terça-feira, 9 de maio de 2017

Conhecer-se a si mesmo


"Quem conhece os outros é sábio; quem conhece a si mesmo é iluminado" (provérbio chinês).

"Eu sofro de minfobia
tenho medo de mim mesmo
mas me enfrento todo dia" (Millôr Fernandes).

Caçador de mim - 14 Bis


Por tanto amor
Por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu caçador de mim

Preso a canções
Entregue a paixões
Que nunca tiveram fim
Vou me encontrar
Longe do meu lugar
Eu, caçador de mim

Nada a temer senão o correr da luta
Nada a fazer senão esquecer o medo
Abrir o peito a força, numa procura
Fugir às armadilhas da mata escura

Longe se vai
Sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir
O que me faz sentir
Eu, caçador de mim

(Sérgio Magrão e Luís Carlos Sá)

Sherwood Anderson - Quem foi este cara?


Em alguma página de "O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio", Bukowski fala desse escritor. Confesso que nada li. Vou em busca de traduções dele nesta semana. Eis um trecho que encontrei no google:

"No princípio quando o mundo era novo havia um grande número de pensamentos, mas não aquilo que se chama uma verdade. O homem fez ele próprio as verdades e cada verdade era um composto de um grande número de pensamentos vagos. As verdades estavam por todo o mundo e todas elas eram bonitas.
O velho tinha enumerado centenas de verdades no seu livro. Não vou tentar contá-las todas. Havia a verdade da virgindade e a verdade da paixão, a verdade da riqueza e da pobreza, da frugalidade e da prodigalidade, da atenção e do abandono. Eram centenas e centenas, as verdades, e todas elas eram bonitas.
E então vieram as pessoas. Cada uma delas assim que aparecia agarrava uma das verdades e algumas que eram mais fortes apoderavam-se de uma dúzia delas.
Foram as verdades que tornaram as pessoas grotescas. O velho tinha uma teoria bastante elaborada a tal propósito. Era ideia dele que no momento em que uma pessoa tomava uma das verdades para si própria, chamando-lhe a sua verdade, e se esforçava por conduzir a sua vida de acordo com essa verdade, a pessoa tornava-se grotesca e a verdade que abraçava tornava-se numa mentira."


- Sherwood Anderson, em "Winesburg, Ohio". [tradução José Lima; posfácio de John Updike]. Lisboa: Ahab Edições, 2011, p. 23-24.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

O amor bate na aorta - Carlos Drummond de Andrade


Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito.

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que corre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...

E tinha a cabeça cheia deles - Marina Colasanti


Todos os dias, ao primeiro sol da manhã, mãe e filha sentavam-se na soleira da porta. E deitada a cabeça da filha no colo da mãe, começava esta a catar-lhe piolhos.
Os dedos ágeis conheciam sua tarefa. Como se vissem, patrulhavam a cabeleira separando mechas, esquadrinhando entre os fios, expondo o claro azulado do couro. E na alternância ritmada de suas pontas macias, procuravam os minúsculos inimigos, levemente arranhando com as unhas, em carícia de cafuné.
Com o rosto metido no escuro pano da saia da mãe, vertidos os cabelos sobre a testa, a filha deixava-se ficar enlanguescida, enquanto a massagem tamborilada daqueles dedos parecia penetrar-lhe a cabeça, e o calor crescente da manhã lhe entrefechava os olhos.
Foi talvez devido à modorra que a invadia, entrega prazerosa de quem se submete a outros dedos, que nada percebeu naquela manhã – a não ser, talvez, uma leve pontada – quando a mãe, devassando gulosa o secreto reduto da nuca, segurou seu achado entre polegar e indicador e, puxando-o ao longo do fio negro e lustroso em gesto de vitória, extraiu-lhe o primeiro pensamento.


https://www.youtube.com/watch?v=yT2WhqZs9iw

domingo, 7 de maio de 2017

Uma luz na neblina


A casa toda é uma bagunça, como o quarto do adolescente. A vida parece descarrilada. Parte é o caos do seu país, e outra parte aceita na sua conta. 
Tudo se repete. Não sabe pra onde vai.
Nessas horas, alguns fios de conversa com amigas ou até conhecidos, uma sugestão, uma lembrança boa, ela vê despontar uma luz. Pelo menos durante uns dois dias. 
Como a chuva rápida que refresca o clima, a angústia empalidece. Corre, reorganiza os livros da estante, empolga-se de novo com trechos soltos que um dia sublinhara com sincera emoção. 
Canta, não apenas no chuveiro, músicas que emergem do fundo de sua alma.
E de novo ela junta as peças, dá-lhes um sentido. Sim, a confusão não se foi de todo, a angústia é um tigre a espreitar. Mas agora ela ri, pouco importa se está sem pai. Filosofa: a falta de sentido também faz parte do jogo. Se há salvação, por que tanta gente depende de um pai, seja um governo, um líder religioso ou educacional? Ou inventaram a "salvação" por causa de sua dependência?
Agora ela ri dos seus limites. E dos outros. Os que precisam de um pai, que seja bússola no horizonte.
A multidão suplica, xinga, grita. De sua janela, não disfarça o semblante cético. Parece que se dissipou a névoa. Em suas mãos eu vejo um cartaz: fuck you

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...