envelhecem. Vamos nos despedir no crepúsculo, antes que a Coruja de Minerva assuma o céu. Estamos a toda hora nos despedindo. mas a cada despedida torcemos para que ela nos guarde o infinito.
O certo, o que nos é permitido fazer, é pedir-lhe para que reserve um lugar para que possamos depositar nossa memória.
Na hora emergiu a máxima de Heráclito, do Ser e do Vir a Ser. A constante mudança, nossa e das águas do rio. Não somos os mesmos de ontem, e as águas que agora passam não serão as mesmas que amanhã vão passar.
É inevitável. A máquina complexa do organismo envelhece, e não esconde seu declínio.
Nessas alturas falam-nos de viver com sabedoria. E acho que para isso necessitamos ter consciência de que essa máquina não pode tudo. Os órgãos envelhecem, mesmo que células que morrem dêem lugar a células que nascem, e tudo se renova, como as estações do ano.
Dizem que viver sabiamente é nos resignarmos com a perda da potência que desfrutávamos quando éramos mais jovens. De uma hora para outra diminui a energia e o ritmo.
Saltava aos olhos o esforço daquela criatura ao tentar vencer a força gravitacional. Mas a lei é objetiva, formal e universal. Não se atreva, meu velho, quando "tudo é da lei".
É grave termos esquecido da passagem inexorável do tempo, e as mudanças que ele traz.
Partes de um todo, se envelhecemos, as estações envelhecem. Vamos nos despedir no crepúsculo, antes que a Coruja de Minerva assuma o céu. Estamos a toda hora nos despedindo. mas a cada despedida torcemos para que ela nos guarde o infinito.
O certo, o que nos é permitido fazer, é pedir-lhe para que reserve um lugar para que possamos depositar nossa memória.
sexta-feira, 7 de maio de 2010
O GATO E A BARATA - Millôr Fernandes
A baratinha velha subiu pelo pé do copo que, ainda com um pouco de vinho, tinha sido largado a um canto da cozinha, desceu pela parte de dentro e começou a lambiscar o vinho. Dada a pequena distância que nas baratas vai da boca ao cérebro, o álcool lhe subiu logo a este. Bêbada, a baratinha caiu dentro do copo. Debateu-se, bebeu mais vinho, ficou mais tonta, debateu-se mais, bebeu mais, tonteou mais e já quase morria quando deparou com o carão do gato doméstico que sorria de sua aflição, do alto do copo.
- Gatinho, meu gatinho - pediu ela - me salva, me salva. Me salva que assim que eu sair daqui eu deixo você me engolir inteirinha, como você gosta. Me salva.
- Você deixa mesmo eu engolir você? - Disse o gato.
- Me saaalva! - implorou a baratinha - Eu prometo.
O gato então virou o copo com uma pata, o líquido escorreu e com ele a baratinha que, assim que se viu no chão, saiu correndo para o buraco mais perto, onde caiu na gargalhada.
- Que é isso - perguntou o gato - Você não vai sair daí e cumprir sua promessa? Você disse que deixaria eu comer você inteira.
- Ah, ah, ah, - riu então a barata, sem poder se conter - E você é tão imbecil a ponto de acreditar na promessa de uma barata velha e bêbada?
quarta-feira, 5 de maio de 2010
AS CONVERSAS DE MANÉ BOCÓ
Mané Bocó era o rapaz mais acanhado deste mundo.
Sua mãe fazia muito gosto que ele se casasse com sua prima, moça rica e bonita, no que estavam de acordo os pais dela.
Trataram de aproximar os jovens, e para isto os pais da moça deram um baile.
A mãe de Mané Bocó, ao sair de casa com o filho, disse-lhe:
- Você, rapaz, precisa perder esse acanhamento, e conversar com a sua noiva. Mas não diga tolices. Pense bem no que terá que dizer.
Mané Bocó, em chegando, e apresentado à noiva, sentou-se ao pé dela, sem dizer uma palavra, mas a pensar no que havia de dizer.
A moça encarava-o, sorrindo. E, vai então, apontando os dedos para os olhos dela, exclamou, envergonhado:
- Eu te furo os olhos!...
A moça levantou-se e foi contar à futura sogra o que se havia passado.
A velha chamou o filho de lado e o repreendeu, aconselhando:
- Não é assim, Mané, você precisa dizer para ela palavras delicadas, coisas doces...
Então o rapaz aproximou-se de novo da namorada e, depois de muito pensar, suspirou:
- Açúcar, melado, rapadura...
A moça começou a rir e foi contar à velha o que havia acontecido.
A mãe de Mané Bocó chamou-o outra vez, de lado:
- Você nunca vai deixar de ser tolo! O que você disse à sua noiva são coisas que se dizem?!
- Pois a senhora não mandou que eu falasse em coisas doces!?... Ué!
- Nada. Vá procurá-la de novo e converse com ela em coisas do céu... em estrelas, luar, por exemplo.
Mané Bocó foi ter com a moça e, depois de muito pensar, disse-lhe:
- Raio, corisco, trovão, tempestade!!...
Tinha-lhe dito coisas do céu, pensava ele, conforme sua mãe lhe havia recomendado, estava muito contente. Mas a moça soltou uma gargalhada... E ficou desfeito o projeto de casamento.
Por isso não fui à festa do casório e assim não pude trazer para vocês um isto de doces. E acabou-se a história.
Do livro Contos populares brasileiros, de Lindolfo Gomes.
Sua mãe fazia muito gosto que ele se casasse com sua prima, moça rica e bonita, no que estavam de acordo os pais dela.
Trataram de aproximar os jovens, e para isto os pais da moça deram um baile.
A mãe de Mané Bocó, ao sair de casa com o filho, disse-lhe:
- Você, rapaz, precisa perder esse acanhamento, e conversar com a sua noiva. Mas não diga tolices. Pense bem no que terá que dizer.
Mané Bocó, em chegando, e apresentado à noiva, sentou-se ao pé dela, sem dizer uma palavra, mas a pensar no que havia de dizer.
A moça encarava-o, sorrindo. E, vai então, apontando os dedos para os olhos dela, exclamou, envergonhado:
- Eu te furo os olhos!...
A moça levantou-se e foi contar à futura sogra o que se havia passado.
A velha chamou o filho de lado e o repreendeu, aconselhando:
- Não é assim, Mané, você precisa dizer para ela palavras delicadas, coisas doces...
Então o rapaz aproximou-se de novo da namorada e, depois de muito pensar, suspirou:
- Açúcar, melado, rapadura...
A moça começou a rir e foi contar à velha o que havia acontecido.
A mãe de Mané Bocó chamou-o outra vez, de lado:
- Você nunca vai deixar de ser tolo! O que você disse à sua noiva são coisas que se dizem?!
- Pois a senhora não mandou que eu falasse em coisas doces!?... Ué!
- Nada. Vá procurá-la de novo e converse com ela em coisas do céu... em estrelas, luar, por exemplo.
Mané Bocó foi ter com a moça e, depois de muito pensar, disse-lhe:
- Raio, corisco, trovão, tempestade!!...
Tinha-lhe dito coisas do céu, pensava ele, conforme sua mãe lhe havia recomendado, estava muito contente. Mas a moça soltou uma gargalhada... E ficou desfeito o projeto de casamento.
Por isso não fui à festa do casório e assim não pude trazer para vocês um isto de doces. E acabou-se a história.
Do livro Contos populares brasileiros, de Lindolfo Gomes.
sábado, 1 de maio de 2010
ENCONTROS
As unhas do vento na janela
são carruagens que trazem
lembranças do amor.
Ecos distantes
ensaiam encontros
com tardes gloriosas.
Acreditei nas palavras da cartomante.
Nos bilhetes escritos
em guardanapos
da mesa do bar.
Os deuses esqueceram
de incendiar nossa alma
e desejar nossos desejos...
Os deuses nos abandonaram
quando viemos ao mundo.
terça-feira, 27 de abril de 2010
O REFORMADOR DO MUNDO - Monteiro Lobato
Américo Pisca-pisca tinha o hábito de por defeito em todas as coisas.
O mundo para ele estava errado e a natureza só fazia asneiras.
- Asneiras, Américo?
- Pois então?!... Aqui mesmo, neste pomar, você tem a prova disso. Ali está uma jabuticabeira enorme sustentando frutas pequeninas, e lá adiante vejo uma colossal abóbora presa ao caule duma planta rasteira. Não era lógico que fosse justamente o contrário? Se as coisas tivessem de ser reorganizadas por mim, eu trocaria as bolas, passando as jabuticabas para a aboboreira e as abóboras para a jabuticabeira. Não tenho razão?
Assim discorrendo, Américo provou que tudo estava errado e só ele era capaz de dispor com inteligência o mundo.
- Mas o melhor - concluiu - é não pensar nisto e tirar uma soneca à sombra destas árvores, não acha? E Pisca-pisca, pisca-piscando que não acabava mais, estirou-se de papo para cima à sombra da jabuticabeira.
Dormiu. Dormiu e sonhou. Sonhou com o mundo novo, reformado inteirinho pelas suas mãos. Uma beleza!
De repente, no melhor da festa, plaf! uma jabuticaba cai do galho e lhe acerta em cheio no nariz.
Américo desperta de um pulo; pisca, pisca; medita sobre o caso e reconhece, afinal, que o mundo não era tão mal feito assim.
E segue para casa refletindo:
- Que espiga!... Pois não é que se o mundo fosse arrumado por mim a primeira vítima teria sido eu? Eu, Américo Pisca-pisca, morto pela abóbora por mim posta no lugar da jabuticaba? Hum! Deixemo-nos de reformas. Fique tudo como está, que está tudo muito bem.
E Pisca-pisca continuou a piscar pela vida em fora, mas já sem a cisma de corrigir a natureza.
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Viagem ao fim da noite
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Garota, nossos destinos têm pernas bambas e percorrem umas trilhas nada paralelas. Veja bem, você não leu Schopenhauer nem Han...
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