terça-feira, 29 de maio de 2018

Vê se não demora pra voltar



Suas tatuagens me alegram. Certo dia segredou-me de outra tatuagem mais ousada, que só verá quem tiver acesso ao seu universo mais íntimo. Fico bobo, mas ela: Nem vem, eu não vou mostrar pra ninguém. As tatuagens do marido sinalizam alguém aficionado por esportes radicais e armas e academias de ginástica.
Cheguei e ela cortava o cabelo de um sujeito meio calvo. Pareceu animar-se com minha presença. Sentei no sofá e apanhei uma revista da primeira década do século XXI. Passo os olhos pelas manchetes sensacionalistas que não ajudam em nada no quesito fazer pensar. Muita gororoba requentada disfarçada de deliciosos pratos pra encher o bucho de milhões de leitores.
Se não tem mais ninguém na sala, ela me convoca pra conversas mais reservadas e até picantes, como se fôssemos íntimos. Cruzei por ela algumas vezes em nossas solitárias caminhadas. Ela se cuida, quarenta e poucos anos e está muito gostosa. Seu casamento, como a maioria, parece uma vida no exílio. ***** pouco Ela e o marido. Não giro a roleta, não brinco com a sorte. Sou um cadelão legal, porém sempre na espreita, pronto pra acolher cabeleireiras fogosas.
Ela, nada de arriscar-se numa aventura. Todos se conhecem no bairro e frequentam o Clube de Casais da igreja. Deus e o pastor têm um discurso afinado e afiado, capaz de transbordar de sentimento de culpa até o psicopata ou algum parente do capeta.
O sujeito meio calvo se vai. Sento na poltrona e ela prende o avental no meu pescoço, passo um certo sufoco e faço questão de reclamar. Nada de revelações, porém tive uma experiência traumática na infância, algo como uma vistosa jiboia enrolada em meu pescoço. Bem, isso deve ter sido uma metáfora, eu sei, nada real, talvez eu não passasse de um bebê que ainda estava nadando na pré-consciência.
O corte de cabelo é simples, nenhum topete e outros modismos. Passei da idade pra imitar astros do futebol e roqueiros e atores. Deixo isso pra crianças e adolescentes e retardados. Ok, não passo de um cara meio velho e de saco cheio. E o pior, ainda acredito em alma e espírito. Apenas odeio malucos da autoajuda e psiquiatras e padres e pastores. Eles se afastaram de si mesmos, fazem seus negócios como qualquer outro sujeito, todos meio perdidos. Ok, também estou perdido e me afasto, e observo. Somos corajosos idiotas.
Vejo-a através do espelho, puta que pariu, é uma gatinha de uns vinte anos, cabelo colorido raspado nos lados e acima das orelhas, piercing no nariz, tatuagens até onde nem consigo imaginar, parece uma daquelas garotas que se vê nos outdoors.
A espinha se arrepia quando Ela me liberta do avental colorido e espana meus cabelos do pescoço e roupas e traz aquele espelho enorme pra que eu veja e observe e contemple a parte de trás do meu pescoço toda enrugada, denunciando avançada idade.
Cachos de cabelo agonizam pelo chão, ainda não sou calvo, não ligo pras pontinhas brancas que aparecem aos poucos a cada novo corte. Os restos pelo chão pra mim não passam de urina de bêbado escorrendo pela calçada. Até a lua faz a sua parte. Novos cabelos crescerão, novas marés e novos cortes, novos aventais e jiboias sufocando meu pescoço e a minha alma.
Até quando?
Antes de levantar da cadeira e tirar a carteira do bolso, nossas coxas se enroscam, ela senta no meu colo e afasta os cabelos do pescoço e diz Só posso mostrar estas duas tatuagens, vê se não demora pra voltar.

(B. B. Palermo)

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Pós-verdade


Guardei no armário minhas verdades.
O solo é muito pobre. 
A semente bate nas pedras
e desliza e se perde.

Depositei as ferramentas, 
dei um tempo
à palavra e sua escuta.
Agora sou todo sentidos.

Vou bater asas até o alto,
é só o que tenho no currículo.

Penso de novo naquele conceito: liberdade.
Libertar-me das picuinhas do cotidiano e da manada.

Hoje seguirei Fernão Capelo Gaivota.
Voar, voar, subir, subir...
Não importa se isso não passe de um sonho de Ícaro.


(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Varais de minha vida


a garota na varanda recolhe roupa e o vento e o sol e eu a observo do ônibus e meus olhos cheios de saudade de tantos varais de minha vida

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Nação ZUMBI - Claudia Tajes


A senhora de cabeça baixa estava alheia à conversa do marido e dos filhos. Também não dava a mínima para a gritaria dos três netos pequenos. Devia ter uns 60 e poucos anos e eu, almoçando ao lado, morri de pena por ver uma mulher tão moça com – deduzi – uma doença que a privava do convívio com a família. O garçom trouxe a comida, a senhora não se mexeu, a nora ajeitou melhor o prato, olha, a massa vai esfriar. A mulher pegou o garfo e ficou com ele parado, sempre olhando para baixo, a outra mão sob a mesa. Um dos filhos chamou: “Mãe, não vai comer?”. Ela respondeu sem levantar os olhos: “Depois, estou vendo as férias da Terezinha no Whats”.
Isso que dá ficar de olho na vida dos outros. Sem ter nada a ver com a situação, eu já havia pensado no pior. Nessas doenças que roubam a pessoa dela mesma, que levam embora a presença e a identidade de alguém. É a única coisa que me assombra ainda mais que a reforma da Previdência.
Na verdade, aquela senhora sofria era de Whastsapite aguda, mal que pode acometer gente de todos os gêneros, idades, padrões culturais, econômicos e etc. Pegar é simples, basta um smartphone. A partir daí, o uso que se faz dele é que determina o grau da contaminação. Que anda alta, diga-se.
A fila do supermercado empaca porque a moça se corresponde freneticamente no WhatsApp. Atrás dela, todo mundo bufando. Entretido com algum vídeo que os amigos mandaram, o motorista não vê que o sinal abriu. O sinal fecha, o pessoal começa a buzinar como se não houvesse amanhã. O motorista aproveita e assiste a mais alguns segundos. Pelas ruas, pessoas caminham com a cabeça enterrada nas telas dos seus celulares. Sai da frente, se não elas te atropelam. No restaurante, casais sentados frente a frente conversam animadamente – mas cada um no seu WhatsApp. Em casa, se a conversa da família não rende muito, pelo menos os WhatsApps de todos estão bombando. No cinema, bem na hora em que a tela fica mais escura, a luz de vários celulares denuncia que o WhatsApp não pode esperar pelo fim da sessão.
Era para ser comunicação, virou uma maldição zumbi. É que tudo se resolve pelo WhatsApp. Assuntos de mães e filhos e filhas e pais. DRs de namorados. Combinações de trabalho. Fofocas. Encomendas de remédio, comida, cremes manipulados, marcação de massagem, cabeleireiro, consultas médicas. Até as chamadas transações ilícitas, quais sejam, hoje rolam pelo WhatsApp. Quem insistir em se comunicar no velho estilo ao vivo, corre o risco de ser chamado de ser antissocial.
E quando a gente é incluído – sem pedir – em um grupo? Socorro. Conheço pessoas que nunca mais saíram do quarto por não sobrar tempo para outra atividade que não a de responder mensagens de grupos. Triste.
Para além da contaminação pelo WhatsApp, o celular ainda nos trouxe a epidemia da foto. Tudo agora precisa ser fotografado. Verdade que essa democratização da fotografia fez com que muitos se descobrissem bons fotógrafos. E fotografar é mesmo um prazer, chato é o excesso. Há alguns dias, no AquaRio, aquele aquário carioca onde a Ísis Valverde nadou com cauda de sereia, era quase impossível abrir caminho entre a multidão fotografando. Um menino reclamou: “Putz, o tubarão não fica quieto, cada vez que eu vou fotografar, ele sai nadando”. Pois é, meu jovem, a isso se chama natureza – ainda que subjugada.
E assim, entre mensagens e fotos, a gente segue fazendo o possível para não perder nada. Ou talvez perca um pouco da vida. Nada que não se possa recuperar em seguida, mandando uma foto no WhatsaApp ou fazendo um post que, se Deus quiser, terá dezenas de curtidas.
Zero Hora, 13/14/01/2018.

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...