quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Meu primeiro poema...

Minha vida de personagem, poeta sonhador, começou com este poema, que eu declamei no dias dos pais.

“Papai sonhou que recebeu a visita de seus primeiros sapatos. Eles disseram por onde andaram e o que fizeram em sua companhia. Derramaram lágrimas e lágrimas porque já não aguentavam dormir e acordar, acordar e dormir algemados no armário do porão...
Papai prendeu os sonhos no armário do porão e muito tempo depois as chaves ele perdeu...
Papai escondeu no armário os sonhos mais preciosos enquanto correu atrás de outras coisas que ele nunca desejou...
Papai também sonhou que recebeu a visita dos seus anjos da guarda. Eles o ensinaram a nadar no riacho, curaram o bicho-de-pé e a unha encravada.
Viram papai subir no pé de pitangueira, jogar futebol no gramado e roubar bergamotas no terreno do vizinho.
Papai sonhou também que recebeu a visita do caniço de pescar, do bodoque e do livro que a primeira profe lhe deu.
Também vieram de visita a primeira bicicleta, as pandorgas e as bolhas de sabão, o porquinho-da-índia, o arco-íris e o beija-flor, o banho de cachoeira, a mamadeira e os gibis, os cadernos e suas orelhas.
Vieram tantos amigos que naquele dia o coração de papai disparou de alegria!
Papai descobriu que os sonhos não avisam quando vão libertar-se do porão... e descobriu, também, que a felicidade não está guardada no armário do amanhã...
De vez em quando, papai, é preciso espiar por detrás dos ombros, e acenar para os brinquedos que sua vida conquistou!
Neste dia não esqueça de dar um pontapé na preguiça, para ser, com alegria, criança como eu sou!”


(Do livro Teco, o poeta sonhador, em: os mistérios do porão.)

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Pequena crônica policial - Mario Quintana


Jazia no chão, sem vida,
E estava toda pintada!
Nem a morte lhe emprestara
A sua grave beleza...
Com fria curiosidade,
Vinha gente a espiar-lhe a cara,
As fundas marcas da idade,
Das canseiras, da bebida...
Triste da mulher perdida
Que um marinheiro esfaqueara!
Vieram uns homens de branco,
Foi levada ao necrotério.
E quando abriam, na mesa,
O seu corpo sem mistério,
Que linda e alegre menina
Entrou correndo no Céu?!
La continuou como era
Antes que o mundo lhe desse
A sua maldita sina:
Sem nada saber da vida,
De vícios ou de perigos,
Sem nada saber de nada...
Com a sua trança comprida,
Os seus sonhos de menina,
Os seus sapatos antigos!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Fora da caixa


Tua música não é rock, regae ou rap. Num momento mágico, quando tocas meu coração vertem flores das minhas mãos. Minha alma de Frankenstein fica num vermelho incerto quando passas por perto. Preciso de piercings e brincos, alegres, doloridos, para te encantar? Farei a loucura de cantar o meu amor, pra todo mundo ver e ouvir, seminu pelas ruas e avenidas ou do décimo primeiro andar! Posso investir num smartphone, tablet ou celular, com todos os códigos e senhas - nem que me transforme num “Eu, etiqueta”, como disse o poeta. Sei que no final da festa não sou grande coisa e, por qualquer coisa, você me deleta! Mas escute, anote e aguarde: ainda não tenho idade pra cair em desgraça. Com tua presença afundo na fossa, sem identidade, reputação e nome limpo na praça.
Depois que te vi, hoje, saí fora da caixa!


(TIRADAS do Teco, o poeta sonhador)

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Inútil luar - Manuel Bandeira


Neste poema Bandeira abre espaço para o doce e surpreendente cotidiano.

É noite. A Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia...

Dormem as sombras na alameda
Ao longo de ermo Piabanha.
E dele um ruído vem de seda
Que se amarfanha...

No largo, sob os jambolanos,
Procuro a sombra embalsamada.
(Noite, consolo dos humanos!
Sombra sagrada!)

Um velho senta-se a meu lado.
Medita, há no seu rosto uma ânsia...
Talvez se lembre aqui, coitado!
De sua infância.

Ei-lo que saca de um papel...
Dobra-o direito, ajusta as pontas,
E pensativo, a olhar o anel,
Faz umas contas...

Com outro moço que se cala.
Fala um de compleição raquítica.
Presto atenção ao que ele fala:
 - de política,

Adiante uma senhora, magra,
Em ampla charpa que a modela,
Lembra uma estátua de Tanagra.
E, junto dela,

Outra a entretém, a conversar:
 - "Mamãe não avisou se vinha.
Se ela vier, mando matar
Uma galinha."

E embalde a Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia...

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Príncipe, meu cachorro - Thiago de Mello



"...Hoje não quero perder a oportunidade de me lavar de um silêncio ingrato que faz tempo cometo com o meu inesquecível Príncipe. O Príncipe dos Poetas? Não. Príncipe é o nome do cachorro companheiro meu durante mais de 10 anos aqui na floresta. Vira-lata garboso, preto brilhante, dorso arqueado, pernas altas, olhar caricioso. Desde pequenino gostava de ficar, sempre atento, estendido na varanda da frente da casa. Não era rueiro. Só deixava a casa para namorar, que ele não era de ferro. Não me deixava sair sozinho. Ia na minha frente, abrindo caminho.
Tinha um faro infalível para a índole das pessoas. Quando o Príncipe rosnava grosso para alguém que me procurava, era aviso de que a pessoa não era flor de cheiro. Tinha certas implicâncias insondáveis. Quando eu voltava de viagem, de véspera ele adivinhava a minha chegada: dava saltos de alegria, as crianças achavam que ele estava ficando maluco. De manhã cedinho ia para o porto, ficava horas à espera do barco. Mal eu desembarcava, ele corria ao meu encontro, erguia o corpo e pousava as patas  dianteiras no meu peito, enquanto eu lhe acariciava o dorso aveludado. Era um amigo mesmo. Envelhecido, magro, perdeu as forças para caminhar. adoeceu, e fiz o que pude para salvá-lo. Não saía do seu lugar, no alto da varanda. Só aceitava água e umas bocadas de arroz cozido só pra ele. Um dia seu lugar amanheceu vazio. Ninguém nunca encontrou o seu corpo, nem na água nem na mata. Príncipe não morreu, se encantou".

Da apresentação do livro A poesia dos bichos. Ed. Bertrand Brasil, 2002.

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...