sábado, 20 de agosto de 2011

Aquele estranho animal - Mário Quintana




Os do Alegrete dizem que o causo se deu em Itaqui, os de Itaqui dizem que foi no Alegrete, outros juram que só poderia ter acontecido em Uruguaiana. Eu não afirmo nada: sou neutro.

Mas, pelo que me contaram, o primeiro automóvel que apareceu entre aquela brava indiada, eles o mataram a pau, pensando que fosse um bicho. A história foi assim como já lhes conto, metade pelo que ouvi dizer, metade pelo que inventei, e a outra metade pelo que sucedeu às deveras. Viram? É uma história tão extraordinária mesmo que até tem três metades... Bem, deixemos de filosofança e vamos ao que importa. A coisa foi assim, como eu tinha começado a lhes contar.

Ia um piazinho estrada fora no seu petiço – tropt, tropt, tropt – (este é o barulho do trote) – quando de repente ouviu – fufufupubum! Fufufupubum chiiiipum!
E eis que a “coisa” então invisível, apontou por detrás de um capão, bufando que nem touro brigão, saltando que nem pipoca, se traqueando que nem velha coroca, chiando que nem chaleira derramada e largando fumo pelas ventas como a mula-sem-cabeça.
“Minha Nossa Senhora!”

O piazinho deu meia volta e largou numa disparada louca rumo da cidade, com os olhos do tamanho de um pires e os dentes rilhando, mas bem cerrados para que o coração aos corcoveios não lhe saltasse pela boca.
É claro que o petiço ganhou luz do bicho, pois no tempo dos primeiros autos eles perdiam para qualquer matungo.
Chegado que foi, o piazinho contou a história como pôde, mal e mal e depressa, que o tempo era pouco e não dava para maiores explicações, pois já se ouvia o barulho do bicho que se aproximava.

Pois bem, minha gente: quando este apareceu na entrada da cidade, caiu aquele montão de povo em cima dele, os homens com porretes, outros com garruchas que nem tinham tido tempo para carregar de pólvora, outros com boleadeiras, mas todos de a pé, porque também nem houvera tempo para montar, e as mulheres umas empunhando as suas vassouras, outras as suas pás de mexer marmelada, e os guris, de longe, se divertindo com os seus bodoques, cujos tiros iam acertar em cheio nas costas do combatentes. E tudo abaixo de gritos e pragas que nem lhes posso repetir aqui.


Até que enfim houve uma pausa para respiração.


O povo se afastou, resfolegante, e abriu-se uma clareira, no meio da qual se viu o auto emborcado, amassado, quebrado, escangalhado, e não digo que morto porque as rodas ainda giravam no ar, nos últimos transes de uma teimosa agonia. E quando as rodas pararam, as pobres, eis que o motorista, milagrosamente salvo, saiu penosamente engatinhando por debaixo dos escombros de seu ex-automóvel.


- A la pucha! – exclamou então um guasca, entre espantado e penalizado – o animal deu cria!


quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Rimas - Luis Fernando Verissimo





O homem chegou em casa assustado:


- Está por toda a cidade, é uma sina: todo mundo falando com rima.


- O quê? - perguntou a mulher.


- Uma compulsão, um vírus, algo no ar. Não se diz mais nada sem rimar.


- Que absurdo - disse a mulher - um vírus da rima. Ninguém é obrigado a falar o que não quer, seja homem ou mulher. Nenhuma lei... Meu Deus, peguei!


- É na rua, é em casa, é em todo lugar. Não se fala sem rimar.


- Mas é uma barbaridade, ser poeta contra a vontade!


- Concordo, é um abuso. Mas que fazer? Estou confuso.


- Só há um jeito de se rebelar, resistir e não rimar...


- Como?


- Não falar.


- Mas como nos comunicaremos, se não com as vozes que temos.


- Escrevendo, por que não? Ninguém manda em nossa mão.


- Sei não será que muda? E se eu escrever como o Neruda?


- Não é hora pra chilique. Pega um papel, e olha a Bic.


O homem experimenta escrever uma frase no papel. Depois recua, horrorizado.


- Estou quase tendo um ataque. Escrevi como o Bilac!


- Será uma coisa generalizada que atingiu até a empregada?


- Vamos ver se é ou não é. Chame a Nazaré.


A mulher chama a empregada.


- Nazaré, vem aqui um minutinho?


A empregada responde da cozinha:


- Já vou indo, um instantinho. Estou fazendo ensopadinho.


O homem e a mulher se abraçam. É uma epidemia. A rima tomou conta do país. Mas por quê?


A mulher tenta racionalizar.


- Tem que haver explicação. Um motivo, uma razão.


- Terá sido a eleição?


- Mas como, de que jeito? O que foi que mudou com o pleito?


- Elegeu-se o maravilhoso...


- Quê?


-...Fernando Henrique Cardoso.


- O Cardoso, maravilhoso? Me admira você, que votou no PT!


- Você não está entendendo? Eu não sei o que estou dizendo!


- Calma, não se apoquente. Fale outra vez, pausadamente.


O homem faz um esforço, mas não consegue.


- Elegeu-se. O. Maravilhoso. Fernando. Henrique. Cardoso.


- Tente outra rima, com urgência. Quem sabe "seboso", pra manter a coerência?


- Não consigo, não vê? Tente você.


- Elegeu-se o...


- Sim?


- Elegeu-se o...


- Sim?


- Gostoso...


- Não!


- Fernando Henrique Cardoso.


- Já vi, é uma perfídia. Tudo culpa da mídia. Nós não estamos enfeitiçados, estamos é condicionados.


- Quando ele se elegeu, foi nisso que deu. Há uma rima oficial no Brasil - pelo menos até abril.


- Quem variar é exótico, até impatriótico.


- Paciência, relaxemos. Isto passa, esperemos.


- Eu até diria assim: rima melhor quem rima no fim.


Aparece a Nazaré na porta da cozinha.


- A senhora chamou. Aqui estou.


- Nada, nada, Nazaré. O ensopadinho, de que é?


- De vitela cortadinha. Batata, vagem e cebolinha.


- Parece uma beleza. Pode botar na mesa.





quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Quanto mais procura mais se perde




 
Quanto mais procura mais se perde,
sejam esquinas, muros e quintais,
estratégico, recua e se esconde
pra não pulsar demais.


Em sonhos até consegue ver
o porto seguro num ponto certo
mas o que faz é rodar em círculos
no ritmo do superego.


“Não sou excepcional” – murmura.
É que muitas vezes não consegue agarrar
                                                    a memória
                com narrativas extraordinárias.


Perde a compostura quando mede
o que tem valor e o descartável
então lhe resta reunir coragem
para dedilhar aos outros
            seu riso selvagem.


Faminto, ensaia gargalhadas
quando alguém desfila
                  outra piada.


Ele sabe que anda em círculos
e por isso explora outros calvários
resta-lhe mudar o itinerário
                          e se esconder
                       dentro de casa.


Alguns perguntam, como se as perguntas
                              fossem para si mesmos:
- Se ele procura um rosto ano após ano
é por que um dia teve o Ponto Arquimediano?
Lugar clicado sobre a rocha
- amor, trabalho, família, aventuras,
                    surpresas, sonhos, planos
ou até recomeçar sozinho numa ilha?...


A resposta fica para o eco, eco, eco...
                             até o próximo grito!


Quanto mais procura mais se perde
pra recuar e se esconder
                     e não pulsar
              até desaparecer!



segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Dia branco - Geraldo Azevedo




Se você vier
pro que der e vier
comigo
eu te prometo o sol
se hoje o sol sair
ou a chuva
se a chuva cair
se você vier
até onde a gente chegar
numa praça na beira do mar
num pedaço de qualquer lugar
nesse dia branco
se branco ele for
esse tanto esse canto de amor
se você quiser e vier
pro que der e vier comigo.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Havia uma bruxa em meu caminho



Toda a vez que a bruxa se queixa de que sua vida eterna terrena é monótona, eu sinto inveja.



Invejo-a quando ela diz que nada de novo se passa sob o sol, e logo embarca em sua vassoura Ford ka para mais um passeio panorâmico.


Ela tem o dia todo para fazer o que quer, enquanto os casais de minha cidade dispõem apenas do domingo à tarde para passear de carro em torno da praça, com seus cachorrinhos e o chimarrão.


Ela não sente a falta que sentimos, das noites de sábado e domingo, do tédio das lanchonetes e dos xis-burgueres gigantes, nem dos litros e litros de refri, e nem dos programas de auditório repetitivos, dos canais de TV.


Diferente de mim e de meus semelhantes, a bruxa não se preocupa com espelho, maquiagens... Nunca vai desejar vencer um concurso de beleza.

Invejo-a com franca admiração, por ela me passar a impressão de tranqüilidade e indiferença com relação às nóias diárias.


Quando fez seu contato de segundo grau eu quase pirei, porque falou que só ligou para minha voz – que era bela, clara, com uma boa dicção. Eu queria que ela captasse minha energia, o meu cheiro...


Morro de inveja porque a bruxa não é uma simples e previsível mulher: é magia, sedução e confusão.


Ela mentiu quando disse ao menino que estava fazendo regime e, depois, quando cuspiu nos pratos sugerido pela nutricionista.


A séculos ela come e não engorda. Se todos fossem como ela, a indústria dos produtos lights iria à falência.


Passou-me a perna quando fingiu se parecer comigo, um guri preocupado com os contornos avantajados da silhueta.


Agora eu sei. Apesar de tudo ela não é diferente de nós, humanos, também se faz valer de estratégias para angariar simpatia.


Feminina ao extremo, não me deixa decifrar seu olhar, adivinhar suas intenções.


Tive certeza, após ler a crônica do Luis Fernando Veríssimo, de que a bruxa é, no mínimo, uma “come e não engorda” - mais cômica do que trágica.






O come e não engorda


Ninguém é mais admirado ou invejado do que o come e não engorda. Você o conhece. É o que come o dobro do que nós comemos e tem a metade da circunferência e ainda se queixa:


— Não adianta. Não consigo engordar.


O come e não engorda é meu ídolo. Só não lhe peço autógrafo por inibição. Meu sonho é emagrecer e depois nunca mais engordar, por mais que tente. Quando eu diminuir, quero ser um come e não engorda.


Não se deve confundir o come e não engorda com o enfastiado. Este pertence a outra espécie. Não é humano. Pode até ser melhor do que nós, um aperfeiçoamento, mas não é humano. Afinal, o que une a humanidade é o seu apetite comum. Não é por nada que partilhar da comida com o próximo tem sido um símbolo de concórdia desde as primeiras cavernas.


Até hoje as conferências de paz se fazem em volta de uma mesa onde a comida, se não está presente, está implícita. Desconfie do enfastiado. Ele será um agente de outra galáxia ou um poço de perversões, ou as duas coisas. De qualquer maneira, mantenha-o longe das crianças.


Quando encontrar alguém na frente de um prato cheio só emparelhando as ervilhas com a ponta da faca, notifique os órgãos de segurança. É um enfastiado e pode ser perigoso. Sempre achei que as pessoas que comem como um passarinho deviam ser caçadas a bodoque. O seu fastio, inclusive, é um escárnio aos que querem comer e não podem.


Já o come e não engorda compartilha do nosso apetite, só não compartilha das consequências. Ele repete a massa e não tem remorso. Pede mais chantilly e sua voz não treme. Molha o pão no café com leite! E ainda se queixa:


— Há 15 anos tenho o mesmo peso.


O come e não engorda só parou de mamar no peito porque proibiram sua mãe de ficar junto no quartel.


Quando o come e não engorda nasceu, uma estrela misteriosa apareceu no Guide Michelin de restaurantes para aquele ano. O come e não engorda caminha sobre a sauce bernaise e não afunda. Multiplica os filés de peixe à meunière e os pães de queijo. Por onde o come e não engorda passa, as ovelhas se atiram para trás e pedem "me assa!". O come e não engorda tem o segredo da Vida e da Morte e, suspeita-se, o telefone da Bruna Lombardi. E ainda se queixa:


— Tenho que tomar quatro milk-shakes entre as refeições. Dieta. Dieta! E você ali, de olho arregalado.

Ovelha desgarrada

  Manhã de domingo, Beiço deu as caras: – Velho. Andei pensando. Está na hora do Cadelão parar de cair nas sarjetas próximas a bares para ...