quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Pedaços de um caderno manchado de vinho - Charles Bukowski


LEITURA DA SEMANA - Passagens do livro

“Bêbado outra vez num quarto do tamanho de um pacote de biscoitos, sonhando com Shelley e juventude, barbudo, um filho da puta desempregado com uma carteira cheia de bilhetes premiados tão impossíveis de reembolsar quanto os ossos de Shakespeare. Todos odiamos poemas de comiseração e lamúrias de um pobre sofredor – um bom homem pode vencer qualquer parada e saudar a prosperidade (assim nos disseram), mas quantos homens de valor você consegue apanhar num jarro hermeticamente fechado? E quantos poetas de qualidade você consegue encontrar na IBM ou roncando sob os lençóis de uma prostituta de cinqüenta dólares? Mais homens de valor morreram pela poesia do que todos os seus campos de batalha de merda; então se eu cair de bêbado num quarto de quatro dólares: você já ferrou com sua história – deixe que eu me vire com a minha”.

E tendo observado meu pai, aquele monstro brutal que abastardou minha experiência sobre esta triste terra, percebi que um homem podia trabalhar a vida inteira e ainda assim continuar pobre; seus vencimentos se consumiam na compra de coisas que ele precisava, pequenas coisas, como automóveis e camas e rádios e comida e roupas, pelas quais, como as mulheres, pediam mais do que valiam e o mantinham pobre, e até mesmo seu caixão foi um ultraje final à decência: toda aquela bela e lustrosa madeira para os cegos vermes do inferno”.

“Estamos cercados pelos mortos que ocupam posições de poder porque, de maneira a obter esse poder, é necessário que morram. Os mortos são fáceis de encontrar – estão por toda a parte a nossa volta; a dificuldade está em achar os que estão vivos”.

"seu amor é Cuba com uma barba,
uma multidão de dez centavos respirando rum;
seu amor é beisebol de gravata-borboleta
tocando bandolim para Bhahms;
seu amor são gatos agitados em minha mente;
seu amor é um bêbado de gim
e loucos santarrões vendendo panfletos na East First;
seu amor é um traje sob medida numa cela solitária;
seu amor é o naufrágio dos navios,
o torpedo da dúvida;
seu amor é vinho e pintura
e a pintura de Picasso;
seu amor é um urso hibernando no porão de Moulin Rouge;
seu amor é uma torre em ruínas,
destruída pelo raio de Eiffel;
seu amor percorre as colinas
e escala as montanhas
e dispara russos para a lua.
por que
você se
afasta?"
 

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Vinte e quatro horas


Passa da meia noite
e você continua com sede
então olha para o céu
mistura lua e estrelas.
Solitário 
vê o firmamento
e não desconfia
que é privilegiado.
Saída de escape
da morte
disposta a salvar-te
por punhados de reais
a loja de bebidas funciona
das vinte e quatro às vinte e quatro.
Antes que decida
entre cerveja e vinho
no caminho
o cão acorrentado
esbraveja num beco
joga-se na grade.
Quer libertar-te.
Carros rebaixados
vidros escuros
pancadas de funk. 
O rostinho da lua minguante
despede-se na reta final 
do horizonte.
À tarde você passou pela mesma rua e viu, lado a lado, uma igreja e um bailão da terceira idade, bombando. Numa casa humilde um casal de velhinhos. Olhar fendido no horizonte a senhora, picada pelo AVC, move com fragilidade uma bola de basquetebol. O que lhe resta nessa altura da vida é a fisioterapia. Você viu o sujeito bombado músculos braços peitos salientes pernas finas fazendo força para equilibrar vaidades e desejos numa face preocupada e triste.
Meia noite e a rua está deserta.
Descansemos, irmãos.
Amanhã haverá muito trabalho
e nenhum tempo pra sentir.

(Diário de B. B. Palermo)


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Doutor, quem matou o Donga?


Fui aos botecos da periferia respirar uma vida mais pulsante. Algo me dizia que a inspiração se refugiou nesses lugares. Meus sentidos eram antenas que captavam todo e qualquer movimento. Doutor, busquei coragem para ouvir de um homem qualquer uma história que sacudisse a vida. Ao entardecer pousei no Tocha Branca. Alguns pretos amarelos brancos e de outras cores bebiam e jogavam o tempo com suas solitárias companhias. Havia um preto enrolando seu cigarro de palha e notei que era simpático e bom de papo, com seus gestos largos que buscavam o horizonte. Paguei-lhe uma cachaça como aproximação e convite para que me contasse algo interessante em sua vida. De preferência algo épico. O filho da mãe não me disse o nome, apenas que era conhecido por Justileia. E não titubeou, Doutor. Falou isso e aquilo, trabalhou com muitos patrões em diversas fazendas, era bem querido nos vilarejos por onde passou.
Pedi para que narrasse o acontecimento mais marcante de sua história. Ele então relatou o seu ato mais heroico: matou, com dezenove golpes de faca, um dos bandidos mais temidos da cidade. Não descreverei os detalhes, Doutor. Disse que o Donga parecia ter o corpo fechado, isso mesmo, não morria mesmo depois de retalhado por tantas estocadas. Diante da resistência do bandido em não partir dessa, meu herói do Tocha Branca decidiu por um golpe mais incisivo: degolou-o.
Doutor, se por um lado Justileia permitiu que a cidade repousasse mais sossegada, por outro lado, após cometer o crime, seu sofrimento triplicou. Teve que sumir por uns tempos. Fugir dos parentes do Donga, que o juraram de morte, e também da polícia, para não ser preso. Tinha dois filhos, um casal de crianças de três e cinco anos. Elas foram adotadas e com o passar dos anos e perambulando de um lugar para o outro ele perdeu o contato. Solitário, hoje ele afoga a saudade com martelos e martelos de cachaça.
Sim, Doutor, o Senhor tem razão. O fato de sair pelas ruas e becos em busca de histórias e personagens, e anotá-las bem ou mal num possível livro, isso tem a ver com o desejo de permanecer (de ser lembrado), depois que eu me for.
Mas tem outra coisa que preciso contar pro Senhor. Durante uma semana, em diferentes dias, percorri vários botecos em busca de relatos épicos. Caramba, ouvi outros bêbados, amarelos pretos brancos e de outras cores, e não é que pelo menos uns cinco disseram que esfaquearam e degolaram o Donga, e todos com dezenove facadas? Pobrezinho. E que bom. Na cidade o que não faltam são heróis. Pelas minhas contas, o animalzinho foi abatido por quase duzentas facadas. 

Parece que a vida se resume nisso, Doutor: avançar de golpe em golpe, inventando ou improvisando (de acordo com a plateia) nossos atos grandiosos, talvez convencendo menos aos outros que nos ouvem e mais a nós mesmos, de que em nossas vidas realizamos belas epopeias. Hem, Doutor, quantas vezes potencializamos (ou reinventamos?) nosso passado, nossos feitos, como algo grandioso, mesmo que as outras pessoas deem a mínima pra isso?

(Diário de B. B. Palermo)

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Pergunte ao grilo


Você que cultiva e compartilha crenças no trabalho escola ou igreja. Que todo mês faz as contas como num ritual que serve de portal para acessar o Hades. Que sai de fininho se a expectativa no amor foi frustrada. Você que sabe de cor, após o repouso dopado, como deve ser a política e a economia. Permita-me arriscar: você pouco sabe dos mistérios e da beleza da vida. É que você esqueceu de perguntar ao grilo, que apenas cricri. A noite os sonhos os pesadelos, o grilo não tem teorias verdadeiras, não diz se é do bem ou do mal, não diz quem é homofóbico ou racista, machista ou não. O grilo apenas apenas cricri. Você que reclama de boca cheia e cospe na cara dos outros, você que se transforma em bandido ou mocinho na intensidade do porre. Você precisa aprender com o grilo, que nada professa, que não reivindica aos quatro ventos sua liberdade de expressão. O grilo apenas apenas cricri.


(Diário de B. B. Palermo)

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Hilda Hilst - O místico e o filosófico de ser escritora e se inconformar com a morte

Hilda Hilst é uma figura de extremos que ultimamente tem se tornado cada vez mais famosa. Um de seus maiores desejos em vida era justamente “ser lida”, algo que ela teve a certeza de que iria acontecer pouco antes de sua morte, quando uma grande editora, a Globo Livros, se comprometeu em editar sua obra completa a partir de 2001. Hilda morreu em 2004, morando em Campinas, o seu refúgio da vida badalada que teve em São Paulo na juventude.
Além da obra completa de Hilda Hilst que engloba textos em prosa, poesia e teatrais, a Editora Globo também publicou o livro “Fico besta quando me entendem” que compila diversas entrevistas concedidas por Hilda Hilst durante sua vida. Assim como em seus livros, os temas existenciais, místicos e filosóficos são constantes e se misturam com o cotidiano, a política e o ser escritora.
“As pessoas perguntam sempre por que a gente escreve e eu fico pensado em todos os motivos que levam de repente uma pessoa a escrever e penso que a raiz disso em mim está na vontade de ser amada, numa avidez pela vida. Quem sabe também se não é uma necessidade de viver o transitório com intensidade, uma força oculta que nos impele a descobrir o segredo das coisas. Uma necessidade imperiosa de ir ao âmago de nós mesmos, um estado passional diante da existência, uma compaixão pelos seres humanos, pelos animais, pelas plantas.”
Quase premonitória, Hilda Hilst também fala de como a necessidade de se rebelar contra a morte também acompanha o ofício de escritora.
“A verdade é que, diante da morte, a gente nunca está realmente conformada. É por isso que penso que o que me leva a escrever é uma vontade de ultrapassar-me, ir além da mesquinha condição de finitude.”
Os motivos psicológicos e existenciais para se escrever são mais ou menos claros para Hilst, porém há o conteúdo e a relação dele com a própria vida. Ela que se isolou em seu sítio em Campinas para escrever é talvez um dos exemplos mais importantes da relação entre a vida e a literatura, de como andam juntas:

“É bem verdade que o escritor está sempre falando de si mesmo, porque é somente através de nós mesmos que podemos nos aproximar dos outros. Desnudando-nos, procuramos fazer com que os outros se incorporem ao nosso espaço de sedução. Estendemos as teias e desejamos que o outro faça parte delas, não para devorá-lo, mas para que sinta perplexidade e faça a pergunta, para que tome conhecimento da possível qualidade do nosso fio-sedução; caminhe conosco, num veículo que pode ser afetivo-odioso.” […] “Samuel Beckett na sua peça Dias Felizes escreve: “Eu não posso dizer mais; diz-se o que se pode”. Prefiro dizer: Quero falar tudo nos meus textos e posso dizer ainda mais. Faço perguntas possíveis a mim mesma: se eu falasse com a voz do mundo, como falaria? Se eu falasse com a voz dos ancestrais (que representa o sangue e o sêmen dentro de mim) haveria refulgência de uma nova voz? É preciso tentar tudo, experimentar tudo. Talvez assim a verdade, a resposta, seja encontrada.”
Consciente das complicações intelectuais e dos limites do escritor em desbravar com profundidade e domínio todos os temas, Hilda Hilst, assim como Bioy Casares ecoa ao redimir-se de um prefácio infeliz, mostra que a humildade e a disposição a se corrigir também são essenciais para se fazer literatura:
“Temos todos nós, escritores, os nossos textos infelizes, mas sempre sobra algum deles tatuado de sagrado e de magia.”
Repleto desse conhecimento visceral que Hilda Hilst cultivou durante toda sua vida, “Fico besta quando me entendem” é leitura obrigatória para quem quiser entender uma das maiores escritoras brasileiras.
Veja também um trecho da peça “Osmo” baseada nos textos de Hilda Hilst e o que Jorge Luís Borges também tem a dizer sobre ser um grande escritor.

http://www.pantagruelista.com/blog/hilda-hilst-escritora

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...