segunda-feira, 22 de abril de 2013

O inferno são os outros


Vejam, até o mamão, de que gosto muito, vem com selo!
Igual qualquer outro produto, carimbado, mamão com chip, com dono, mamão vigiado.
Inocentemente nos cercamos de marcas, câmeras...
"Eu etiqueta", denunciou num poema o Drummond.
Por onde andei nos últimos dias... basta rastrear as câmeras discretamente instaladas nos caminhos onde passo, ou rastrear as ligações do meu celular.
Nesse, meus contatos dão a mostra de minhas intenções (boas e más, as que serão analisadas por Jesus e festejadas pelo demônio, é o que diz o pastor da igreja mais próxima), tudo o que tramei e o que imaginei, se ainda consigo imaginar.
Como somos inocentes em nossa romaria a caminho do matadouro...
E eu saio a vagar por aí, e também me vigio. Sem querer me ponho a pensar sobre como deve ser o paraíso. Porém, o que é o paraíso só o posso saber pela minha imaginação. Assim, ele é a extensão do que eu gostaria que minha vida fosse aqui, nesse espaço/tempo finito. Muitos amigos, muitas histórias, alegria, fartura, solidariedade, muita informação, conhecimento, cultura e arte.
Cabeça no céu, naquilo que ainda não foi, acabo fugindo desse mundo aqui, agora. Não contribuo em nada para dar um norte a essa sociedade, de que participo.
Mamão com selo. E código de barras. E destino selado. E maturação forçada. E precoce. E fora de época...
Ele não sabe, e nós também, que rapidamente esquecemos, que o que vale é o aqui e agora. E que se não fizermos nada, vamos passar em branco, não vamos fazer história.
Ao mamão, pouco importa. Não, para mim. Penso nisso e me deprimo.
Sou carimbado, vigiado, e me conformo em ficar de braços cruzados.
Ah, sempre esperto para apontar um culpado, e dizer, com Sartre, que o inferno são os outros.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Como se conjuga um empresário - Mino

Acordou. Levantou-se. Aprontou-se. Lavou-se. Barbeou-se. Enxugou-se. Perfumou-se.
Lanchou. Escovou. Abraçou. Saiu. Entrou. Cumprimentou. Orientou. Controlou. Advertiu.
Chegou. Desceu. Subiu. Entrou. Cumprimentou. Assentou-se. Preparou-se. Examinou. Leu.
Convocou. Leu. Comentou. Interrompeu. Leu. Despachou. Vendeu. Vendeu. Ganhou.
Ganhou. Ganhou. Lucrou. Lucrou. Lucrou. Lesou. Explorou. Escondeu. Burlou. Safou-se.
Comprou. Vendeu. Assinou. Sacou. Depositou. Depositou. Associou-se. Vendeu-se.
Entregou. Sacou. Depositou. Despachou. Repreendeu. Suspendeu. Demitiu. Negou.
Explorou. Desconfiou. Vigiou. Ordenou. Telefonou. Despachou. Esperou. Chegou.
Vendeu. Lucrou. Lesou. Demitiu. Convocou. Elogiou. Bolinou. Estimulou. Beijou.
Convidou. Saiu. Chegou. Despiu-se. Abraçou. Deitou-se. Mexeu. Gemeu. Fungou. Babou.
Antecipou. Frustrou. Virou-se. Relaxou-se. Envergonhou-se. Presenteou. Saiu. Despiu-se.
Dirigiu-se. Chegou. Beijou. Negou. Lamentou. Justificou-se. Dormiu. Roncou. Sonhou.
Sobressaltou-se. Acordou. Preocupou-se. Temeu. Suou. Ansiou. Tentou. Despertou.
Insistiu. Irritou-se. Temeu. Levantou. Apanhou. Rasgou. Engoliu. Bebeu. Dormiu. Dormiu.
Dormiu. Dormiu. Acordou. Levantou-se. Aprontou-se...

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Anjo


Hoje topei com um anjo sedutor
de cabelos fogueados e olhares indiscretos.
Espantou maliciosamente o medo
                                            da morte
                                               matada
                                            e morrida...
Nasci de sua aura
de  vontade colorida
para acordar aurora e crepúsculo.
Foi então que meu reino de paixões 
                                        ressuscitou:
Mais e mais, a vontade de exercitar
                          cérebro e músculos.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

O mundo dos vivos - Martha Medeiros

Quando alguém morre, costuma-se dizer que não faz mais parte do mundo dos vivos. Me pergunto: é preciso morrer pra deixar de fazer parte do mundo dos vivos? Não são poucos os zumbis que andam por aí. Quantos de nós, que nos autoproclamamos vivos pelo simples fato de ainda estarmos respirando, realmente honramos o verbo viver?

Nem todos mantêm residência no mundo dos vivos. E não sabem o que estão perdendo.

No mundo dos vivos todos sentem alguma coisa. Uns sentem uma felicidade transbordante, outros estão sofrendo por amor, alguns ficam indignados, outros não conseguem conter o entusiasmo, há os que têm medo da estagnação e há aqueles que venceram esse medo e enfrentaram seus demônios. 

No mundo dos vivos, não há um único habitante que diga para si mesmo: não estou sentindo nada. Se não está sentindo nada, ora, não está vivo.

No mundo dos vivos todos pensam por conta própria. Para isso, cultivam um hábito elementar: lêem. E não lêem qualquer coisa só por passatempo. 

Lêem livros que abrem suas mentes, livros que estimulam sua imaginação, que os fazem rir e que os fazem ficar chocados, que os ajudam a reconhecer em si o que estava escondido, livros que provocam, livros que ousam, livros que lêem os leitores por dentro. 

No mundo dos vivos, não há um único habitante que despreze o conhecimento e o acesso a novas percepções. Se despreza, ora, não está vivo.

No mundo dos vivos, além de se ler muito, reverencia-se a arte em todas as suas manifestações. As pessoas compreendem que arte é a prática do desrespeito, ótima definição que li num livro de Mario Sergio Cortella. 

Respeitam-se as leis, mas aplaude-se a transgressão, o questionamento incessante, a inovação, a diferença, o inusitado. No mundo dos vivos não há um único habitante que não se sinta estimulado por aquilo que lhe inquieta. Se não se estimula, ora, não está vivo.

No mundo dos vivos, o tédio não é aceito como algo normal e inevitável. A repetição de atitudes não é considerada uma proteção, e sim um mau sintoma. Os preconceitos não são encorajados. 

Do mesmo modo que há problemas, sabe-se que há soluções. No mundos dos vivos, cada dia é um presente a ser aproveitado. O que passa na tevê é entretenimento barato, o luxo está na realidade, qualquer uma que tenhamos criado com autenticidade e coragem. 

No mundo dos vivos, há mais perguntas que respostas, mais audácia que conformismo, engata-se mais a primeira do que a ré. Não há um único habitante que consola-se com a própria incapacidade, ao contrário: estudar, aprender e tentar são sinônimos de viver. 

Os zumbis habitam outro mundo, e não vivem: vagam.



(Publicado em Zero Hora no dia 16 de novembro de 2008)

terça-feira, 16 de abril de 2013

Chapeuzinho vermelho de raiva - Mario Prata


- Senta aqui mais perto, Chapeuzinho. Fica aqui mais pertinho da vovó, fica.

- Mas vovó, que olho vermelho... E grandão... Queque houve?

- Ah, minha netinha, estes olhos estão assim de tanto olhar para você. Aliás, está queimada, heim?

- Guarujá, vovó. Passei o fim de semana lá. A senhora não me leva a mal, não, mas a senhora está com um nariz tão grande, mas tão grande! Tá tão esquisito, vovó.

- Ora, Chapéu, é a poluição. Desde que começou a industrialização do bosque que é um Deus nos acuda. Fico o dia todo respirando este ar horrível. Chegue mais perto, minha netinha, chegue.

- Mas em compensação, antes eu levava mais de duas horas para vir de casa até aui e agora, com a estrada asfaltada, em menos de quinze minutos chego aqui com a minha moto.

- Pois é, minha filha. E o que tem aí nesta cesta enorme?

- Puxa, já ia me esquecendo: a mamãe mandou umas coisas para a senhora. Olha aí: margarina, Helmmans, Danone de frutas e até uns pacotinhos de Knorr, mas é para a senhora comer um só por dia, viu? Lembra da indigestão do carnaval?

- Se lembro, se lembro...

- Vovó, sem querer ser chata.

Ora, diga.

- As orelhas. A orelha da senhora está tão grande. E ainda por cima, peluda. Credo, vovó!

- Ah, mas a culpada é você. São estes discos malucos que você me deu. Onde á se viu fazer música deste tipo? Um horror! Você me desculpe porque foi você que me deu, mas estas guitarras, é guitarra que diz, não é? Pois é; estas guitarras são muito barulhentas. Não há ouvido que agüente, minha filha. Música é a do meu tempo. Aquilo sim, eu e seu finado avô, dançando valsas... Ah, esta juventude está perdida mesmo.

- Por falar em juventude o cabelo da senhora está um barato, hein? Todo
desfiado, pra cima, encaracolado. Que qué isso?

- Também tenho que entrar na moda, não é, minha filha? Ou você queria que
eu fosse domingo ao programa do Chacrinha de coque e com vestido preto com bolinhas brancas?

Chapeuzinho pula para trás:

- E esta boca imensa???!!!

A avó pula da cama e coloca as mãos na cintura, brava:

- Escuta aqui, queridinha: você veio aqui hoje para me criticar é?!


O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...