segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Pergunte ao pó - John Fante


Descobri "Pergunte ao pó" lendo Charles Bukowski, o qual escreve o prefácio deste belo livro. A seguir frases tiradas de "Pergunte ao pó".


Aquelas garotas maravilhosas, tão feliz quando você agia como um cavalheiro, e tudo aquilo simplesmente para tocar nelas e carregar a memória para meu quarto, onde o pó se acumulava sobre minha máquina de escrever e Pedro, o camundongo, se sentava no seu buraco, os olhos negros me observando através daquele tempo de sonho e divagação.

Certo, uma prece: por motivos sentimentais. Deus Todo-Poderoso, lamento ser agora um ateu, mas o Senhor leu Nietzsche? Ah, que livro!

Quando voltei ao meu quarto, joguei-me na cama e chorei um choro sentido. Deixei que as lágrimas corressem de cada parte de mim, e quando não podia mais chorar, me senti bem de novo. Sentia-me verdadeiro e limpo.

Ficamos deitados um longo tempo e eu estava preocupado, com medo e sem paixão. Algo como uma flor cinzenta cresceu entre nós, um pensamento que tomou forma e falou do abismo que nos separava. Eu não sabia o que era. Senti que ela esperava.

O amor não era tudo. As mulheres não eram tudo. Um escritor precisa conservar suas energias.

Não conseguia falar mais. Ele havia arrancado meu coração. Porcaria! Todas aquelas nuanças, aquele diálogo soberbo, aquele lirismo brilhante – e chamar aquilo de porcaria. Melhor fechar os ouvidos e ir para algum lugar onde nenhuma palavra fosse pronunciada. Porcaria!

Fui até o final do corredor, até o patamar da escada de incêndio, e ali me soltei, chorando e incapaz de me conter, porque Deus era um canalha tão sujo, um pulha desprezível, é o que Ele era por fazer aquilo com aquela mulher. Desça dos céus, seu Deus, venha até que que vou socar seu rosto por toda a cidade de Los Angeles, seu moleque miserável e imperdoável.

Fiquei sentado com os dentes cerrados, olhando para um quarto como dez milhões de quartos da Califórnia, um pouco de madeira aqui, um pouco de pano ali, os móveis com teias de aranha no teto e poeira nos cantos, seu quarto e o quarto de todo mundo, Los Angeles, Long Beach, San Diego, algumas placas de gesso e estuque para manter o sol do lado de fora.

O mundo era pó e ao pó voltaria.

Tudo o que era bom em mim me emocionou naquele momento, tudo o que eu esperava do profundo e obscuro significado da minha existência. Aqui estava a placidez interminável e muda da natureza, indiferente à grande cidade; aqui estava o deserto abaixo dessas ruas, ao redor dessas ruas, esperando que a cidade morresse para cobri-la com a areia eterna uma vez mais.

Tornava-me um estranho dentro de mim, era como todas aquelas noites calmas e os altos eucaliptos, as estrelas do deserto, aquela terra e aquele céu, aquele nevoeiro lá fora, e eu viera para cá com nenhum propósito exceto o de ser um mero escritor, ganhar dinheiro, ser reconhecido e toda aquela baboseira. Ela era muito melhor do que eu, tã mais honesta que fiquei enojado de mim mesmo e não podia enfrentar seus olhos cálidos.

Não fiz perguntas. Tudo o que eu queria saber estava escrito em frases torturadas através da desolação do seu rosto.

Saí para uma caminhada pelas ruas. Meus Deus, aqui estava eu de novo, perambulando pela cidade. Olhei os rostos ao meu redor e sabia que o meu era como o deles. Rostos drenados de sangue, rostos tensos, preocupados, perdidos. Rostos como flores arrancadas de suas raízes e enfiadas num vaso bonito, as cores se esvaindo rapidamente. Eu tinha que sair daquela cidade.
Edição: Pergunte ao Pó, Editora José Olympio, 2015

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Doutor, para mudarmos nosso olhar precisamos ser crianças


O que acontece com a gente se parece com o que acontece com os outros, disse Bukowski. Eu acrescentaria, Doutor: para que tudo o que acontece ao redor deixe de ser imagem e repetição do mesmo, é necessário reaprender a olhar. Sábado de manhã caminhava numa avenida e cruzei por uma jovem garota negra com duas crianças, uma de uns sete anos e outra no colo da mãe, com uns três, quatro anos. A que estava no colo da mãe parecia ter um olhar triste, e ficou me encarando, e isso me chocou. Enquanto a mãe seguia em frente, a criança virou o pescoço para ficar mais tempo me observando. O que chamou sua atenção? Doutor, é estranho como uma cena corriqueira possa ter me impressionado. Minha alma neste dia não foi mais a mesma. Fiquei pensando, após aquela cena: a BELEZA (Deus?) não combina com coisas espalhafatosas, pirotécnicas. Agora necessito contar ao Senhor aquela vivência, pois creio que pouco adianta sentir algo belo, que me deixou triste, e não compartilhar com os outros. É por isso que escrevo. Quero apanhar e eternizar o que é passageiro. Aquele olhar tão cheio de mistério, talvez impossível de decifrar, sintetiza os olhares de todas as crianças, de qualquer cantinho do planeta. Fiquei pensando, Doutor, o que posso carregar para a eternidade, o que devo despir e deixar pelo caminho nesta vida breve? Terei uma alma? Sinto isso nas pessoas e coisas que me rodeiam aqui e agora. Sim, naquele olhar da criança eu vi sua alma! No seu olhar refletiu-se minha infância, de brinquedos, árvores, córregos, o canto dos pássaros, a música que sai da vida dos animais. Eu vivi aquele olhar! E esse olhar me fez pensar sobre o quanto sou arrogante, pretensioso, acorrentado a coisas fugazes. E o mais incrível é que, ao refletir sobre isso, me senti mais leve.
O Senhor pode pensar que exagero quando olho com tal intensidade ao meu redor. Mas não dizem que os olhos são o espelho da alma? Rubem Alves afirma que, “se os olhos forem bons, o mundo será belo. Se os olhos forem maus, o mundo será sinistro”. Complementaria dizendo que a demarcação entre paraíso e inferno começa de várias fraquezas humanas, e uma delas é a inveja. Inveja inveja inveja... e esta nasce de um jeito (torto?) de olhar. Não será uma das razões para o mundo andar tão mal? Para mim, a inveja e outros sentimentos chamados de “pecados capitais” ganham vida quando deixamos de ser crianças e entramos no mundo adulto. Época em que, também, distorcemos, envenenamos e engessamos nosso olhar.
(Diário de B. B. Palermo)


quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Um sonho de simplicidade - Rubem Braga


Então, de repente, no meio dessa desarrumação feroz da vida urbana, dá na gente um sonho de simplicidade. Será um sonho vão? Detenho-me um instante, entre duas providências a tomar, para me fazer essa pergunta. Por que fumar tantos cigarros? Eles não me dão prazer algum; apenas me fazem falta. São uma necessidade que inventei. Por que beber uísque, por que procurar a voz de mulher na penumbra ou amigos no bar para dizer coisas vãs, brilhar um pouco, saber intrigas?
Uma vez, entrando numa loja para comprar uma gravata, tive de repente um ataque de pudor, me surpreendendo assim, a escolher um pano colorido para amarrar ao pescoço.
A vida poderia ser mais simples. Precisamos de uma casa, comida, uma simples mulher, que mais? Que se possa andar limpo e não ter fome, nem sede, nem frio. Para que beber tanta coisa gelada? Antes eu tomava água fresca da talha, e a água era boa. E quando precisava de um pouco de evasão, meu trago de cachaça.
Que restaurante ou boate me deu o prazer que tive na choupana daquele velho caboclo no Acre? A gente tinha ido pescar no rio, de noite. Puxamos a rede afundando os pés na lama, na noite escura, e isso era bom. Quando ficamos bem cansados, meio molhados, com frio, subimos a barranca, no meio do mato, e chagamos à choça de um velho seringueiro. Ele acendeu um fogo, esquentamos um pouco junto do fogo, depois me deitei numa grande rede branca – foi um carinho ao longo de todos os músculos cansados. E então ele me deu um pedaço de peixe moqueado e meia caneca de cachaça. Que prazer em comer aquele peixe, que calor bom em tomar aquela cachaça e ficar algum tempo a conversar, entre grilos e vozes distantes de animais noturnos.
Seria possível deixar essa eterna inquietação das madrugadas urbanas, inaugurar de repente uma vida de acordar bem cedo? Outro dia vi uma linda mulher, e senti um entusiasmo grande, uma vontade de conhecer mais aquela bela estrangeira: conversamos muito, essa primeira conversa longa em que a gente vai jogando um baralho meio marcado, e anda devagar, como a patrulha que faz um reconhecimento. Mas por que, para que, essa eterna curiosidade, essa fome de outros corpos e outras almas?
Mas para instaurar uma vida mais simples e sábia, então seria preciso ganhar a vida de outro jeito, não assim, nesse comércio de pequenas pilhas de palavras, esse ofício absurdo e vão de dizer coisas, dizer coisas… Seria preciso fazer algo de sólido e de singelo; tirar areia do rio, cortar lenha, lavrar a terra, algo de útil e concreto, que me fatigasse o corpo, mas deixasse a alma sossegada e limpa.
Todo mundo, com certeza, tem de repente um sonho assim. É apenas um instante. O telefone toca. Um momento! Tiramos um lápis do bolso para tomar nota de um nome, um número… Para que tomar nota? Não precisamos tomar nota de nada, precisamos apenas viver – sem nome, nem número, fortes, doces, distraídos, bons, como os bois, as mangueiras e o ribeirão.
Março de 1953

terça-feira, 11 de outubro de 2016

As flores de plástico


Na sala de espera, as flores de plástico eternizam. Sem a ansiedade do corpo que aguarda exames e palpites. Apenas existem. Livres como toda matéria que, ao passar do tempo, resiste. Sem dores, desculpas e culpas. Sem noção de finito e infinito. Pena não saberem da perenidade da vida. É uma pena. Seriam sensíveis, pois perceberiam o quanto a vida madura é falível e a angústia é certa com a morte a espreitar.

(Tiradas do Teco, o poeta sonhador) 

Dicas para ter uma vida interessante


1 - Comprar equipamentos de ginástica, de massagens, estocar chás, remédios para aumentar a disposição diante de uma vida agitada. Inscrever-se em academias, comprar pacotes de TV, de filmes, de esportes. Matricular-se em cursinhos de línguas, comprar pacotes de viagens até estourar o cartão de crédito e o tempo livre.
2 - Estressar-se com os que pensam diferente de você, que seguem outra ideologia ou que simplesmente não ligam para ideologias. Implicar com tudo o que nos rodeia, por sugarem nossas forças através desse bombardeio de informações.
3 - Pensar durante todo o tempo a respeito das dificuldades que o teu amor tem em ser igualzinho a você. Dedicar horas tentando ajustá-lo à tua visão de mundo. A cada frustração, sofrer, sofrer e perguntar por quê? Por quê?
4 -  Dar a mínima para artes, literatura, poesia e filosofia. Acreditar piamente que e o sentido de tudo está nos negócios, e que sem os negócios nada de importante temos para falar, ouvir, curtir.
5 - Evitar tudo o que envolva saudade. Coisas da infância e adolescência, brinquedos e colegas, paixões e namoros. Deletar da memória histórias lidas ou ouvidas, de contos de heróis e vilões, mocinhos e bandidos. Bloquear as lembranças de namoros ou quase namoros na adolescência, alegres ou sofridos. Evitar o sentimento do que disse Camões: "A grande dor das coisas que passaram".
6 - Fugir das coisas simples, das pessoas simples, da vida simples. Fazer do trabalho uma batalha diária para acumular dinheiro e se rodear de objetos que impressionem todo mundo.
7 - Fazer muito pouco ou até o contrário do que foi dito aqui.

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...