quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Chega de mosquear!

Passei duas vezes na mesma rua em semanas diferentes e, na mesma casa, um velhinho sentado na varanda empunhava um mata-moscas. Surgiu de imediato a ideia, talvez precipitada... nestes tempos de tamanhas novidades não dá pra ficar sentado, com  "a boca escancarada cheia de dentes", mosqueando...
Posso estar me mosqueando quando penso na origem desta expressão. Diz o Aurélio que “mosquear” significa vagabundear. Meu desejo imediato, então, é o de ser um tremendo “moscão”! A vida se dilui, como a água que escorre entre os dedos, é preciso fazer aquelas coisas que sempre prometemos fazer, mas adiamos, e mosqueamos, mosqueamos... 
O velhinho do mata-moscas me faz lembrar Kafka, do livro “A metamorfose”, onde uma barata é um dos personagens. Kafka nos leva a pensar na relação entre o homem e os insetos. Principalmente, nos faz refletir sobre até que ponto temos nos transformado em insetos. Batizamo-nos homo sapiens, temos orgulho de sermos a única cabeça pensante do planeta... e, paradoxalmente, agimos de uma maneira suicida com relação à manutenção futura do nosso habitat. Estamos mosqueando demais, adiando para amanhã o que devíamos fazer hoje: cuidar da água e do ar, por exemplo.
Diz o refrão da música do Raul Seixas, “Mosca na sopa”:
“Eu sou a mosca que pousou na tua sopa / Eu sou a mosca que pousou pra lhe abusar...”
Essa mosquinha é o sujeito das ações. E não adianta detetizar, pois “nem o DDT pode assim me exterminar/porque você mata uma e vem outra em meu lugar!”. A simpática mosca representa várias coisas, por exemplo, a rebeldia, a não submissão ao poder, à ordem... Há também a ideia da proliferação: “Você mata uma e vem outro em meu lugar...”  Podemos atribuir à mosca, assim, um importante papel: o de nos provocar uma reação. Um contra-ataque. Sair da retranca, da passividade diante dos ataques dos outros ou de nossa letargia.
Quem sabe o mata-moscas do velhinho não passe de uma alegoria: usá-lo como arma para dar um basta à diluição dos valores que no passado lhe foram caros. Quem sabe, no seu imaginário, ele é um justiceiro diante da proliferação de tanta coisa ruim (na concepção dele!). Talvez, com o mata-moscas, ele se transforme num cavaleiro andante, num Dom Quixote, e sai pelo mundo, avançando entre clareiras de lucidez e loucura... Como Mandela, também deseja colocar seu nome na história, e contribuir para mudar o rumo da mesma, e ser lembrado muitas vezes mais do que seu aniversário e Dia de Finados.
Você deve estar pensando: "Pare de falar dos outros e coloque a mão na consciência!" "No que você tem contribuído à humanidade, para além de ser um moscão e barata tonta?".

Essas perguntas tem me incomodado. A bravura da bióloga gaúcha, Ana Paula Maciel, presa pelos russos quando protestava com o greempeace no mar Ártico, tem me colocado contra a parede. Essa moça, agora famosa e inspirando uma legião de defensores do meio ambiente pelo mundo todo, me faz pensar em dois conceitos cunhados por Maquiavel: "Virtu" e "Fortuna". Virtu, do grego, significa força, valor, que leva um sujeito a provocar mudanças na história. Uma pessoa "virtuosa" é aquela que tem capacidade de perceber o jogo de forças atual... e então agir. Já o conceito Fortuna vem da deusa romana "Fortuna", que representa abundância, mas é também aquela que move a roda da sorte. Daí vêm os conceitos "ocasião", "acaso", "sorte". Convém lembrar: para agir bem não devemos escapar à roda da fortuna. De qualquer maneira, de nada adianta ser virtuoso, se não soubermos ser precavidos e ousados e aproveitarmos a ocasião (acaso, sorte) das circunstâncias, observadores atentos do curso da história.
Para Maquiavel, o ideal é combinar (contrabalançar) o modo de agir individual (virtu) com as particularidades do momento histórico que vivemos (fortuna). No meu caso, levando ou não a sério meu horóscopo, a previsão de cartomantes, a palavra dos representantes de Deus e os livros de auto-ajuda (os quais vivem dizendo o que devo fazer), ando convencido de que a fortuna me abandonou. Quanto à virtu, acho que poderia cumprir um papel bem melhor. Prometo melhorar  depois do Ano Novo.

Vira-lata - Alberto martins

Passa a maior parte do dia
no quintal
entre o corredor
e a porta da cozinha.
À noite quando sai
leva debaixo do pelo
a corrente de metal.
Finge que não dói.
Às vezes escapa
pela porta entreaberta
mas sempre volta.
Esfrega no chão
o corpo diminuído
e me olha fundo
mais fundo que um irmão.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Rodolfo quer voltar


Hoje, que tanto se fala dos condenados do Mensalão, e de como irão cumprir sua pena – regime fechado, aberto ou semi-aberto – vou contar o drama do meu amigo Rodolfo.
Depois de 15 anos de casado, ele foi proibido pela esposa de retornar ao lar. Então pediu-me para que interceda junto à sua amada, que o aceite de novo no lugar que juntos construíram nestes anos todos. Vamos à história.
De segunda a sábado ele sai cedo para o trabalho, e retorna à casa quando chega a noite, para o cumprimento do seu dever.
Num sábado, depois do expediente, Rodolfo encontrou alguns amigos e decidiram conversar e tomar algumas cervejas. Estendeu-se, o dia passou rápido nesse sacrilégio de ir de bar em bar. A noite avançou, novos amigos, histórias de amores, festas e aventuras, Rodolfo esqueceu-se de voltar para casa. Foi com a turma a um baile, num bairro da cidade (Vocês hão de  concordar que essa fraqueza, por si só, não deve sacudir as bases da lei e da ordem do sagrado matrimônio).
No dia seguinte, porém, na hora de colocar os fatos em panos limpos, meu amigo disse à esposa que chegou tarde porque havia sido convidado para o aniversário do filho de um amigo. Lá, o jogo de canastra invadiu a madrugada.
No baile Rodolfo ganhou um prêmio. Ele, que nunca havia ganho nada em sorteios, durante a vida toda! Um frango assado, patrocinado por uma padaria do bairro. Dada a quantidade de cerveja que lhe subiu à cabeça, Rodolfo esqueceu-se completamente do galináceo.
O baile foi um sucesso e, na segunda-feira pela manhã, uma emissora de rádio da cidade anunciou os ganhadores dos brindes sorteados. Por azar de Rodolfo, sua esposa sintonizava aquela emissora, naquele instante.
Acusado de mentiroso e infiel, e para dar uma resposta à altura dos anseios da comunidade, Dona Fabi enviou meu amigo para o exílio. Arrependido, agora ele sente falta da esposa e do filhinho, sua pátria e porto seguro...
Sensibilizado com sua história e sabendo que, apesar do deslize, Rodolfo é um bom rapaz, vou escrever algumas linhas para tentar convencer sua esposa, para que o aceite de volta.
Dona Fabi, não necessito da sabedoria de um guru para afirmar que os dias atuais são deveras perigosos.  Em cada esquina surge um anjo mau disposto a colocar minhocas em nossa cabeça, e nos levar à perdição. Vale lembrar, também, que nem Rodolfo, nem qualquer outro homem, funcionam como relógio suíço: certinhos, previsíveis, totalmente ajustáveis!
Para não ser refém do olhar machista, vou citar algumas frases ditas por mulheres, no livro “O amor de mau humor”, de Ruy Castro, com o objetivo de convencê-la a aceitar Rodolfo de volta.  
Embora madame Stael diga que “o amor é a história da vida de uma mulher; e um episódio na vida de um homem”, convém prestar atenção no conselho de Dorothy Parker: “Conserve os dedos abertos... e o amor fica. Feche-os, e ele se desprende”.
Marido é coisa séria, dona Fabi. Diz Zsa Zsa Gabor: “Maridos são como fogo: extinguem-se se não forem atiçados”. Quanto ao casamento, este nem sempre representa o paraíso. Diz Dra. Joyce Brothers: “ O casamento não se compõe apenas de uma comunhão espiritual e de abraços apaixonados; compõe-se também de três refeições por dia, lavar a louça e lembrar-se de pôr o lixo para fora”.
Por outro lado, mulheres que optam por não casar defendem-se com bom humor: “Nunca me casei porque nunca precisei. Tenho três bichinhos em casa que, juntos, perfazem um marido: um cachorro que rosna de manhã, um papagaio que fala palavrões o dia todo e um gato que volta de madrugada para casa” (Maria Corelli).
Sem querer desanimar-te nesse sonho de manter reto o teu casamento, veja o que disse Helen Rowland: “Quando uma garota se casa, está trocando a atenção de muitos homens pela desatenção de um só”.
E para dividirmos as responsabilidades a respeito das dificuldades no casamento, diz Mae West: “Nunca pergunte a um homem por onde ele andava. Se não estava fazendo nada errado, não precisa de álibi. E, se estava, a culpa é sua, minha filha.”
Tudo o que fazemos tem um custo: o custo de nossas escolhas. E essa é a eterna busca pela felicidade. “Quem não conheceu o preço da felicidade nunca será feliz” (Eugene Levtushenko). 
 Rodolfo precisa muito de você. Tanto é que veio a público, como se esta crônica fosse sua serenata e buquê de flores, para dizer-te de todo o seu amor!
Depois dos puxões de orelha, o que seu homem mais precisa é de colo. Portanto, aceite-o de volta, abra-lhe as portas e acolha-o na segurança do teu abraço! Não se sinta humilhada; parafraseando François Truffaut, saiba que, no amor, vocês mulheres são profissionais, enquanto nós, homens, somos amadores!

terça-feira, 26 de novembro de 2013

O cão e o lobo - Monteiro Lobato



Certo dia, um Lobo só pele e osso encontrou um cão gordo, forte e com o pêlo muito lustroso. Via-se bem que não passava fome. O Lobo, admirado, quis saber onde é que ele conseguia obter tanta comida.
- Se me seguires, ficarás tão forte como eu - respondeu o cão. - O homem dar-te-á restos saborosos.
- Mas o que preciso de fazer em troca? - quis saber o Lobo.
- Muito pouco, na verdade - respondeu o Cão. - Uivar aos intrusos, agradar ao dono e adular os seus amigos. Só por isto receberás carne e outras iguarias muito bem cozinhadas. De vez em quando, receberás também festas no dorso.
O Lobo ficou encantado com a ideia e meteram-se ambos ao caminho. A dada altura, o Lobo reparou que o cão tinha o pescoço esfolado.
- O que tens no pescoço? - perguntou.
- Nada de grave. É da argola com que me prendem - explicou o Cão.
- Preso? Então não podes correr quando queres? - exclamou o Lobo. - Esse é um preço demasiado elevado: não troco a minha liberdade por toda a comida do mundo.
Dito isto, desatou a correr o mais depressa que pode para bem longe dali.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Televisão para dois - Fernando Sabino




Ao chegar ele via uma luz que se coava por baixo da porta para o corredor às escuras. Era enfiar a chave na fechadura e a luz se apagava. Na sala, punha a mão na televisão, só para se certificar: quente, como desconfiava. Ás vezes ainda pressentia movimento na cozinha:
    
       - Etelvina, é você ?
    
       A preta aparecia, esfregando os olhos:
    
       - Ouvi o senhor chegar... Quer um cafezinho ?

       Um dia ele abriu o jogo:

      - Se você quiser ver televisão quando eu não estou em casa, pode ver à vontade.

      - Não precisa não , doutor. Não gosto de televisão.

      - E eu muito menos.

       Solteirão, morando sozinho, pouco parava em casa. A pobre da cozinheira metida lá no seu quarto o dia inteiro, sozinha também, sem ter muito que fazer...

       Mas a verdade é que ele curtia o seu futebolzinho aos domingos, o noticiário todas as noites e mesmo um ou outro capítulo da novela, “ só para fazer sono”, como costumava dizer:

       - Tenho horror de televisão.
    
       Um dia Etelvina acabou concordando:

       - Já que o senhor não se incomoda...

       Não sabia que ia se arrepender tão cedo: ao chegar da rua, a luz azulada sob a porta já não se apagava quando introduzida a chave na fechadura. A princípio ela ainda se erguia da ponta do sofá onde ousava se sentar erecta:

       - Quer que eu desligue, doutor?

       Com o tempo, ela foi deixando de se incomodar quando o patrão entrava , mal percebia a sua chegada. E ele ia se refugiar no quarto, a que se reduzira seu espaço útil dentro de casa. Se precisava vir até a sala para apanhar um livro, mal ousava acender a luz:

       - Com licença...

       Nem ao menos tinha mais liberdade de circular pelo apartamento em trajes menores, que era o que lhe restara de comodidade, na solidão em que vivia: a cozinheira lá na sala a noite toda, olhos pregados na televisão. Pouco a pouco ela se punha cada vez mais à vontade, já derreada no sofá, e se dando mesmo ao direito de só servir o jantar depois da novela das oito. Às vezes ele vinha para casa mais cedo, especialmente para ver determinado programa que lhe haviam recomendado, ficava sem jeito de estar ali olhando ao lado dela, sentados os dois como amiguinhos. Muito menos ousaria perturbá-la, mudando o canal, se o que lhe interessava estivesse sendo mostrado em outra estação.

       A solução do problema lhe surgiu um dia, quando alguém, muito espantado que ele não tivesse televisão em cores, sugeriu-lhe que comprasse uma:

       - Etelvina , pode levar essa televisão lá para o seu quarto, que hoje vai chegar outra para mim.

       - Não precisava , doutor _ disse ela, mostrando os dentes, toda feliz. Ele passou a ver tranqüilamente o que quisesse na sua sala, em cores, e o que era melhor, de cuecas_ quando não inteiramente nu, se bem o desejasse.

       Até que uma noite teve a surpresa de ver a luz por debaixo da porta, ao chegar. Nem bem entrara e já não havia ninguém na sala, como antes_ a televisão ainda quente. Foi à cozinheira a pretexto de beber um copo d’água, esticou um olho lá pra o quarto na área: a luz azulada, a preta entretida com a televisão certamente recém-ligada.

       - Não pensa que me engana, minha velha - resmungou ele.

       Aquilo se repetiu algumas vezes, antes que ele resolvesse acabar com o abuso: afinal, ela já tinha a dela, que diabo.Entrou uma noite de supetão e flagrou a cozinheira às gargalhadas com um programa humorístico.

       - Qual é, Etelvina? A sua quebrou?

       Ela não teve jeito senão confessar, com um sorriso encabulado:

       - Colorido é tão mais bonito...

       Desde então a dúvida se instalou no seu espírito: não sabe se despede a empregada, se lhe confia o novo aparelho e traz de volta para a sala o antigo, se deixa que ela assista a seu lado aos programas em cores. O que significa praticamente casar-se com ela, pois , segundo a mais nova concepção de casamento, a verdadeira felicidade conjugal consiste em ver televisão a dois.

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...