quarta-feira, 8 de maio de 2013

Talvez o último desejo - Raquel de Queiroz



Pergunta-me com muita seriedade uma moça jornalista qual é o meu maior desejo para o ano de 1950. E a resposta natural é dizer-lhe que desejo muita paz, prosperidade pública e particular para todos, saúde e dinheiro aqui em casa. Que mais há para dizer?
      Mas a verdade, a verdade verdadeira que eu falar não posso, aquilo que representa o real desejo do meu coração, seria abrir os braços para o mundo, olhar para ele bem de frente e lhe dizer na cara: Te dana!
      Sim te dana, mundo velho. Ao planeta com todos os seus homens e bichos, ao continente, ao país, ao Estado, à cidade, à população, aos parentes, amigos e conhecidos: danem-se! Danem-se que eu não ligo, vou pra longe me esquecer de tudo, vou a Pasárgada ou a qualquer outro lugar, vou-me embora, mudo de nome e paradeiro, quero ver quem é que me acha.
      Isso que eu queria. Chegar junto do homem que eu amo e dizer para ele: Te dana, meu bem! Dora em vante pode fazer o que entender, pode ir, pode voltar, pode pagar dançarinas, pode fazer serenatas, rolar de borco pelas calçadas, pode jogar futebol, entrar na linha de Quimbanda, pode amar e desamar, pode tudo, que eu não ligo!
      Chegar junto ao respeitável público e comunicar-lhe: Danai-vos, respeitável público. Acabou-se a adulação, não me importo mais com as vossas reações, do que gostais e do que não gostais; nutro a maior indiferença pelos vossos apupos e os vossos aplausos e sou incapaz de estirar um dedo para acariciar os vossos sentimentos. Ide baixar noutro centro, respeitável público, e não amoleis o escriba que de vós se libertou!
      Chegar junto da pátria e dizer o mesmo: o doce, o suavíssimo, o libérrimo te dana. Que me importo contigo, pátria? Que cresças ou aumentes, que sofras de inundação ou de seca, que vendas café ou compres ervilhas de lata, que simules eleições ou engulas golpes? Elege quem tu quiseres, o voto é teu, o lombo é teu. Queres de novo a espora e o chicote do peão gordo que se fez teu ginete? Ou queres o manhoso mineiro ou o paulista de olho fundo? Escolhe à vontade - que me importa o comandante se o navio não é meu? A casa é tua, serve-te, pátria, que pátria não tenho mais.
      Dizer te dana ao dinheiro, ao bom nome, ao respeito, à amizade e ao amor. Desprezar parentela, irmãos, tios, primos e cunhados, desprezar o sangue e os laços afins, me sentir como filho de oco de pau, sem compromissos nem afetos.
 Me deitar numa rede branca armada debaixo da jaqueira, ficar balançando devagar para espantar o calor, roer castanha de caju confeitada sem receio de engordar, e ouvir na vitrolinha portátil todos os discos de Noel Rosa, com Araci e Marília Batista. Depois abrir sobre o rosto o último romance policial de Agatha Christie e dormir docemente ao mormaço.
      Mas não faço. Queria tanto, mas não faço. O inquieto coração que ama e se assusta e se acha responsável pelo céu e pela terra, o insolente coração não deixa. De que serve, pois, aspirar à liberdade? O miserável coração nasceu cativo e só no cativeiro pode viver. O que ele deseja é mesmo servidão e intranqüilidade: quer reverenciar, quer ajudar, quer vigiar, quer se romper todo. Tem que espreitar os desejos do amado, e lhe fazer as quatro vontades, e atormentá-lo com cuidados e bendizer os seus caprichos; e dessa submissão e cegueira tira a sua única felicidade.
      Tem que cuidar do mundo e vigiar o mundo, e gritar os seus brados de alarme que ninguém escuta e chorar com antecedência as desgraças previsíveis e carpir junto com os demais as desgraças acontecidas; não que o mundo lhe agradeça nem saiba sequer que esse estúpido coração existe. Mas essa é a outra servidão do amor em que ele se compraz - o misterioso sentimento de fraternidade que não acha nenhuma China demasiado longe, nenhum negro demasiado negro, nenhum ente demasiado estranho para o seu lado sentir e gemer e se saber seu irmão.
      E tem o pai morto e a mãe viva, tão poderosos ambos, cada um na sua solidão estranha, tão longe dos nossos braços.
      E tem a pátria que é coisa que ninguém explica, e tem o Ceará, valha-me Nossa Senhora, tem o velho pedaço de chão sertanejo que é meu, pois meu pai o deixou para mim como o seu pai já lho deixara e várias gerações antes de nós, passaram assim de pai a filho.
      E tem a casa feita pela nossa mão, toda caiada de branco e com janelas azuis, tem os cachorros e as roseiras.
      E tem o sangue que é mais grosso que a água e ata laços que ninguém desata, e não adianta pensar nem dizer que o sangue não importa, porque importa mesmo. E tem os amigos que são os irmãos adotivos, tão amados uns quanto os outros.
      E tem o respeitável público que há vinte anos nos atura e lê, e em geral entende e aceita, e escreve e pede providências e colabora no que pode. E tem que se ganhar o dinheiro, e tem que se pagar imposto para possuir a terra e a casa e os bichos e as plantas; e tem que se cumprir os horários, e aceitar o trabalho, e cuidar da comida e da cama. E há que se ter medo dos soldados, e respeito pela autoridade, e paciência em dia de eleição. Há que ter coragem para continuar vivendo, tem que se pensar no dia de amanhã, embora uma coisa obscura nos diga teimosamente lá dentro que o dia de amanhã, se a gente o deixasse em paz, se cuidaria sozinho, tal como o de ontem se cuidou.
      E assim, em vez da bela liberdade, da solidão e da música, a triste alma tem mesmo é que se debater nos cuidados, vigiar e amar, e acompanhar medrosa e impotente a loucura geral, o suicídio geral. E adular o público e os amigos e mentir sempre que for preciso e jamais se dedicar a si própria e aos seus desejos secretos.
      Prisão de sete portas, cada uma com sete fechaduras, trancadas com sete chaves, por que lutar contra as tuas grades?
      O único desabafo é descobrir o mísero coração dentro do peito, sacudi-lo um pouco e botar na boca toda a amargura do cativeiro sem remédio, antes de o apostrofar: Te dana, coração, te dana!

terça-feira, 7 de maio de 2013

Ainda vou...


Algo se esconde
naquela mata
em silêncio
         denso
a me fitar
sem dizer
se me quer
ou se maltrata.

Ainda vou explorar
o oceano que palpita
a montanha misteriosa
que pulsa e convida...

Ainda vou saber
que surpresa tem
aquele Santo Graal
se Maria Madalena
compensa tanto rezar.

Ainda vou descobrir
não sei quando e onde
por que ela não me
                    responde
preciso descobrir...
E segue o bonde.

sábado, 4 de maio de 2013

Musa




Este poema nasceu de um diálogo no facebook, quando a Sabrina Bertollo postou esta foto no seu perfil. Na ocasião eu disse a ela que seu olhar de MUSA não permitia que silenciasse o "poeta" que vos fala. Então a Sabrina desafiou-me a escrever um poema. Eu, sem vacilar, aceitei a doce "tarefa". Com a permissão da Sabrina para que o publique, aí vai o resultado de minha inspiração.


MEU AMOR

O meu amor
é meteoro 
desgovernado.

É que teu olhar
caleidoscópio
pinga estrelas
nos meus olhos.

Minha paixão
é universo em expansão!
 

terça-feira, 30 de abril de 2013

Feito à mão - Lygia Bojunga

Eu sempre usei livro pra tudo: pra saber ler, pra altear pé de mesa, pra aprender a usar a imaginação, pra enfeitar sala quarto a casa toda, pra ter companhia dia e noite, pra aprender a escrever, pra sentar em cima, pra rir, pra gostar de pensar, pra ter apoio num papo, pra matar pernilongo, pra travesseiro, pra chorar de emoção, pra firmar prateleira, pra jogar na cabeça do outro na hora da raiva, pra me-abraçar-com, pra banquinho do pé, eu sempre usei livro pra tanta coisa, que a coisa que mais me espanta é ver gente vivendo sem livro.

Do livro, Feito à mão. Editora AGIR, 1999.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

A paixão de Lúcia Helena - Raul Drewnick



A moça fala, fala não para de falar. A mãe que prepara o almoço mais sorri do que responde. Não precisa ficar atenta para saber o que aconteceu. Os adjetivos, os verbos e os advérbios que a filha usa dizem muito. Mas o seu jeito de suspirar fundo diz muito mais. Ela esta de novo apaixonada. E, como em todas as outras vezes, pré-di-da-mente. É o  que ela diz, enquanto a mãe, sempre sorrindo, fiscaliza o arroz, vira os bifes na frigideira, começa a lavar a alface.
- Mãe, a senhora precisava ver como ele é lindo. Só de olhar para a carinha dele dá vontade de ...hum...abraçar aquela belezura e ficar beijando, beijando. Ah...
A mãe tira a panela de arroz de fogo, dá mais uma virada nos bifes. E a filha ali, falando, falando.
E os olhos dele mãe! Os olhos! Ah... Nem sei como não desmaio quando ele olha pra mim. E como ele olha pra mim! Todo dia, é só eu pôr o pé fora do colégio e chegar à esquina, quem esta sempre lá no ponto de ônibus, me esperando, com aqueles olhos?
A mãe já pôs o arroz e um bife no prato da filha e, e enquanto acaba de temperar a salada, continua sorrindo e ouvindo o que ela diz.
- lembra do Tino, mãe? Claro que você lembra. Aquele. Agente ainda morava lá na outra casa. Então. Este é ainda mais lindo que o Tino. Só que é tímido. Quando eu saio da aula, ele pensa que eu não reparo mas ele vai cortando caminho pelo jardim do colégio e, na hora em que eu chego ao ponto de ônibus lá está ele, o bandido, encostado no muro, me olhando com aqueles olhos. Mas hoje, mãe, se ele não tomar a iniciativa, eu tomo. Juro que tomo. Ou não me chamo mais Lúcia Helena.
A mãe pergunta se a filha não quer salada e ela, finalmente mudando de assunto, diz que não, porque esta a-tra-as-dis-si-ma. Precisa escovar os dentes e ir embora, senão perde a primeira aula.
Quando Lúcia Helena sai, a mãe balança a cabeça. Será que tudo vai começara de novo? E lembra-se das paixões da filha: o Tino, o Thomas, o Tim, o Turquinho. Para quem não chegou ainda aos 16 anos, é uma coleção! Enquanto lava a louça, fica assim, pensando em como se apaixona fácil a sua menina. Depois se condiciona a esquecer tudo aquilo. Lava o chão da cozinha, limpa o fogão, passa o aspirador na sala espana os móveis e quando olha para o relógio, leva um susto. São 6 horas e Lucia Helena, que sempre esta de volta às 5, ainda não chegou. A pobre mãe passa rapidamente de inquieta  a preocupada, de preocupada a aflita e já esta quase desesperada quando afinal ouve a porta se abrir:
-Menina você quer me deixar louca? Isso é hora de chegar? O que aconteceu? Você esqueceu de levar o passe do ônibus?
Lucia Helena entrando na sala responde:
- e a senhora acha que iam me deixar viajar no ônibus com essa fofura ? olha, mãe ele não e mesmo lindo? Agora precisamos tomar cuidado para ele não fugir, como o Tino e o Thomas, nem se atropelado como o Tim e o Turquinho. Ele vai se chamar Tontinho. É um bom nome. A senhora já viu um gatão mais bobinho do que este?
A mãe se aproxima e vê, logo no primeiro exame, que o gato e lindo, mas não pode chamar Tontinho. Tem de ser Tontinha. Como a filha.

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...