segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Se enlouqueci, me avisem!


De onde vem essa vontade tardia de cuidar de cada plantinha da horta? De olhar para o céu, percorrer as previsões do tempo na internet, ansioso para que chova e a semente venha a brotar? 
E essa noia zen de de relaxar olhos e pés, pisar na grama contemplativo diante dos canteiros? De fazer planos, vinte pés de alface crespa aqui, no canto próximo ao muro transplantar as mudinhas de pimenta que trouxe do pomar do professor Helio, adubar as covas para os chás, salsa e cebolinha... de onde vêm essas picuinhas?
Saudoso, cheguei a plantar sementes de melancia, como se fosse agricultor de verdade – urbano doido, disponho apenas de um pedaço de terra, nos fundos do terreno! Tenho redobrado a atenção, em cada quintal que me deparo, em cada rua que passo, a geometria dos canteiros, a disposição dos ventos, a porcentagem de sol que doura o chão... E pesquiso sobre sucos, as propriedades curativas de abacaxis e morangos, enfim, vasculho tintim por tintim  os sites especializados...
De onde vem essa atitude ridícula de negociar com pombos, sabiás e joões de barro, para que cisquem por todo canto, menos na terra que preparei? E já tenho insônia com as invasões imaginárias da formiga-cortadeira – Deus me livre!
Minha farmácia doméstica, o pé de limoeiro, parece indeciso sobre ficar ou crescer... Nesses anos todos, dei a mínima para isso, e agora sofro por não vê-lo adulto, carregado de flores e frutos. Então, desfilo uma ladainha de perguntas sobre cuidados com o solo, para amigos engenheiros agrônomos, e encaro minhas dúvidas como as mais importantes do mundo, mais do que o aquecimento global. Que metamorfose ocorreu, se durante anos apenas fiz recuar o mato, aparando a grama só quando os olhares dos vizinhos o imploravam?
Que bizarrice é esta para, de uma hora para outra, eu me preocupar com inseticidas, herbicidas e transgênicos? Que insanidade me faz agora olhar para o bife ou o peito do frango e sofrer com o bicho, como se fosse eu mesmo?
Acho que adivinho um pouco o que se passa comigo. Deve ser uma reação a essa pressa moderna, de nos afastarmos dos outros e mergulharmos no mundo virtual, atrofiando nossos bons e velhos sentidos!
Devolvam-me o que perdi com essa solidão urbana. A horta representa o oxigênio necessário aos meus sentidos – depois de anos e anos afastado da terra, do pomar e da cozinha, quero ver, ouvir, cheirar, tocar e, mais do que tudo, sentir!
Acompanhar o nascimento, crescimento e maturação das frutas, legumes e verduras significa ganhar mais vida, e renascer.
Irônico, meu amigo Monstro desconfia que minha cabeça aterrissou em outro planeta, e lá estou escrevendo e cultivando abobrinhas. Não o repreendo. Ele se criou no mundo urbano. Nunca vai compreender que quem nasceu e se criou na roça vai carregar terra debaixo das unhas pelo resto da vida.
Se é verdade que enlouqueci, por favor, me avisem!

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Odisseia - Carlos Drummond de Andrade

O amor foi à função, bebeu, cantou e bailou, estava muito excitado, tiveram de levá-lo para casa e prendê-lo no quarto para que repousasse. No dia seguinte, o amor cantou e bailou sem beber, e era sempre primavera nos seus modos e falas. O amor viajou, voltou, fazia piruetas, trocadilhos, esculturas, criava línguas e ensinava-as de graça. Todos o queiram para companheiro, paravam de guerrear para abraçá-lo, jogavam-lhe moedas que ele não apanhava, gerânios que ele oferecia às crianças e às mulheres. O amor não adoecia nem ficava mais velho, resplandecia sempre, havia quem o invejasse, quem inventasse calúnias a seu respeito, o amor nem ligava. Cercaram sua casa de madrugada, meteram-lhe a cabeça num saco preto, conduziram-no a um morro que dava para o abismo, interrogaram-no, bateram-lhe, ameaçaram jogá-lo no precipício, jogaram. O amor caiu lá embaixo aos pedaços, mas se recompôs e foi preso outra vez, aplicaram-lhe choques elétricos, arrancaram-lhe as unhas, os dedos, o amor sorria e quando não podia mais sorrir gritava numa de suas línguas novas, que não era entendida. E desfalecendo voltava a consciência, e torturado outra vez, era como se não fosse com ele. Quebraram o amor em mil partículas, e ninguém pôde ver as partículas. Foi sepultado normalmente no fim do mundo, que é para lá da memória. Ninguém o localizou, mas todos falavam nele, o amor virou um sonho, uma constelação, uma rima, e todos falavam nele, e ressuscitou ao terceiro dia.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Futebol de rua - Luis Fernando Verissimo


Pelada é o futebol de campinho, de terreno baldio. Mas existe um tipo de futebol ainda mais rudimentar do que a pelada. É o futebol de rua. Perto do futebol de rua qualquer pelada é luxo e qualquer terreno baldio é o Maracanã em jogo noturno. Se você é homem, brasileiro e criado em cidade, sabe do que eu estou falando. Futebol de rua é tão humilde que chama pelada de senhora.

Não sei se alguém, algum dia, por farra ou nostalgia, botou num papel as regras do futebol de rua. Elas seriam mais ou menos assim:

DA BOLA - A bola pode ser qualquer coisa remotamente esférica. Até uma bola de futebol serve. No desespero, usa-se qualquer coisa que role, como uma pedra, uma lata vazia ou a merendeira do seu irmão menor, que sairá correndo para se queixar em casa. No caso de usar uma pedra, lata ou outro objeto contundente, recomenda-se jogar de sapatos. De preferência os novos, do colégio. Quem jogar descalço deve cuidar para chutar sempre com aquela unha do dedão que estava precisando ser aparada mesmo. Também é permitido o uso de frutas ou legumes em vez de bola, recomendando-se nestes casos a laranja, a maçã, o chuchu e a pêra. Desaconselha-se o uso de tomates, melancias e, claro, ovos. O abacaxi pode ser utilizado, mas aí ninguém quer ficar no golo.

DAS GOLEIRAS - As goleiras podem ser feitas com, literalmente, o que estiver à mão. Tijolos, paralelepípedos, camisas emboladas, os livros da escola, a merendeira do seu irmão menor e até o seu irmão menor, apesar dos seus protestos. Quando o jogo é importante, recomenda-se o uso de latas de lixo. Cheias, para agüentarem o impacto. A distância regulamentar entre uma goleira e outra dependerá de discussão prévia entre os jogadores. Às vezes esta discussão demora tanto que quando a distância fica acertada está na hora de ir jantar. Lata de lixo virada é meio golo.

DO CAMPO - O campo pode ser só até o fio da calçada, calçada e rua, rua e a calçada do outro lado e - nos clássicos - o quarteirão inteiro. O mais comum é jogar-se só no meio da rua.

DA DURAÇÃO DO JOGO - Até a mãe chamar ou escurecer, o que vier primeiro. Nos jogos noturnos, até alguém da vizinhança ameaçar chamar a polícia.

DA FORMAÇÃO DOS TIMES - O número de jogadores em cada equipe varia, de um a 70 para cada lado. Algumas convenções devem ser respeitadas. Ruim vai para o golo. Perneta joga na ponta, a esquerda ou a direita dependendo da perna que faltar. De óculos é meia-armador, para evitar os choques. Gordo é beque.

DO JUIZ - Não tem juiz.

DAS INTERRUPÇÕES - No futebol de rua, a partida só pode ser paralisada numa destas eventualidades:

a) Se a bola for para baixo de um carro estacionado e ninguém conseguir tirá-la. Mande o seu irmão menor.

b) Se a bola entrar por uma janela. Neste caso os jogadores devem esperar não mais de 10 minutos pela devolução voluntária da bola. Se isso não ocorrer, os jogadores devem designar voluntários para bater na porta da casa ou apartamento e solicitar a devolução, primeiro com bons modos e depois com ameaças de depredação. Se o apartamento ou casa for de militar reformado com cachorro, deve-se providenciar outra bola. Se a janela atravessada pela bola estiver com o vidro fechado na ocasião, os dois times devem reunir-se rapidamente para deliberar o que fazer. A alguns quarteirões de distância.

c) Quando passarem pela calçada:

1) Pessoas idosas ou com defeitos físicos.

2) Senhoras grávidas ou com crianças de colo.

3) Aquele mulherão do 701 que nunca usa sutiã.

Se o jogo estiver empatado em 20 a 20 e quase no fim, esta regra pode ser ignorada e se alguém estiver no caminho do time atacante, azar. Ninguém mandou invadir o campo.

d) Quando passarem veículos pesados pela rua. De ônibus para cima. Bicicletas e Volkswagen, por exemplo, podem ser chutados junto com a bola e se entrar é golo.

DAS SUBSTITUIÇÕES - Só são permitidas substituições:

a) No caso de um jogador ser carregado para casa pela orelha para fazer a lição.

b) Em caso de atropelamento.

DO INTERVALO PARA DESCANSO - Você deve estar brincando.

DA TÁTICA - Joga-se o futebol de rua mais ou menos como o Futebol de Verdade (que é como, na rua, com reverência, chamam a pelada), mas com algumas importantes variações. O goleiro só é intocável dentro da sua casa, para onde fugiu gritando por socorro. É permitido entrar na área adversária tabelando com uma Kombi. Se a bola dobrar a esquina, é córner.

DAS PENALIDADES - A única falta prevista nas regras do futebol de rua é atirar um adversário dentro do bueiro. É considerada atitude antiesportiva e punida com tiro indireto.

DA JUSTIÇA ESPORTIVA - Os casos de litígio serão resolvidos no tapa.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

O Ministério da Saúde adverte





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Vou tentar descrever uma cara de sofrimento. Ele passava na rua, fumando. O cigarro entre os dedos vinha acompanhado da expressão do rosto e do restante do corpo, de atração e rejeição. Jogá-lo fora, embora estivesse pela metade, para daí a pouco acender outro. Sinto sua relação conflituosa com o cigarro, de prazer e doença, perdas e ganhos - eu vi - fazia sentir-se um monstro, um bandido, mesmo que estivesse ao ar livre.
Então, desliguei o piloto automático e passei a observar os transeuntes fumantes que cruzavam por mim. “Transeunte” é uma palavra horrível, eu odeio me imaginar assim quando saio para caminhar. Outra palavra que considero feia é “pedestre”, lembra “terrestre” e “rastejante” que, embora forçado, associo com tristeza e sofrimento. Quanto à alegria, não vi em nenhum daqueles transeuntes fumantes qualquer centelha disso. Não exibiam uma expressão de prazer, que todo vício deveria proporcionar. Isso, em parte, parece que tem a ver com as campanhas antitabagismo, sendo que a moral dos fumantes, a cada “Ministério da Saúde adverte...” despenca no abismo.
Quando criança, meu convívio com o cigarro não é como hoje: via meu pai fumar o palheiro e também aqueles cigarros ainda sem filtro (meu pai fumava a marca Tufuma). Junto com o ato de fumar, tenho a lembrança das conversas com o vizinhos, acompanhadas pela roda do mate. Cigarro na infância, portanto, lembra relaxamento, descontração, encontro com os amigos. Recordo também as mãos de meu pai preparando o palheiro. Era um artesão, confeccionava seu “objeto” com muito carinho. Eram as mesmas mãos (calejadas) que preparavam a terra para o plantio, que faziam a colheita, que confortavam os filhos e, inclusive, que tapavam o rosto em pranto solitário.
Sei o sofrimento que é se afastar de certos hábitos. Mas não embarco, no mais, no discurso do “politicamente correto”. Meus amigos, fumantes ou não: estamos juntos nesta “odisséia”. Não vamos nos auto-flagelar. Não somos os responsáveis pelos testes nucleares, que podem botar o planetinha pelos ares. Não somos os responsáveis pela fome mundial, nem pela má distribuição de renda... Ou somos?
O vício não pode ser motivo para andarmos cabisbaixos, considerando-nos merecedores da pena capital. Por outro lado, há um horizonte, chamado “bom senso”, que vale à pena não perder de vista. Visar um meio termo, entre o demais e o de menos, o excesso e a falta. Quem sabe consigamos um equilíbrio entre nossos impulsos de prazer e de dor. (Um desconfiômetro que acenda a luzinha quando descambamos rumo ao excesso).
Se tivesse o talento e o direito de dar conselhos, diria: Amigos, nos preocupemos, principalmente, com as crianças. Como? Com nosso exemplo de vida, o cultivo de valores, a tal da honestidade. Também, não deixemos de contar histórias. Sim, contemos as nossas e outras histórias, inclusive o namoro, casamento e o difícil divórcio com o cigarro. Falemos, e muito, que nos sentiremos mais leves, para constatarmos que não estamos sozinhos com estes problemas. De um jeito ou de outro, compartilhamos tantas angústias com tantos irmãos. Ao falarmos sobre, percebemos que o monstro não é tudo o que parece.
Porém, cuidado para não nos repetirmos. Igual ao vício, é chato ouvir e ouvir sempre a mesma história, e ter a impressão de que são todas parecidas. Por essas é que vale o esforço para deixar de fumar. Se conseguirmos, estaremos criando uma nova história.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Para uma garota de quinze anos - Lourenço Diaféria


Nós a trouxemos para casa logo nos primeiros dias do mês de novembro, faz quinze anos. Tinha o rosto miúdo, um tufo enroladinho de cabelos pretos, e os olhos já prometiam ser o que são hoje: janelas escancaradas sob cílios longos. Chorava nas horas certas. Costumava tomar a última mamadeira da noite, ou largar o peito da mãe, já adormecida, e assim varava a madrugada até as primeiras luzes do dia.
Aprendeu a sorrir com a precocidade das crianças que vão ser alegres, e ficamos surpresos ao ver que o bebê descia do berço e ensaiava os passos na direção dos braços que o aguardavam. Cresceu com jeito de carneirinho: um carneirinho macio que gostávamos de carregar no colo, até que seus pés se desprenderam de todo e buscaram o contato com o chão de cimento, conquistando a gloriosa sujeira da infância.
Depois do banho, penteada, perfume de sabonete, se encolhia junto às minhas mãos e me aquecia com o calor de seu pijama de flanela.
Vejo-a de lancheira cor-de-rosa descobrindo a primeira tarde na escola, jardim onde se reuniam outras crianças de sua idade.
Um dia me trouxe um desenho pintado com todos os lápis de cor que eu lhe havia dado. Eu disse: "Está muito bonito!".
E era verdade.
Ganhou cartilha. Descobriu a música que as letras fazem quando se misturam a outras letras. Fez a primeira composição com tinta, ficou com receio de tirar nota baixa, roeu as unhas, freqüentou uma escola-modelo no Bexiga (magnífico projeto de ensino depois reduzido à expressão mais simples de uma escola como outra qualquer).
Nós a criamos com simplicidade e ternura.
No íntimo, me recuso a aceitar que todas essas coisas levaram apenas quinze anos para acontecer e transformá-la na mocinha morena que misturou no tecido de seu temperamento uma densa compreensão pelas pessoas e principalmente pelas crianças ainda bem pequenas, que se agarram a ela como se tivesse visgo: compreensão e carinho misturados a uma pitada de timidez muito mal disfarçada pela garra com que se atira às decisões que aprendeu a tomar sozinha, senhora de seu nariz - aliás desafiante e arrebitado.
Quinze anos.
Imaginava eu que nessa idade as meninas morenas e loiras sonham sempre com longas festas, onde sempre aparece um cara que, além de tocar uma baita bateria, consegue um equipamento de luz negra, e tem um conjunto que faz um som da pesada, ou então chega com duas caixas e um amplificador, e tudo fica muito louco até o momento solene da valsa, com as meninas portando velas acesas e os rapazes com flores, enfim, a zorra dos quinze anos que os pais curtem com tremor dentro do peito, isso quando não se cotizam para o grande baile das debutantes, rigorosamente lindas, apresentadas geralmente por um compenetrado colunista social ou por um artista que, "... como anunciamos ao distinto público", acedeu ao convite da cidade, mesmo tendo de abandonar compromissos profissionais já assumidos, como a filmagem dos vinte últimos capítulos da novela em que é personagem principal.
Quinze anos.
Onde terei errado na minha função de pai?
Pois a menina de quinze anos que carreguei no colo e que admirei através do vidro da maternidade na noite de novembro em que a lâmpada cor-de-rosa se acendeu recusa com um sorriso provocador qualquer coisa que lembre essa festa de aniversário. E apenas deposita um beijo na minha testa, como se esse gesto bastasse para ela provar que acaba de completar quinze anos.
Não sei onde foi buscar esse despojamento e essa indiferença pela vaidade frágil que dura o tempo do spray no ar.
Chego a me atemorizar. Penso que, por desleixo ou falta de prática, falhei nalgum ponto - e criei a filha de um operário, de um ferroviário, de um lutador de boxe que perdeu por pontos, de um balconista das Casas Pernambucanas, de um lanterninha de cinema, ou - para pensar o pior - criei a filha de um mero Cronista da Cidade.

Que Deus me perdoe se falhei. E que Deus me abençoe se minha filha de quinze anos pensa exatamente como deve pensar uma garota morena de quinze anos, sem os cacoetes e sem os falsetes que nós, os adultos, gostamos de emprestar a essa idade própria das decisões pessoais, quando se aprende a usar o dom - hoje raro e falsificado - chamado: a liberdade de ser.

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...