quarta-feira, 10 de abril de 2013

Alguém viu, alguém leu...


Menina na janela, poodle no colo, curiosa com a passeata na avenida. Aniversário de sessenta anos de minha escola, o IMEAB  de Ijuí-RS. Vi num relance, mas a memória gravou e repete, a cada poucos minutos, o seu replay. Apenas mais um flash, um clarão, uma estrela que nasceu. A todo instante, momentos como esse, nascem, morrem, sem ninguém perceber.
Vivo de replays. Ingênuo, creio que os que passaram, retornarão.
Ainda agora leio poemas de Marina Tsvetáieva, Russa, anticonformista, que viveu nas primeiras décadas do século XX. Ponho-me a imaginar como foi sua vida e dos que viveram essas décadas, tão cheias de descobertas e de guerras. Duas guerras mundiais,  o Nazismo, enfim, como foi o céu e o inferno que viveu, o tamanho do desespero que a afastou da família e a levou ao suicídio.
Reencontro Marina, através de sua poesia. Leio, releio, seu recado, neste poema:

Para meus versos, escritos num repente,
quando eu nem sabia que era poeta,
jorrando como pingos de nascente,
como cintilas de um foguete,

Irrompendo como pequenos diabos,
no santuário, onde há sono e incenso,
para meus versos de mocidade e morte,
- versos que ler ninguém pensa! -

Jogados em sebos poeirentos
(onde ninguém os pega ou pegará)
para meus versos, como os vinhos raros,
chegará seu tempo.

Marina Tsvetáieva, teus versos venceram o tempo e o espaço. E comoveram meu coração. São os mais recentes replays que vão me acompanhar, passo a passo.
Não há barreira de tempo, espaço e de língua, enquanto houver homens que amam os livros, os traduzem e os publicam.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Sou um dos 999.999 poetas do país - Affonso Romano de S'antaAnna


Fragmento 1
INTRODUÇÃO SÓCIO-INDIVIDUAL DO TEMA
Sou um dos 999.999 poetas do país
que escrevem enquanto caminhões descem pesados de cereais
e celulose
ministros acertam o frete dos pinheiros
carreados em navios alimentados com o óleo
que o mais pobre pagará.
(- Estes são dados sociais
de que não quero falar, embora
tenha aprendido em manuais
que o escritor deve tomar o seu lugar na História
e o seu cotidiano alterar.)
Sou um dos 999.999 poetas do país
com mãe de olhos verdes e pai amulatado
ela – a força de áries na azáfama da casa
a decisão do imigrante que veio se plantar
ele – capitão de milícias tocando flauta em meio
às balas
lendo salmos em Esperanto sobre a mesa
domingueira.
(- Estes são sinais particulares
que não quero remarcar, embora
tenha aprendido em manuais
que o que distingüe a escrita do homem
são seus traços pessoais que ninguém pode
imitar.)
Fragmento 2
DESENVOLVIMENTO HÁBIL E CONTÁBIL DO (P)R(O)BL(EMA)
Sendo um dos 999.999 poetas do país
desses sou um dos 888.888
que tiveram Mário, Bandeira, Drummond,
Murilo, Cecília, Jorge e Vinícius como mestres
e pelas noites interioranas abriam suas obras
lendo e reescrevendo os versos deles nos meus versos
com deslumbrada afeição.
Desses sou um dos 777.777 poetas
que se ampliaram ao descobrir Neruda, Pessoa,
Petrarca, Eliot, Rilke, Whitman, Ronsard e Villon
em tradução ou não
e sem qualquer orientação iam curtindo
um bando de poetas menores/piores
que para mim foram maiores
pois me alimentavam com a in-possível poesia
e a derramada emoção.
Desses sou um dos 666.666 poetas
que fundando revistinhas e grupelhos aspiravam
(miudamente)
à glória erótica & literária
e misturando madrugadas, festas, citações, sonhos
de escritor maldito e o mito das gerações
depois da espreita aos suplementos
batem à porta do poeta nacional para entregar
poemas
(com a alma na mão)
esperando louvor e afeição.
Desses sou um dos 555.555
que um dia foram o melhor poeta de sua cidade
o melhor poeta de seu estado
dos melhores poetas jovens do país
e quando já se iam laureando aqui e ali em plena arcádia surpreenderam-se nauseados
e cobrindo-se de cinza retiraram-se para o deserto
a refazer a letra do silêncio
e o som da solidão.
Desses sou um dos 444.444 poetas
que depois da torrente de versos adolescentes e noturnos
se estuporaram per/vertidos nas vanguardas
e por mais de 20 anos não falamos de outra coisa
senão da morte do verso e da palavra e da vida do sinal
acreditando que a poesia tendia para o visual
e que no séc. XXI etc. e etc. e tal.
Desses sou um dos 333.333 poetas
que depois de tanto rigor, ardor, odor, horror
partiram para a impureza (consciente) das formas
podendo ou não rimar em ar e ão
procurando o avesso do aprendido
o contrário do ensinado
interessado não apenas em calar, mas em falar
não apenas em pensar, mas em sentir
não apenas em ver, mas contemplar
fugindo do falso novo como o diabo da cruz
porque nada há de mais pobre que o novo ovo de ouro
gerado por falsas galinhas prata.
Desses sou um dos 222.222 poetas
que penosamente descobriram que uma coisa
é fazer um verso, um poema ou mais
e receber os elogios médio-medianos dos amigos
e outra, bem outra, é ser poeta
e construir o projeto de uma obra
em que vida & texto se articulem
letra & sangue se misturem
espaço & tempo se revelem
e que nesta matéria revém o dito bíblico
- muitos os chamados, poucos os escolhidos.
Desses sou um dos 111.111 professores
universitários ou não
que antes de tudo eram poetas-patetas-estetas-profetas
e que depois de ver e viver da obra alheia
estupefactos
descobrem que só poderiam/deveriam
sobreviver com a própria
que escondem e renegam
por pudor
recalque
e medo.
Sou um dos 999 poetas do país
que
sub/traídos dos 999.999
serão sempre 999 (anônimos) poetas
expulsos sistematicamente da República por Platão
que um dia pensaram em mudar a História com
dois versos pena & espada
(o que deu certo ao tempo de Camões)
e que escrevendo páginas e páginas não mudaram nada
senão de tinta e de endereço.
Mas foi dessa inspeção ao nada que aprenderam
que na poesia o nada se perde
o nada se cria
e o nada se transforma.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Cândido

Ela disse que não, mas eu pensei que conhecia sua beleza interior quando a desfrutasse nua, como veio ao mundo.
Eu era mais um ingênuo, um cândido, que acreditava em príncipes e fadas pornográficos.
Ao superar a ingenuidade, enumerei uma lista de "verdades", que vocês podem chamar de "meias verdades", ou "meias verdades do momento".
- Para conhecer sua beleza interior, não pode ser na pressa, na afobação.
- Para conhecer suas virtudes e defeitos, é preciso mais do que um dia, uma "ficada". Precisamos alongar o namoro, fazer o tema de casa.
- Para tê-la em sua plenitude, em vez de ficar na pegação, é preciso cheirá-la como flor, tocá-la suavemente, como a uma tela do tablet ou celular, uma tecla de cada vez.
- Para ser um amante íntegro, não seguir o senso comum dos amigos, de contar vantagens sobre o seu (próprio) amor. Não sei explicar, mas acho que tem a ver com amor próprio.
- Para ser um amante bem-sucedido, cuide para que o sexo mantenha certa distância da cabeça. Muito? Pouco? Quanto, eu não sei. Nesse assunto acho que ainda sou bem cândido!

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Minhas bunda - Mario Prata

A parte carnosa do corpo formada pelas nádegas.

A principal diferença entre a revista Playboy americana e a Playboy brasileira é a língua? Errado. É a bunda.
Na americana, temos seios, úberes, verdadeiras tetas que mal cabem nas páginas duplas. Na nossa, temos bundas. Bundinhas de penugem loira, bundinhas de contorno marrom, até bundinhas cor-de-rosa.
Americano não gosta de bunda? Eu diria que americano não conhece a bunda. Aliás, no mundo inteiro, não existem bumbuns como os nossos, ou melhor, como as nossas. A bunda é um produto interno e bruto tipica¬mente brasileiro. Às vezes, a revista americana faz edições especiais sobre seios. Aqui, fazemos verdadeiros compêndios sobre (e sob) bundinhas. Narcisamente, o brasileiro adora a própria bunda.
Mas de onde veio a nossa bunda? Não das alvas portuguesas, muito menos das esparramadas italianas e, menos ainda, das desbundadas japone¬sas. Muito menos das amassadas índias. Sempre me intrigou esta tanajúrica pergunta. Quem arrebitou com pincel de ouro, com formão de prata, a bundinha brasileira?
Tinha essa dúvida até conhecer Cabo Verde, um país de dez vulcâni¬cas ilhas na costa oeste da África. Quase fora do mapa. Foi lá que tudo começou.
O país tem, atualmente, mais ou menos, 300 mil bundas ambulan¬temente espalhadas pelo arquipélago. Bundas livres de Portugal desde 1975. E a bunda brasileira, antes de chegar aqui, passou por lá, vindo do continente africano. Ou seja, foi lá que inventaram a fórmula, lúdico, o molde mais que esteticamente perfeito. A bunda politicamente correta. Tenho certeza dessa afirmação e vou tentar provar.
Foi em Cabo Verde que surgiram as primeiras mulatas. Apesar de a palavra mulata ter origem espanhola, o conteúdo foi uma criação dos ingleses, holandeses e dos franceses que por lá passavam desde o começo do século XVI, com seus navios negreiros trazendo escravos para o Brasil. Lá era o point no meio do Atlântico. E lá os brancos deixaram o sêmen (do latim sêmen, que significa semente) para a fabricação das mulatas com suas respectivas bundas. Gostavam tanto das cabo-verdianas que Sir Francis Drike, pirata-mor daqueles tempos, chegou até a saquear o país em 1590 a tal Companhia das Índias Ocidentais. O saque durou sete anos e milhares de sementes foram im(plantadas). Tinham sacado a bunda.
Esta mistura deu a cor atual das nativas. Não são negras como vizinhas senegalesas, são marrons. Ou castanhas, como preferem. E lindas. As cabo-verdianas são lindas. Uma espécie de Sônia Braga bem queimada. Olhos claros como dos piratas bisavós. Uma porção de Patrícia França.
Fica difícil descrever a bunda das mulheres de Cabo Verde. Tem que ver para crer. São Tome não acreditaria em seus próprios olhos. Mas olhando uma delas passar, você percebe que ela está no doce balanço a caminho do mar (do Brasil).
Um dia estava com um amigo português, o cineasta Paulo de Souza, especialista em cinema africano, numa praça de Mindelo, a capital intelectual do país e das bundas (a capital do país chama-se Praia, pode?). Eis que passa na nossa frente uma bunda vestida com uma minissaia verde. Justíssima. Não tivemos dúvida. Seguimos a bunda por vários quarteirões em homenageante silêncio, até que ela entrou numa casa e nós voltamos para a praça sem a necessidade de dizermos nenhuma palavra um para o outro. Era uma obra-prima da natureza aquela menina. De noite, lá pelas duas da manhã, estou eu no meu hotel a dormir e batem na porta. Era o Paulo que havia ido a uma boate. Estava trêmulo, suado:
— Vem, vem, lembra daquela bunda?
— Estava sonhando com ela.
— Veste, veste! Ela está na boate. A bunda está dançando na boate. E lá fomos nós dois para a boate. Não só a "nossa" bunda de verde (agora num fulgurante amarelo) dançava, mas uma infinidade delas, espetáculo.
Só que, no princípio, era o verbo e não a carne e, naquele tempo, na época do tráfico dos escravos, quando surgia a bunda no meio do Atlântico, qual ilha vulcânica, a bunda ainda não se chamava bunda. Como, aliás, até hoje em Portugal não se chama. Bunda só no Brasil. Em Portugal a bunda é um cu.
Mas foi na mesma África que fomos buscar a sonoríssima e mais do que adequada palavra bunda. Diz a lenda que a origem seria das danças dos africanos. Ficavam as mulheres dançando no meio e o crioléu em volta batendo tambor e fazendo som com a boca: bun-da!,bun-da! Mas isso é lenda. Na verdade, a palavra veio da língua quimbundo (kimbundu), da palavra bunda (mbunda, tubundas, elebunda?), lá para os lados de Angola, local onde viviam os bantos, raça negra sul-africana à qual pertenciam, en¬tre outros, os negros escravos chamados no Brasil angolas, cabindas, benguelas, congos, moçambiques.
Nós, brasileiros e cabo-verdianos, nascemos com a bunda virada para a lua.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Em busca de mim - Andiara Pereira Nunes

Onde eu poderia me encontrar?
Quase nada sei sobre mim...
Acho que me perdi em alguma cidade grande,
ou então
o vento me carregou.
Será que eu não saí voando feito pássaro?!
Quase nada sei sobre mim...
Acho que evaporei como as águas dos rios.
Talvez
eu esteja no fundo de algum baú,
esperando para ser descoberta.
Outro dia,
pensei que havia me encontrado.
Que nada!
Encontrei foi uma fotografia em preto e branco
de uma garota parecida comigo.
Quase nada sei sobre mim...
Será que não fiquei presa no fundo do mar?
Ou então
peguei carona em algum cometa!
Quase nada sei sobre mim...
Só espero
que eu me encontre antes que alguém me roube.


Do livro: "Crianças do Rio Grande Escrevendo Histórias" - 1996

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...