Tenho uma boxer que
chama Tina e um vira-latas que chama Arthur. Três vezes por semana separamos
nossas armas, coleiras e focinheiras, afinamos os cheiradores e vamos passear.
Posso ser pedinte, virar o lixo e ser imundo, mas no meu íntimo sou o dono do
mundo.
Meu tio abraçou as
convenções para se acostumar com o som do seu nome. A acústica, o tom da voz,
lembram sempre seu continente, tão vasto e tão algoz.
Quando entoavam sua
pronúncia, as pedras uivavam e abafavam o seu silêncio de nuvem derradeira. Foi
assim que fracassou na décima primeira missão de curar a dor das pedras.
Hoje meu tio ouve a
música do seu nome com orgulho, pois tem uma cadela que chama Tina e um
vira-latas que chama Arthur. Conhece todas as pets da cidade, e quando ouve os
cães uivarem seus olhos de ET se enchem de luz.
Mas eu não consigo me
acostumar completamente, com o fato de os bichos aceitarem o meu desejo de se
tornarem gente. Se eu quero um dia voltar pro mato, por que eles precisam vir
pra cidade, e me imitar?
Já não liguei, quando
estava no bar com amigos, ceiando e brindando às pencas, e os vira-latas se
aproximavam com seus olhares humildes, orelhas, pulgas e pelos, a
implorar não só comida mas também carinho.
Repentinamente eu vi,
com estes lindos olhos que a terra há de comer, que também sou vira-latas
catando abraços, olhares e suspiros poéticos. E o que agora me preocupa é nem
ligar pra isso.
Sei que estou
pretensioso demais ao ver com certo medo os bichos se tornarem gente. Embora eu
também seja guaipeca que fugiu das vitrines e correu até os lugares apinhados
de gente, a implorar um novo lar.
Mas me soa estranho
minha cidade ter quase o mesmo número de animais do que de gente. E minhas
orelhas empinam quando vejo humanos passarem mais necessidade do que os bichos.
Nessas horas lembro de um pedaço de uma música do Caetano: “Algo parece estar
fora da ordem, da nova ordem mundial...”.
Temo pelos animais
domésticos. Tenho pesadelos quando penso numa possível revolução dos bichos. E
sofro também por mim, que me tornei doméstico.
Mas sei também que se
eu forçar até o limite do meu olhar, até o limite da minha compreensão, se eu
dobrar as vontades mais urgentes, então compreenderei feliz que não sou mais
do que aranha, cobra, gato, cão e carrapato, pois todos nós temos nossos
humores, manhas e artimanhas, para sobreviver pelo menos até amanhã de manhã.
O que me consola é que
tenho uma boxer que chama Tina e um vira-latas que chama Arthur. Três vezes por
semana agarramos coleira e focinheira e, faceiros como as árvores e os postes,
deslizamos a passear.
TIRADAS do Teco, o poeta sonhador