terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Pergunte ao grilo


Você que cultiva e compartilha crenças no trabalho escola ou igreja. Que todo mês faz as contas como num ritual que serve de portal para acessar o Hades. Que sai de fininho se a expectativa no amor foi frustrada. Você que sabe de cor, após o repouso dopado, como deve ser a política e a economia. Permita-me arriscar: você pouco sabe dos mistérios e da beleza da vida. É que você esqueceu de perguntar ao grilo, que apenas cricri. A noite os sonhos os pesadelos, o grilo não tem teorias verdadeiras, não diz se é do bem ou do mal, não diz quem é homofóbico ou racista, machista ou não. O grilo apenas apenas cricri. Você que reclama de boca cheia e cospe na cara dos outros, você que se transforma em bandido ou mocinho na intensidade do porre. Você precisa aprender com o grilo, que nada professa, que não reivindica aos quatro ventos sua liberdade de expressão. O grilo apenas apenas cricri.


(Diário de B. B. Palermo)

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Hilda Hilst - O místico e o filosófico de ser escritora e se inconformar com a morte

Hilda Hilst é uma figura de extremos que ultimamente tem se tornado cada vez mais famosa. Um de seus maiores desejos em vida era justamente “ser lida”, algo que ela teve a certeza de que iria acontecer pouco antes de sua morte, quando uma grande editora, a Globo Livros, se comprometeu em editar sua obra completa a partir de 2001. Hilda morreu em 2004, morando em Campinas, o seu refúgio da vida badalada que teve em São Paulo na juventude.
Além da obra completa de Hilda Hilst que engloba textos em prosa, poesia e teatrais, a Editora Globo também publicou o livro “Fico besta quando me entendem” que compila diversas entrevistas concedidas por Hilda Hilst durante sua vida. Assim como em seus livros, os temas existenciais, místicos e filosóficos são constantes e se misturam com o cotidiano, a política e o ser escritora.
“As pessoas perguntam sempre por que a gente escreve e eu fico pensado em todos os motivos que levam de repente uma pessoa a escrever e penso que a raiz disso em mim está na vontade de ser amada, numa avidez pela vida. Quem sabe também se não é uma necessidade de viver o transitório com intensidade, uma força oculta que nos impele a descobrir o segredo das coisas. Uma necessidade imperiosa de ir ao âmago de nós mesmos, um estado passional diante da existência, uma compaixão pelos seres humanos, pelos animais, pelas plantas.”
Quase premonitória, Hilda Hilst também fala de como a necessidade de se rebelar contra a morte também acompanha o ofício de escritora.
“A verdade é que, diante da morte, a gente nunca está realmente conformada. É por isso que penso que o que me leva a escrever é uma vontade de ultrapassar-me, ir além da mesquinha condição de finitude.”
Os motivos psicológicos e existenciais para se escrever são mais ou menos claros para Hilst, porém há o conteúdo e a relação dele com a própria vida. Ela que se isolou em seu sítio em Campinas para escrever é talvez um dos exemplos mais importantes da relação entre a vida e a literatura, de como andam juntas:

“É bem verdade que o escritor está sempre falando de si mesmo, porque é somente através de nós mesmos que podemos nos aproximar dos outros. Desnudando-nos, procuramos fazer com que os outros se incorporem ao nosso espaço de sedução. Estendemos as teias e desejamos que o outro faça parte delas, não para devorá-lo, mas para que sinta perplexidade e faça a pergunta, para que tome conhecimento da possível qualidade do nosso fio-sedução; caminhe conosco, num veículo que pode ser afetivo-odioso.” […] “Samuel Beckett na sua peça Dias Felizes escreve: “Eu não posso dizer mais; diz-se o que se pode”. Prefiro dizer: Quero falar tudo nos meus textos e posso dizer ainda mais. Faço perguntas possíveis a mim mesma: se eu falasse com a voz do mundo, como falaria? Se eu falasse com a voz dos ancestrais (que representa o sangue e o sêmen dentro de mim) haveria refulgência de uma nova voz? É preciso tentar tudo, experimentar tudo. Talvez assim a verdade, a resposta, seja encontrada.”
Consciente das complicações intelectuais e dos limites do escritor em desbravar com profundidade e domínio todos os temas, Hilda Hilst, assim como Bioy Casares ecoa ao redimir-se de um prefácio infeliz, mostra que a humildade e a disposição a se corrigir também são essenciais para se fazer literatura:
“Temos todos nós, escritores, os nossos textos infelizes, mas sempre sobra algum deles tatuado de sagrado e de magia.”
Repleto desse conhecimento visceral que Hilda Hilst cultivou durante toda sua vida, “Fico besta quando me entendem” é leitura obrigatória para quem quiser entender uma das maiores escritoras brasileiras.
Veja também um trecho da peça “Osmo” baseada nos textos de Hilda Hilst e o que Jorge Luís Borges também tem a dizer sobre ser um grande escritor.

http://www.pantagruelista.com/blog/hilda-hilst-escritora

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Palavrões, usar ou não usar? - Millôr Fernandes


 São recursos extremamente válidos e criativos para prover nosso vocabulário de expressões que traduzem com a maior fidelidade nossos mais fortes e genuínos sentimentos.
 
  É o povo fazendo sua língua. Como o Latim Vulgar, será esse Português Vulgar que vingará plenamente um dia.
 
  "Pra caralho", por exemplo. Qual expressão traduz melhor a idéia de muita quantidade do que "Pra caralho"? "Pra caralho" tende ao infinito, é quase uma expressão matemática. A Via-Láctea tem estrelas pra caralho, o Sol é quente pra caralho, o universo é antigo pra caralho, eu gosto de cerveja pra caralho, entende?
 
  No gênero do "Pra caralho", mas, no caso, expressando a mais absoluta negação, está o famoso "Nem fodendo!". O "Não, não e não!" e tampouco o nada eficaz e já sem nenhuma credibilidade "Não, absolutamente não!" o substituem. O "Nem fodendo" é irretorquível, e liquida o assunto. Te libera, com a consciência tranqüila, para outras atividades de maior interesse em sua vida.
 
  Aquele filho pentelho de 17 anos te atormenta pedindo o carro pra ir surfar no litoral? Não perca tempo nem paciência. Solte logo um definitivo "Marquinhos, presta atenção, filho querido, NEM FODENDO!". O impertinente se manca na hora e vai pro Shopping se encontrar com a turma numa boa e você fecha os olhos e volta a curtir o CD do Lupicínio.
 
  Por sua vez, o "porra nenhuma!" atendeu tão plenamente as situações onde nosso ego exigia não só a definição de uma negação, mas também o justo escárnio contra descarados blefes, que hoje é totalmente impossível imaginar que possamos viver sem ele em nosso cotidiano profissional. Como comentar a bravata daquele chefe idiota senão com um "é PhD porra nenhuma!", ou "ele redigiu aquele relatório sozinho porra nenhuma!". O "porra nenhuma", como vocês podem ver, nos provê sensações de incrível bem estar interior. É como se estivéssemos fazendo a tardia e justa denúncia pública de um canalha. São dessa mesma gênese os clássicos "aspone", "chepone", "repone" e, mais recentemente, o "prepone" - presidente de porra nenhuma.
 
  Há outros palavrões igualmente clássicos. Pense na sonoridade de um "Puta-que-pariu!", ou seu correlato "Puta-que-o-pariu!", falados assim, cadenciadamente, sílaba por sílaba...Diante de uma notícia irritante qualquer um "puta-que-o-pariu!" dito assim te coloca outra vez em seu eixo.
 
  Seus neurônios têm o devido tempo e clima para se reorganizar e sacar a atitude que lhe permitirá dar um merecido troco ou o safar de maiores dores de cabeça.
 
  E o que dizer de nosso famoso "vai tomar no cu!"?
 
  E sua maravilhosa e reforçadora derivação "vai tomar no olho do seu cu!". Você já imaginou o bem que alguém faz a si próprio e aos seus quando, passado o limite do suportável, se dirige ao canalha de seu interlocutor e solta:
 
  "Chega! Vai tomar no olho do seu cu!".
 
  Pronto, você retomou as rédeas de sua vida, sua auto-estima. Desabotoa a camisa e saia à rua, vento batendo na face, olhar firme, cabeça erguida, um delicioso sorriso de vitória e renovado amor-íntimo nos lábios.
 
  E seria tremendamente injusto não registrar aqui a expressão de maior poder de definição do Português Vulgar:
 
  "Fodeu!".
 
  E sua derivação mais avassaladora ainda:
 
  "Fodeu de vez!".
 
  Você conhece definição mais exata, pungente e arrasadora para uma situação que atingiu o grau máximo imaginável de ameaçadora complicação? Expressão, inclusive, que uma vez proferida insere seu autor em todo um providencial contexto interior de alerta e auto-defesa. Algo assim como quando você está dirigindo bêbado, sem documentos do carro e sem carteira de habilitação e ouve uma sirene de polícia atrás de você mandando você parar:
 
  O que você fala?
 
  "Fodeu de vez!".
 
  Sem contar que o nível de stress de uma pessoa é inversamente proporcional à quantidade de "foda-se!" que ela fala. Existe algo mais libertário do que o conceito do "foda-se!"? O "foda-se!" aumenta minha auto-estima, me torna uma pessoa melhor. Reorganiza as coisas. Me liberta.
 
  "Não quer sair comigo? Então foda-se!".
 
  "Vai querer decidir essa merda sozinho(a) mesmo? Então foda-se!".
 
  O direito ao "foda-se!" deveria estar assegurado na Constituição Federal.
 
  Liberdade, igualdade, fraternidade e foda-se.
 

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...