quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Visão machista do amor?

"Lá pras bandas onde eu nasci
já se falavo do amô:
todas as boca dizia
que era farso e matadô
"nas marvadage do Amô
não há cabra que não caia
quando o diabo tira a roupa,
tira o chifre e tira o rabo
pra se vestir c'uma saia"
(Catulo da Paixão Cearense)


Carpinejar


A loucura exige disciplina para não ser vista.

(Do livro Caixa de sapatos. Companhia das letras)

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Doutor, a Ninfa disse que sou sensitivo


Quando estou mais pra lá do que pra cá, Doutor, parece que nasce um cara sensitivo.  Isso me assusta, e então largo da bebida por alguns dias, faço meditação e bebo litros e litros de água, até me reencontrar (não, não, Doutor, eu não quis dizer “reencarnar”). Sempre desconfio da veracidade das informações de muitos sites que pesquiso no Google. Até que possuo algumas características de sensitividade, mas não passam de palpites, como no caso do “mistério” e do que chamam de “sobrenatural”.
Duas semanas atrás aconteceu algo que me deixou mais perplexo do que assustado, daí desconfiar dessa estranha sensibilidade. Uma amiga da Ninfa dos lindos olhos suicidou-se. O fato me chocou, não por conhecê-la pessoalmente, mas por compartilhar as dores e o luto da Ninfa. A garota trabalhava num escritório que fica na avenida que atravessa a cidade de norte a sul. Soube da tragédia através de uma postagem que a Ninfa fez no facebook. Era final de tarde e a notícia baqueou meu peito, tanto que providenciei papel e caneta e corri até o bar mais próximo. Embora não tivesse bebido e usado drogas, minhas mãos tremiam. Escrevi um poema que dizia mais ou menos assim: 
Não sei quem está numa melhor. Eu aqui, me entorpecendo de cerveja, ou ela dormindo a algumas horas no caixão, pra nunca mais acordar. Eu, com medos e incertezas, ela despedindo-se do contato com as manhãs, noites de insônia e lua cheia./ Os comerciais de TV mostram jovens brancos, alegres, sarados e saudáveis. A felicidade, na tela, se expande com sorriso fácil. / Pouco sei de suas vidas, se visitam farmácias, se perdem o sono de madrugada. Não levo a sério o mundo que me vendem, até porque as coisas que me pedem pra comprar, como entorpecentes, não garantem mais do que meia hora de euforia. / A garota morreu.  Tantas vezes passei em frente ao seu trabalho com a esperança de ser notado por ela, jogando na sorte de que seu olhar me encontrasse.
nunca saquei (como poderia adivinhar?) que seu sorriso e atenção não resumem a essência de uma pessoa, nem tudo que se agita no seu mundo interior.  / Agora sei que existe muito mais vida nos silêncios de uma princesa. / Sei que abrir mão da vida talvez não seja um ato de coragem. Mas estou apegado às verdades do senso comum. É mais fácil rastejar na trilha segura do cotidiano do que pensar nos fios tênues que nos sustentam sobre o abismo.  / E acreditamos que a angústia, a tristeza e os gestos desesperados só acontecem com os outros. / Muitos me convidam para viajar, conhecer outros povos, estudar outras línguas. Estou convencido de que não devo estacionar neste lugar. / Mas hoje, ao saber de sua partida, acendeu uma luz: o mais importante, mais do que tudo, é buscar conhecer meu mundo interior”
.


Doutor, houve muitos comentários e informações exageradas a respeito do fato. Bem, vou contar o que me deixou perplexo. Semana passada, depois que o primeiro bar fechou, em torno de uma da madrugada, eu e alguns amigos fomos beber e jogar sinuca num desses points que funcionam a noite toda. Acontece que eu tinha bebido muito e, lá pelas quatro da manhã, senti uma necessidade de voltar para casa, como se fosse um alerta ou algum “sinal de segurança”. Fiz de conta que ia ao banheiro e me aventurei sozinho pela avenida deserta rumo de casa. Doutor, a garota enforcou-se numa construção abandonada ao lado do prédio onde trabalhava. Ao passar por ali ouvi um estouro, como se fosse uma bomba. Apavorado, perguntei a mim mesmo “caralho, o que foi isso?”, “de onde saiu esse estrondo?”. Apressei o passo e me dei conta de que a embriaguez havia passado. Me perguntava: “Será que existem mesmo espíritos?” Contei o episódio à Ninfa dos lindos olhos e ela disse CA-TE-GO-RI-CA-MEN-TE que sou sensitivo.
Doutor, será que me impressiono porque não sou mais garoto? Desde que fiz algumas leituras, principalmente de Nietzsche e Sartre, me considerava um niilista. Isso, se o cara morreu, tudo acabou. Agora que me aproximo do limbo, que já estou me acostumando com a ideia de ser um jovem velho, bêbado e escroto, vejo meu coração derreter como manteiga. Ou isso tem relação com a minha facilidade em idealizar o amor e captar as emoções, que sempre andam “à flor da pele”? Hum... voltou a lembrança de minha infância e adolescência e os mandamentos da igreja católica. Caramba, Doutor, por que essa tábua de valores, como se fosse a cruz que Cristo carregou, me acompanha até hoje? Ou quem sabe pago, com altos juros, os diversos pecados que cometi com namoradas quando tinha uns vinte anos de idade? Não, Doutor, não chegam a ser fantasmas de arrepiar os pelos. Creio que não valeria à pena contar. Tudo bem, vou narrar pro senhor assim bem por alto. Perto da casa onde nasci e cresci, um vilarejo de famílias trabalhadoras, dóceis e obedientes, há uma gruta que faz companhia a uma linda cachoeira. A paróquia da cidade, muito católica, nomeou pra essa gruta uma Santa Padroeira – a Santa Bárbara. Todas as vezes que minhas namoradas vinham visitar meus familiares eu as levava para conhecerem a gruta, um dos poucos lugares turísticos da região. Além do encantamento com a beleza do lugar, e após contar um pouco a história daquela gruta, inclusive algumas lendas quando a região era habitada por indígenas, eu me esforçava para que rolasse um clima sensual. Está bem, vou abrir o jogo, Doutor: transávamos diante de uma legião de estátuas, santas e santos, de velas acesas por pagadores de promessas, e sob o olhar sereno e complacente da santa padroeira. Quando eu levava as namoradas para conhecerem a gruta realizava tudo quanto pedi na adolescência, após descobrir as maravilhas que uma pica proporciona. Foram dezenas de novenas e pedidos realizados diante da santa. Sim, os adultos, submissos e crentes, pediam para que chovesse depois de seca, ou pediam uma farta colheita, ou boas vendas no comércio. Meus pedidos eram menos grandiosos, orbitavam em torno de genitálias, bundas e peitos. Me diz, Doutor, qual o pecado de se viver a juventude “como se não houvesse amanhã”, e aproveitar o dia (carpe diem) como se fossemos (e éramos) uns punheteiros meio “poetas mortos”?


(Diário de B. B. Palermo)

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Precisamos falar sobre o voo do pavão


Você quer falar sobre pássaros. É que você ficou admirado com o voo do pavão.
Você quer falar sobre carros. Você quer falar de negócios imobiliários. Mas a conversa se distrai e desliza para a notícia do site, de que nossa correta cidade viveu mais um suicídio.
Não é notícia qualquer, como o acidente do carro ou da motocicleta, ou do bandido preso. Mesmo banalizada, não é a notícia de todo setembro, da Chama Crioula acesa, do aumento da cesta básica, da ameaça de geada para o nosso lindo e frágil trigo.
Você quer falar de pássaros. Não do voo, mas sim da troca de plumagem e das lições que podemos tirar de um recomeço.
Você quer falar do olhar daquele menino ou da pré-adolescente. Quando você olha com mais cuidado, além da cor, há alegria, tristeza ou algo indiferente. Não esqueça que ágeis bailarinas fazem suas performances nas retinas.
Você quer falar do ciclista que aproveita o início do crepúsculo depois do dia de trabalho. Da maratona do casal que a cada primavera decide entrar em forma.
Você pode falar dos pacotes que planeja para o final do ano e o verão.
Mais do que tudo, fale, fale, para ter mais leveza do que o voo do pavão.
Fale, fale muito, até pra soltar os nós que te prendem a garganta.
Se, além de falar, aquilo de que falas fizer eco em teus ouvidos, a ponto de te dar alguns sustos e a bússola apontar um recomeço, perceberás então que és mais do que papagaio, superarás a inteligência para viver sentimentos.
Você pode falar de como foi importante a atenção daquela garota. Se para ela não custou nada, para você abriram-se clareiras emocionais. Mesmo que tua palavra te pareceu ridícula, não se dissipou com o vento norte, que anuncia ventanias e trovões.
Fale, fale em diferentes lugares, para além dos teatros da vida onde usamos coleira e estamos amarrados porque dizem que “é assim que deve ser”.
Talvez o pavão seja lindo não porque possa voar, mas por ter uma bela plumagem. Talvez ele nos fale com as cores que exibe e não com o seu voo. Precisamos ficar atentos quando o pavão silencia e decide voar, pois ele pode despencar em direção ao abismo.
Você precisa falar. Mas não esqueça de que, em certos dias de ventos fortes, as pessoas também precisam de teus ouvidos.


(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

sábado, 10 de setembro de 2016

Ela não sabe a força que tem


quando ela aparece com aquele sorriso 
de jeans e floresta de cabelos lambidos 
pra cima e pra baixo com fone de ouvidos 
seu olhar meloso parece dizer 
que o crepúsculo hoje vai se atrasar 
eu fico bobo eu fico paralisado 
não olho não penso não vejo não sinto 
o que rola aqui do meu lado 
basta o seu olhar distraído 
pra tudo parar a viagem 
o trabalho o relógio a novela 
o apito da fábrica e do trem 
e até os sabiás na primavera 
apenas ela é quem surge e vem 
ela linda e adolescente 
e que ainda não sabe
ainda não sabe a força que tem

(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...