segunda-feira, 14 de outubro de 2013

As manchetes do Dalton



Dalton é um personagem que eu criei. Pseudônimo ou heterônomo, não sei. Esses dias Dalton propôs escrevermos outro tipo de texto. A partir de manchetes de jornais e revistas, isolando-as do texto que elas anunciam. Segundo ele, ao serem inseridas num outro contexto, as palavras ganham um novo significado. Isso talvez ajude a colorirmos um pouco nossa realidade. Disse-lhe:
- Pra você, o mundo tem sentido ou é um arco-íris total? Eu me preocupo com o leitor. Para ser compreensível, a escrita necessita de uma lógica. Que tenha início, meio e fim...
Dalton não me ouvia. Prosseguiu na sua viagem lendo algumas manchetes de jornais e revistas, que ele compilou:
"Marina enrola-se na própria rede." "Marina chora, Dilma comemora." "Linda, perigosa e degradada." "Nada vai desaparecer, tudo vai se interligar." "Ataque a museu não combina com professor." "No mundo, uma em cada oito crianças passa fome." "Quando Dilma beijará a cruz?" "Como aproximar meninos e meninas." "Obama pôs a mão na colmeia." "Nossos genes não têm dono." "Existem gays no Vaticano." " Meretrizes felizes e outros deslizes." "O mar é um lixo." "Moralidade total flex."
Após sua leitura, óbvio, eu estava intrigado. As frases tocavam em diversos assuntos, alguns próximos, outros totalmente distintos. Disse a Dalton que, a cada dia, novas manchetes, novos ou velhos assuntos. Diante disso, nossa tarefa é a de buscar uma ordem. E ele retrucou:
- Que tal exercitarmos nossa criatividade, criando um novo texto ao interrelacionar as manchetes que eu separei? É possível fazer um ensaio literário.
E leu mais frases:
"Pague um mico por aqui." "Ter filhos traz intelectualidade." "Idosos gordinhos morrem menos." "Por que a gente sente vergonha alheia?" "Urso polar tem colesterol alto?" "Quem sabe faz ao vivo." “Nada se cria, tudo se copia”. “Interino também sonha.”
Perdi a paciência...
    - Pare! Isso é uma confusão total!
    - Calma... Só você não enxerga que as frases podem ser relacionadas. Deixa eu ler mais algumas.
    "Com dinheiro não se brinca." "Como ler um livrão numa sentada." "E se a gente parasse de comer carne?" "Da série ninguém consegue entender." "Fechei as portas para o diálogo."
    - Dalton, pegas tuas frases e enfia no ... Nosso mundo não tem nada a ver com isso. Ele segue uma lógica, uma determinação. E acrescentei:
    - Observe a maneira como se ensina redação, para o ENEM, a esses garotos e garotas do Ensino Médio. Você vem com literatura, quando o país quer qualificar seus jovens para o mercado de trabalho? Ninguém vai ligar para tuas malucas viagens literárias! O Brasil com urgência para dar um lugar ao sol a um bando de jovens, e você quer provocá-los com literatura? Ora bolas! Se você quer se divertir, pesquisando frases soltas, faça como eu: uma professora, amiga minha, fez uma prova de ciências para seus alunos de Ensino Fundamental. Escuta só as respostas de um aluno para duas questões:

    Pergunta: defina o núcleo da célula.
    Resposta do aluno: “É a parte redondinha do meio.”
    Pergunta: Quais as principais características dos seres vivos?
    Resposta do aluno: “Alto, baixo, gordo e magro.”
    Ao ouvir isso, Dalton abriu um sorriso de empolgação:
    - Cara, isso rende um texto divertido. Já tenho sua manchete: “ Humor volta às aulas”.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Perdoe, amiga


Perdoe, amiga, pela vileza com que me agarro às cruzadas da vida, como puro sangue na última aposta em cancha reta. Perdoe os planos entusiasmados de hoje e, de súbito, o desânimo e mergulho no precipício amanhã.
Perdoe a indiferença com que trato meus amores, com aquele ar aparente de quem não está nem aí. De quem pede sem nada oferecer, de ser parasita que suga e deseja mais e mais amor.
Perdoe o entusiasmo com que inicio minhas dietas, dois três quilos perdidos com orgulho, anunciados pelos quatro cantos da cidade. Perdoe a agilidade com que abandono a tudo e me jogo às bebidas e prazeres.
Perdoe por andar enfurnado, preso à própria casca e, de um momento para o outro, lançar-me atrás de mil aventuras, numa estranha correria, sem  a coragem de retornar ao lar.
Perdoe por andar num parafuso medonho. Hoje apertado demais, como sapato novo. Noutros momentos desajustado, prestes a comprometer estruturas e engrenagens.
Perdoe por tantas vezes me afastar, sem anunciar se estou bem ou mal, sem ligar para as boas novas e o que fora promessa. Perdoe-me por silenciar imóvel, como samambaia que enfeita a casa, que a tudo observa e nada diz.
Perdoe a indiferença diante da banalidade com que meu entardecer recepciona a noite. Vivo a especular sobre tristeza e saúde, doença e saudade, entusiasmo alegria e letargia. Penso e anuncio cada uma dessas coisas, sem mover um braço, sem ofertar um sorriso ou abraço. 
Perdoe, amiga, essa confusão de me imaginar mais do que eu, crente num universo infinito e plural, como se o fato de conviver nesse meio pi-ro-téc-ni-co me desse o direito de assumir vários papeis. Tolere essa teimosia em considerar que, o que chamas de fingimento e simulação, para mim é apenas invenção e imaginação.
Perdoe o paradoxo de ser assim, muita vontade de fingir, sumir-e-se-mostrar e, mais do que tudo, a cara de pau de esconder a vontade de chorar.

Amiga, dei voltas e voltas para tentar te dizer o que estou sentindo. Fracassei. Então, apelo agora a estes versos de Fernando Pessoa: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. (...) / Toda a gente que eu conheço e que fala comigo / nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, / nunca foi senão príncipe na vida. / (...) Estou farto de semideuses! / Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Entrevista com Machado de Assis - Rubem Braga

Em outubro de 1958, o cronista e jornalista Rubem Braga escrevia “Entrevista com Machado de Assis”, publicado em seu livro “Ai de ti, Copacabana”, onde simulava trechos de um programa de televisão fictício em que Machado de Assis é entrevistado 50 anos depois de sua morte.
As respostas são frases retiradas dos contos, crônicas e romances escritos pelo próprio autor.
Repórter – O senhor gostava muito de jogar xadrez com o maestro Artur Napoleão, não é verdade?
Machado – “O xadrez, um jogo delicioso, por Deus! Imaginem a anarquia, onde a rainha come o peão, o peão come o bispo, o bispo come o cavalo, o cavalo come a rainha, e todos come a todos. Graciosa anarquia...”
- Por falar em comer, é verdade que o senhor era vegetariano?
“...eu era carnívoro por educação e vegetariano por princípio. Criaram-me a carne, mais carne, ainda carne, sempre carne. Quando cheguei à idade da razão e organizei meu código de princípios, incluí nele o vegetarianismo; mas era tarde para a execução. Fiquei carnívoro.”
- Que tal acha o nome da Capital de Minas?
“Eu, se fosse Minas, mudava-lhe a denominação. Belo Horizonte parece antes uma exclamação que um nome.”
- E a respeito da ingratidão?
“Não te irrites se te pagarem mal um benefício; antes cair das nuvens que de um terceiro andar.”
- E a imprensa do escândalo?
“O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado.”
- E esses camaradas que estão sempre na oposição?
“O homem, uma vez criado, desobedeceu logo ao Criador, que aliás lhe dera um paraíso para viver; mas não há paraíso que valha o gosto da oposição.”
- E o trabalho?
“O trabalho é honesto; mas há outras ocupações pouco menos honestas e muito mais lucrativas”
- E a loteria?
“Loteria e mulher, pode acabar cedendo um dia”
- E sobre dívidas?
“Que é pagar uma dívida? É suprimir, sem necessidade urgente, a prova do crédito que um homem merece. Aumentá-la é fazer crescer a prova.”
- Pode me dar uma boa definição do amor?
“A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada.”
- O amor dura muito?
“Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos.”
- E a honestidade?
“Se achares três mil réis, leva-os à polícia; se achares três contos, leva-os a um banco.”
- E o Brasil?
“O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco”.
- E os filhos?
“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.”
- Muito obrigado, o senhor é muito franco em suas respostas.
“A franqueza é a primeira virtude de um defunto.”
- De qualquer modo, desculpe por havê-lo incomodado. Mas é que neste programa sempre entrevistamos alguém que já morreu...
“Há tanta coisa gaiata por esse mundo que não vale a pena ir ao outro arrancar de lá os que dormem...”

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

O sedutor médio - L. F. Verissimo




Vamos juntar nossas rendas
e expectativas de vida
querida, o que me dizes?
ter 2,3 filhos e ser meio felizes?

(Da série "Poesia numa hora destas?!")

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Ai de Ti, Ijuí!


Dia desses aconteceu algo inusitado. No final da tarde, o sol driblou vários prédios do centro da cidade e veio bater na janela da sala, onde está a redação do jornal. Na hora eu gritei: “Cleon, vais deixar escapar este momento? Não vais registrar nas lentes da tua máquina fotográfica?”
Cleon deitou a dar explicações técnicas sobre a impossibilidade de registrar numa boa foto aquele pôr-do-sol. Os prédios  impediam que houvesse “composição”, etc., etc.
Bateu-me um desespero, dali a pouco viria a noite e o instante se apagaria de nossa visão, restaria mera lembrança. Então comentamos sobre a beleza que a natureza nos oferece, de graça, mas que não aproveitamos, já que nossa cabeça está mergulhada nos afazeres cotidianos, e  entrincheirada entre as ruas e seus prédios.
Ao refletir sobre esse fato, lembrei-me da crônica do Rubem Braga, Ai de Ti, Copacabana. Ali, o cronista não estabelece uma relação entre o sol e a cidade, com seus prédios a desafiar as alturas, mas sim entre o mar e a cidade. Cidade com seus barulhos, lixos e especulações. Cidade com seus encontros e desencontros, e negócios muitas vezes impublicáveis. Cidade e sua relação conflituosa com o passado, quando uns querem botar abaixo prédios históricos, tendo olhos apenas para o presente e o futuro, sem qualquer preocupação com o que foi. Cidade com sua indiferença ante a natureza, seus lagos, córregos, banhados, árvores, seus ventos, humores e estações.
Diz Rubem Braga, em algumas passagens da crônica:
“Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas. (...). Grandes são teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão. (...). Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum. (...). Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente a hora da provação. (...). Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana, e levais flores para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados?”
Rubem Braga parece um profeta a anunciar o castigo (merecido) aos homens, porque fazem tudo do seu jeito: torto e do avesso. Seus olhares rasteiros, como a farejar ouro em Serra Pelada, não sentem a beleza da vida a pulsar, com a transcendentalidade que a natureza nos oferece.

Aqui em Ijuí, entre a cotação do dólar, da soja e do trigo, do custo da cesta básica e da passagem do ônibus, ainda é possível carregar  as baterias da sensibilidade, e sentir a presença (muitas vezes espremida entre um edifício e outro) do pôr-do-sol. E, tendo a emoção se libertado um pouco da razão, posso dizer que esses movimentos harmônicos do sol que nasce e se põe, da lua que “namora” com Vênus, do ipê que floresce sem a ajuda das promoções das lojas de tintas, me dá uma vontade juvenil, não de ser profeta, mas sim de rezar.

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...