domingo, 8 de fevereiro de 2015

Inútil luar - Manuel Bandeira


Neste poema Bandeira abre espaço para o doce e surpreendente cotidiano.

É noite. A Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia...

Dormem as sombras na alameda
Ao longo de ermo Piabanha.
E dele um ruído vem de seda
Que se amarfanha...

No largo, sob os jambolanos,
Procuro a sombra embalsamada.
(Noite, consolo dos humanos!
Sombra sagrada!)

Um velho senta-se a meu lado.
Medita, há no seu rosto uma ânsia...
Talvez se lembre aqui, coitado!
De sua infância.

Ei-lo que saca de um papel...
Dobra-o direito, ajusta as pontas,
E pensativo, a olhar o anel,
Faz umas contas...

Com outro moço que se cala.
Fala um de compleição raquítica.
Presto atenção ao que ele fala:
 - de política,

Adiante uma senhora, magra,
Em ampla charpa que a modela,
Lembra uma estátua de Tanagra.
E, junto dela,

Outra a entretém, a conversar:
 - "Mamãe não avisou se vinha.
Se ela vier, mando matar
Uma galinha."

E embalde a Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia...

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Príncipe, meu cachorro - Thiago de Mello



"...Hoje não quero perder a oportunidade de me lavar de um silêncio ingrato que faz tempo cometo com o meu inesquecível Príncipe. O Príncipe dos Poetas? Não. Príncipe é o nome do cachorro companheiro meu durante mais de 10 anos aqui na floresta. Vira-lata garboso, preto brilhante, dorso arqueado, pernas altas, olhar caricioso. Desde pequenino gostava de ficar, sempre atento, estendido na varanda da frente da casa. Não era rueiro. Só deixava a casa para namorar, que ele não era de ferro. Não me deixava sair sozinho. Ia na minha frente, abrindo caminho.
Tinha um faro infalível para a índole das pessoas. Quando o Príncipe rosnava grosso para alguém que me procurava, era aviso de que a pessoa não era flor de cheiro. Tinha certas implicâncias insondáveis. Quando eu voltava de viagem, de véspera ele adivinhava a minha chegada: dava saltos de alegria, as crianças achavam que ele estava ficando maluco. De manhã cedinho ia para o porto, ficava horas à espera do barco. Mal eu desembarcava, ele corria ao meu encontro, erguia o corpo e pousava as patas  dianteiras no meu peito, enquanto eu lhe acariciava o dorso aveludado. Era um amigo mesmo. Envelhecido, magro, perdeu as forças para caminhar. adoeceu, e fiz o que pude para salvá-lo. Não saía do seu lugar, no alto da varanda. Só aceitava água e umas bocadas de arroz cozido só pra ele. Um dia seu lugar amanheceu vazio. Ninguém nunca encontrou o seu corpo, nem na água nem na mata. Príncipe não morreu, se encantou".

Da apresentação do livro A poesia dos bichos. Ed. Bertrand Brasil, 2002.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

"Falando com os botões" - Lygia Bojunga

"Às vezes, numa noite de insônia, num embalo de rede, numa viagem de trem, eu gosto de dar linha pra minha memória. Só pra ficar vendo até onde é que ela vai. Aqui e ali dou um puxão na linha, pra ver se a memória volteia bonito pra mais e mais longe. E uma vez, num desses puxões, a minha memória chegou o mais longe que eu já consegui fazer ela voar: eu me vi aos quatro anos, sentada no chão, a minha mãe do lado, o costureiro também; e me escutei dizendo: 
— Tu ficas muito tempo sem falar. 
E ouvi ela respondendo: 
— Engano teu: eu estou falando.
Falando com quem?
— Com os meus botões. 
— Eu não ouvi.
— Quando a gente fala com botão, os outros não escutam.
Foi a primeira vez que eu me lembro de ter sintonizado nessa expressão que a minha mãe gostava muito: falar com os botões.
A resposta da minha mãe, quando eu disse que ela ficava muito tempo sem falar, me deixou meio perplexa. Não pelo fato dela falar com botão (ou com linha, ou com tesoura): tipo da coisa natural. O que eu achei extraordinário foi a minha mãe ficar assim, falando tanto tempo. Logo ela: uma mulher de tão pouca fala. A conclusão não demorou: se a minha mãe fica esse tempo todo batendo papo com os botões é porque o papo é ótimo! (Conclusão que logo emprestou aos botões uma qualidade mágica.) E, se minha mãe fala com eles, eu também vou falar, ué.
E falei.
E falei e falei.
Mas eu falava em voz alta: afinal de contas, falar era falar. E vivia à cata de novos interlocutores. No fundo mais fundo de tudo que é costureiro, em qualquer pacotinho que eu encontrava no meio de linha e de lã, lá estava eu fuçando, atrás de novos botões pra conversar. De quê? Ora, do casamento do botão de madeira, do nascimento do botão de madrepérola, do noivado do botão de metal, da doença e morte de um botão sem furo. E, já imitando o mundo adulto, que parecia achar muito natural a estranhíssima divisão adotada de alguns ricos para muitos pobres, eu também, lá no meu mundinho, já tinha os Botões Ricos (trabalhados em metal) e uma porção de Botões Pobres (de pano e de osso) pra conversar. 
Acho que um dia a minha mãe ficou intrigada de ver que eu não conversava com alfinete, nem com agulha, nem com linha, e então me perguntou:
— Por que que tu só falas com botão?
— Tu também, ué.
E só aí ela me explicou que aquela expressão significava falar com a gente mesma, pensar, meditar. E, outra vez querendo imitar a minha mãe, eu larguei a prática de conversar com os botões e me iniciei na prática de falar com os meus botões.
Até o fim da vida, a minha mãe se demorou nesses falatórios com ela mesma. Quando ela já estava muito doente, uma vez eu entrei no quarto dela e vi ela de olho fechado, sem se mexer. (Essa é uma das únicas cenas em que me lembro dela de mão parada.) O susto me pregou no chão. Mas lá pelas tantas ela abriu o olho, estudou minha cara, e a mão se mexeu, fazendo um gesto negativo. A voz confirmou o gesto:
— Ainda não, minha filha: eu só estava falando com os meus botões.
Foi a procura dos botões que me levou mais fundo nos costureiros que acompanhavam a minha mãe; foi de tanto a minha mão andar por lá, num convívio cada vez mais estreito com tesoura e linha, e com agulha e lã, que eu comecei a achar que trabalhar com a mão era uma coisa tão da vida feito comer e dormir: era bom.
Foi bom querer imitar a minha mãe nos trabalhos manuais e aprender que a mão é um instrumento único.
É bom."

BOJUNGA, Lygia. “Falando com os botões”. In: Feito à mão. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2005, pp. 47-53


terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

ET AUAU



De qualquer ETnia, é senhor de todas as graças. Se não tem pedriguee, isso pouco importa. ET pintas brancas e pretas, ET de verde esperança. Às vezes dengoso e solto das patas. ET late pra mim e a menina, de patins, nem me olha. Meu olhar implora a seus olhos, tropeça no vazio e fica na fossa. Ela não precisa de patins e de ET pra ser cheia de graça. E eu não passo de um ETerno sonhador, sem AUAUtonomia e fingida alegria.


(TIRADAS do Teco, o poeta sonhador)

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Lero Lero - Cacaso

http://letras.mus.br/cacaso/687388/

Lero lero

Cacaso

Sou brasileiro de estatura mediana
Gosto muito de fulana mas sicrana é quem me quer
Porque no amor quem perde quase sempre ganha
Veja só que coisa estranha, saia dessa se puder
Não guardo mágoa, não blasfemo, não pondero
Não tolerolero lero devo nada pra ninguém
Sou descansado, minha vida eu levo a muque
Do batente pro batuque faço como me convém
Eu sou poeta e não nego a minha raça
Faço versos por pirraça e também por precisão
De pé quebrado, verso branco, rima rica
Negaceio, dou a dica, tenho a minha solução
Sou brasileiro, tatu-peba taturana
Bom de bola, ruim de grana, tabuada sei de cor
Quatro vez sete vinte e oito nove´s fora
Ou a onça me devora ou no fim vou rir melhor
Não entro em rifa, não adoço, não tempero
Não remarco, marco zero, se falei não volto atrás
Por onde passo deixo rastro, deixo fama
Desarrumo toda a trama, desacato Satanás
Sou brasileiro de estatura mediana
Gosto muito de fulana mas sicrana é quem me quer
Porque no amor quem perde quase sempre ganha
Veja só que coisa estranha, saia dessa se puder
Diz um ditado natural da minha terra
Bom cabrito é o que mais berra onde canta o sabiá
Desacredito no azar da minha sina
Tico-tico de rapina, ninguém leva o meu fubá

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...