terça-feira, 12 de novembro de 2013

Aqui é meu lugar


Guri de uns cinco ou seis anos. Pés descalços, montado num cavalo enorme. Cruzou diante de minha casa. Ao me ver boquiaberto, disse:
- Vou dar a volta e subir correndo!
Parecia um bonequinho montado num dinossauro. Poderia cair. Preocupei-me.
Que nada. Deu de rédeas no cavalo e subiu a rua num trote medonho. 
Isso me alegrou, uma cena incomum num final de sexta-feira. Aplaudi, “bravo!!”, e o guri disse que ia trotar de novo... Eu falei:
- Não precisa, você é demais!
Estas cenas enchem meus olhos, e me fazem cravar raízes por aqui. Pouco tempo atrás desejei ir embora de Ijuí, apesar dos fortes laços com esta cidade. Não nasci aqui, vim para cá há uns vinte e poucos anos. Mas me considero ijuiense. Outra perspectiva de trabalho, outros amigos, tive a oportunidade de mudar para o norte do país.
Na ocasião, rabisquei um poema para enviar aos amigos, como justificativa e despedida. Um trecho dizia mais ou menos assim:
"Não quero ser camponês
apegado ao velho chão
quero ser é marinheiro 
e explorar outros mares, 
marejar triaventuras
e respirar novos ares...
Talvez as linhas da mão
e uma bela cartomante
mostrem a melhor trilha
pra fugir de minha ilha
e mudar meu horizonte...
Sentirei falta do mate
da companhia do meu filhote
compartilhar histórias e livros
com todos os meus amigos.
Meu consolo é assim:
Vou, querendo ficar
Fico, querendo ir...
Estudei o mapa do país
dos rincões até as praias.
Preciso encontrar meu norte
antes que a casa caia!"
Foram vários os motivos que me fizeram fincar pé por aqui. Alguns eu tinha consciência na véspera. Outros eu percebo agora. Um dos grandes motivos que amarram meu cavalo em Ijuí são estas cenas urbanas, como a do guri, no começo desta história, que certamente não verei em nenhum outro lugar. 
Minha vinda a Ijuí deu-se, principalmente, para fazer um curso superior. Na época a Unijuí há pouco iniciava seu percurso como universidade. Porém, a Fidene já tinha uma bela trajetória (desde a década de 1950) como Faculdade de filosofia. Nestas décadas todas a Unijuí formou professores do noroeste gaúcho, oeste catarinense e sudoeste do Paraná. Nestas regiões, hoje se situa a Universidade Federal da Fronteira Sul. Regiões que antes não haviam sido adotas pelo Estado. Temos que reconhecer o esforço que a comunidade fez, com a instalação do Ensino Superior em Ijuí e região. Sabemos, hoje, como na época Ijuí estava à frente de seu tempo. 
Falando nisso, hoje, em nossa região, ainda estamos à frente ou poderemos ser deixados para trás, por outros municípios?
A criação de um campos da UFFS significa colocar Ijuí como um polo cultural, acadêmico e científico, no mesmo nível como temos em saúde. Penso que uma Universidade Federal em Ijuí, em vez enfraquecer, vai fortalecer ainda mais as universidades particulares, como ocorre em Chapecó, Erechim, Passo Fundo e Santa Maria. Em vez de tantos e tantos jovens (do sul do Brasil e até de outras regiões) se deslocarem para outras cidades em busca de Universidade Pública, poderemos atraí-los para Ijuí. Isso efetiva ainda mais aquela ideia de universalidade, o que é a “essência” da universidade. E isso vai se somar a tantos outros investimentos em outras áreas, que colocam Ijuí com um privilegiado Índice de Desenvolvimento Humano.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Se enlouqueci, me avisem!


De onde vem essa vontade tardia de cuidar de cada plantinha da horta? De olhar para o céu, percorrer as previsões do tempo na internet, ansioso para que chova e a semente venha a brotar? 
E essa noia zen de de relaxar olhos e pés, pisar na grama contemplativo diante dos canteiros? De fazer planos, vinte pés de alface crespa aqui, no canto próximo ao muro transplantar as mudinhas de pimenta que trouxe do pomar do professor Helio, adubar as covas para os chás, salsa e cebolinha... de onde vêm essas picuinhas?
Saudoso, cheguei a plantar sementes de melancia, como se fosse agricultor de verdade – urbano doido, disponho apenas de um pedaço de terra, nos fundos do terreno! Tenho redobrado a atenção, em cada quintal que me deparo, em cada rua que passo, a geometria dos canteiros, a disposição dos ventos, a porcentagem de sol que doura o chão... E pesquiso sobre sucos, as propriedades curativas de abacaxis e morangos, enfim, vasculho tintim por tintim  os sites especializados...
De onde vem essa atitude ridícula de negociar com pombos, sabiás e joões de barro, para que cisquem por todo canto, menos na terra que preparei? E já tenho insônia com as invasões imaginárias da formiga-cortadeira – Deus me livre!
Minha farmácia doméstica, o pé de limoeiro, parece indeciso sobre ficar ou crescer... Nesses anos todos, dei a mínima para isso, e agora sofro por não vê-lo adulto, carregado de flores e frutos. Então, desfilo uma ladainha de perguntas sobre cuidados com o solo, para amigos engenheiros agrônomos, e encaro minhas dúvidas como as mais importantes do mundo, mais do que o aquecimento global. Que metamorfose ocorreu, se durante anos apenas fiz recuar o mato, aparando a grama só quando os olhares dos vizinhos o imploravam?
Que bizarrice é esta para, de uma hora para outra, eu me preocupar com inseticidas, herbicidas e transgênicos? Que insanidade me faz agora olhar para o bife ou o peito do frango e sofrer com o bicho, como se fosse eu mesmo?
Acho que adivinho um pouco o que se passa comigo. Deve ser uma reação a essa pressa moderna, de nos afastarmos dos outros e mergulharmos no mundo virtual, atrofiando nossos bons e velhos sentidos!
Devolvam-me o que perdi com essa solidão urbana. A horta representa o oxigênio necessário aos meus sentidos – depois de anos e anos afastado da terra, do pomar e da cozinha, quero ver, ouvir, cheirar, tocar e, mais do que tudo, sentir!
Acompanhar o nascimento, crescimento e maturação das frutas, legumes e verduras significa ganhar mais vida, e renascer.
Irônico, meu amigo Monstro desconfia que minha cabeça aterrissou em outro planeta, e lá estou escrevendo e cultivando abobrinhas. Não o repreendo. Ele se criou no mundo urbano. Nunca vai compreender que quem nasceu e se criou na roça vai carregar terra debaixo das unhas pelo resto da vida.
Se é verdade que enlouqueci, por favor, me avisem!

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Odisseia - Carlos Drummond de Andrade

O amor foi à função, bebeu, cantou e bailou, estava muito excitado, tiveram de levá-lo para casa e prendê-lo no quarto para que repousasse. No dia seguinte, o amor cantou e bailou sem beber, e era sempre primavera nos seus modos e falas. O amor viajou, voltou, fazia piruetas, trocadilhos, esculturas, criava línguas e ensinava-as de graça. Todos o queiram para companheiro, paravam de guerrear para abraçá-lo, jogavam-lhe moedas que ele não apanhava, gerânios que ele oferecia às crianças e às mulheres. O amor não adoecia nem ficava mais velho, resplandecia sempre, havia quem o invejasse, quem inventasse calúnias a seu respeito, o amor nem ligava. Cercaram sua casa de madrugada, meteram-lhe a cabeça num saco preto, conduziram-no a um morro que dava para o abismo, interrogaram-no, bateram-lhe, ameaçaram jogá-lo no precipício, jogaram. O amor caiu lá embaixo aos pedaços, mas se recompôs e foi preso outra vez, aplicaram-lhe choques elétricos, arrancaram-lhe as unhas, os dedos, o amor sorria e quando não podia mais sorrir gritava numa de suas línguas novas, que não era entendida. E desfalecendo voltava a consciência, e torturado outra vez, era como se não fosse com ele. Quebraram o amor em mil partículas, e ninguém pôde ver as partículas. Foi sepultado normalmente no fim do mundo, que é para lá da memória. Ninguém o localizou, mas todos falavam nele, o amor virou um sonho, uma constelação, uma rima, e todos falavam nele, e ressuscitou ao terceiro dia.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Futebol de rua - Luis Fernando Verissimo


Pelada é o futebol de campinho, de terreno baldio. Mas existe um tipo de futebol ainda mais rudimentar do que a pelada. É o futebol de rua. Perto do futebol de rua qualquer pelada é luxo e qualquer terreno baldio é o Maracanã em jogo noturno. Se você é homem, brasileiro e criado em cidade, sabe do que eu estou falando. Futebol de rua é tão humilde que chama pelada de senhora.

Não sei se alguém, algum dia, por farra ou nostalgia, botou num papel as regras do futebol de rua. Elas seriam mais ou menos assim:

DA BOLA - A bola pode ser qualquer coisa remotamente esférica. Até uma bola de futebol serve. No desespero, usa-se qualquer coisa que role, como uma pedra, uma lata vazia ou a merendeira do seu irmão menor, que sairá correndo para se queixar em casa. No caso de usar uma pedra, lata ou outro objeto contundente, recomenda-se jogar de sapatos. De preferência os novos, do colégio. Quem jogar descalço deve cuidar para chutar sempre com aquela unha do dedão que estava precisando ser aparada mesmo. Também é permitido o uso de frutas ou legumes em vez de bola, recomendando-se nestes casos a laranja, a maçã, o chuchu e a pêra. Desaconselha-se o uso de tomates, melancias e, claro, ovos. O abacaxi pode ser utilizado, mas aí ninguém quer ficar no golo.

DAS GOLEIRAS - As goleiras podem ser feitas com, literalmente, o que estiver à mão. Tijolos, paralelepípedos, camisas emboladas, os livros da escola, a merendeira do seu irmão menor e até o seu irmão menor, apesar dos seus protestos. Quando o jogo é importante, recomenda-se o uso de latas de lixo. Cheias, para agüentarem o impacto. A distância regulamentar entre uma goleira e outra dependerá de discussão prévia entre os jogadores. Às vezes esta discussão demora tanto que quando a distância fica acertada está na hora de ir jantar. Lata de lixo virada é meio golo.

DO CAMPO - O campo pode ser só até o fio da calçada, calçada e rua, rua e a calçada do outro lado e - nos clássicos - o quarteirão inteiro. O mais comum é jogar-se só no meio da rua.

DA DURAÇÃO DO JOGO - Até a mãe chamar ou escurecer, o que vier primeiro. Nos jogos noturnos, até alguém da vizinhança ameaçar chamar a polícia.

DA FORMAÇÃO DOS TIMES - O número de jogadores em cada equipe varia, de um a 70 para cada lado. Algumas convenções devem ser respeitadas. Ruim vai para o golo. Perneta joga na ponta, a esquerda ou a direita dependendo da perna que faltar. De óculos é meia-armador, para evitar os choques. Gordo é beque.

DO JUIZ - Não tem juiz.

DAS INTERRUPÇÕES - No futebol de rua, a partida só pode ser paralisada numa destas eventualidades:

a) Se a bola for para baixo de um carro estacionado e ninguém conseguir tirá-la. Mande o seu irmão menor.

b) Se a bola entrar por uma janela. Neste caso os jogadores devem esperar não mais de 10 minutos pela devolução voluntária da bola. Se isso não ocorrer, os jogadores devem designar voluntários para bater na porta da casa ou apartamento e solicitar a devolução, primeiro com bons modos e depois com ameaças de depredação. Se o apartamento ou casa for de militar reformado com cachorro, deve-se providenciar outra bola. Se a janela atravessada pela bola estiver com o vidro fechado na ocasião, os dois times devem reunir-se rapidamente para deliberar o que fazer. A alguns quarteirões de distância.

c) Quando passarem pela calçada:

1) Pessoas idosas ou com defeitos físicos.

2) Senhoras grávidas ou com crianças de colo.

3) Aquele mulherão do 701 que nunca usa sutiã.

Se o jogo estiver empatado em 20 a 20 e quase no fim, esta regra pode ser ignorada e se alguém estiver no caminho do time atacante, azar. Ninguém mandou invadir o campo.

d) Quando passarem veículos pesados pela rua. De ônibus para cima. Bicicletas e Volkswagen, por exemplo, podem ser chutados junto com a bola e se entrar é golo.

DAS SUBSTITUIÇÕES - Só são permitidas substituições:

a) No caso de um jogador ser carregado para casa pela orelha para fazer a lição.

b) Em caso de atropelamento.

DO INTERVALO PARA DESCANSO - Você deve estar brincando.

DA TÁTICA - Joga-se o futebol de rua mais ou menos como o Futebol de Verdade (que é como, na rua, com reverência, chamam a pelada), mas com algumas importantes variações. O goleiro só é intocável dentro da sua casa, para onde fugiu gritando por socorro. É permitido entrar na área adversária tabelando com uma Kombi. Se a bola dobrar a esquina, é córner.

DAS PENALIDADES - A única falta prevista nas regras do futebol de rua é atirar um adversário dentro do bueiro. É considerada atitude antiesportiva e punida com tiro indireto.

DA JUSTIÇA ESPORTIVA - Os casos de litígio serão resolvidos no tapa.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

O Ministério da Saúde adverte





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Vou tentar descrever uma cara de sofrimento. Ele passava na rua, fumando. O cigarro entre os dedos vinha acompanhado da expressão do rosto e do restante do corpo, de atração e rejeição. Jogá-lo fora, embora estivesse pela metade, para daí a pouco acender outro. Sinto sua relação conflituosa com o cigarro, de prazer e doença, perdas e ganhos - eu vi - fazia sentir-se um monstro, um bandido, mesmo que estivesse ao ar livre.
Então, desliguei o piloto automático e passei a observar os transeuntes fumantes que cruzavam por mim. “Transeunte” é uma palavra horrível, eu odeio me imaginar assim quando saio para caminhar. Outra palavra que considero feia é “pedestre”, lembra “terrestre” e “rastejante” que, embora forçado, associo com tristeza e sofrimento. Quanto à alegria, não vi em nenhum daqueles transeuntes fumantes qualquer centelha disso. Não exibiam uma expressão de prazer, que todo vício deveria proporcionar. Isso, em parte, parece que tem a ver com as campanhas antitabagismo, sendo que a moral dos fumantes, a cada “Ministério da Saúde adverte...” despenca no abismo.
Quando criança, meu convívio com o cigarro não é como hoje: via meu pai fumar o palheiro e também aqueles cigarros ainda sem filtro (meu pai fumava a marca Tufuma). Junto com o ato de fumar, tenho a lembrança das conversas com o vizinhos, acompanhadas pela roda do mate. Cigarro na infância, portanto, lembra relaxamento, descontração, encontro com os amigos. Recordo também as mãos de meu pai preparando o palheiro. Era um artesão, confeccionava seu “objeto” com muito carinho. Eram as mesmas mãos (calejadas) que preparavam a terra para o plantio, que faziam a colheita, que confortavam os filhos e, inclusive, que tapavam o rosto em pranto solitário.
Sei o sofrimento que é se afastar de certos hábitos. Mas não embarco, no mais, no discurso do “politicamente correto”. Meus amigos, fumantes ou não: estamos juntos nesta “odisséia”. Não vamos nos auto-flagelar. Não somos os responsáveis pelos testes nucleares, que podem botar o planetinha pelos ares. Não somos os responsáveis pela fome mundial, nem pela má distribuição de renda... Ou somos?
O vício não pode ser motivo para andarmos cabisbaixos, considerando-nos merecedores da pena capital. Por outro lado, há um horizonte, chamado “bom senso”, que vale à pena não perder de vista. Visar um meio termo, entre o demais e o de menos, o excesso e a falta. Quem sabe consigamos um equilíbrio entre nossos impulsos de prazer e de dor. (Um desconfiômetro que acenda a luzinha quando descambamos rumo ao excesso).
Se tivesse o talento e o direito de dar conselhos, diria: Amigos, nos preocupemos, principalmente, com as crianças. Como? Com nosso exemplo de vida, o cultivo de valores, a tal da honestidade. Também, não deixemos de contar histórias. Sim, contemos as nossas e outras histórias, inclusive o namoro, casamento e o difícil divórcio com o cigarro. Falemos, e muito, que nos sentiremos mais leves, para constatarmos que não estamos sozinhos com estes problemas. De um jeito ou de outro, compartilhamos tantas angústias com tantos irmãos. Ao falarmos sobre, percebemos que o monstro não é tudo o que parece.
Porém, cuidado para não nos repetirmos. Igual ao vício, é chato ouvir e ouvir sempre a mesma história, e ter a impressão de que são todas parecidas. Por essas é que vale o esforço para deixar de fumar. Se conseguirmos, estaremos criando uma nova história.

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...