segunda-feira, 25 de março de 2013

Negócio de menino com menina - Ivan Angelo

O menino, de uns dez anos, pés no chão, vinha andando pela estrada de terra da fazenda com a gaiola na mão. Sol forte de uma hora da tarde. A menina de uns nove anos ia de carro com o pai, novo dono da fazenda. Gente de São Paulo. Ela viu o passarinho na gaiola e pediu ao pai:
_ Olha que lindo! Compra pra mim?
O homem parou o carro e chamou:
_ Ô menino.
O menino voltou, chegou perto, carinha boa. Parou do lado da janela da menina. O homem:
_ Este passarinho é pra vender?
_ Não senhor.
O pai olhou para a filha com uma cara de deixa pra lá.
A filha pediu suave como se o pai tudo pudesse:
_ Fala pra ele vender.
O pai, mais para atendê-la, apenas intermediário:
_Quanto você quer pelo passarinho?
_ Não tou vendendo não senhor.
A menina ficou decepcionada e segredou:
_ Ah, pai, compra.
Ela não considerava, ou não aprendera ainda, que negócio só se faz quando existe um vendedor e um comprador. No caso, faltava o vendedor.
Mas o pai era um homem de negócios, águia da Bolsa, acostumado a encorajar os mais hesitantes ou a virar a cabeça dos mais recalcitrantes:
_ Dou dez mil.
_ Não senhor.
_ Vinte mil.
_Vendo não.
O homem meteu a mão no bolso, tirou o dinheiro, mostrou três notas, irritado.
_ Trinta mil.
_ Não tou vendendo, não, senhor.
O homem resmungou “que menino chato” e falou pra filha:
_ Ela não quer vender. Paciência.
A filha, baixinho, indiferente às impossibilidades da transação:
_ Mas eu queria. Olha que bonitinho.
O homem olhou a menina, a gaiola, a roupa encardida do menino, com um rasgo na mangam o rosto vermelho de sol.
_ Deixa comigo.
Levantou-se, deu meia volta, foi até lá. A menina procurava intimidade com o passarinho, dedinho nas grestas da gaiola. O homem, maneiro, estudando o adversário:
_ Qual é o nome deste passarinho?
_ Ainda não botei nome nele, não. Peguei ele agora.
O homem, quase impaciente:
_ Não perguntei se ele é batizado não, menino. É pintassilgo, é sábia, é o quê?
_ Aaaah. É bico-de-lacre.
A menina, pela primeira vez, falou com o menino:
_ Ele vai crescer?
O menino parou os olhos pretos nos olhos azuis.
_ Cresce nada. Ele é assim mesmo, pequenininho.
O homem:
_Canta?
_Canta nada. Só faz chiar assim.
_ Passarinho besta, hein?
_ É. Não presta pra nada. É só bonito.
_ Você Pegou ele dentro da fazenda?
_ É. Aí no mato.
_ Essa fazenda é minha. Tudo que tem nela é meu.
O Menino segurou com mais força a alça da gaiola, ajudou com a outra mão nas grades. O homem achou que estava na hora e falou já botando a mão na gaiola, dinheiro na outra mão.
_ Dou quarenta mil! Toma aqui.
_Não senhor, muito obrigado.
O Homem, meio mandão:
_Vende isso logo, menino. Não ta vendo que é pra menina?
_Não, não tou vendendo não.
_ Cinqüenta mil! Toma! _ e puxou a gaiola.
Com cinqüenta mil se comprava um saco de feijão, ou dois pares de sapatos, ou uma bicicleta velha.
O menino resistiu, segurando a gaiola, voz trêmula.
_Quero não senhor. Tou vendendo não.
_ Não vende por quê, hein? Por quê?
O menino acuado, tentado explicar:
_ É que eu demorei a manhã todinha pra pegar ele e tou com fome e com sede, e queria ter ele mais um pouquinho. Mostrar pra mamãe.
O homem voltou para o carro, nervoso. Bateu a porta, culpando a filha pelo aborrecimento.
O menino chegou pertinho da menina e falou baixo, para só ela ouvir:
_ Amanhã eu dou ele pra você.Ela sorriu e compreendeu.

sábado, 23 de março de 2013

Café da manhã


Quando assisti ao malabarismo do motoboy, tudo virou notícia e, 
antes do sol chegar, me tornei dependente de jornal.
Notícias chegam sem festa, sem patins ou bicicleta.
Notícias de gente que morre. Notícias de gente que mata.
Notícias de chuvas soterrando casas, pessoas...
Deus do céu! 
Gente que morre para virar notícia fresquinha
- como mamão, cereal, melancia, 
no meu café da manhã!

sexta-feira, 22 de março de 2013

Passeio - Fernando Sabino


 - Aonde vamos, papai?         

  Seguiam devagar, de mãos dadas, em direção ao túnel. Ele olhou em redor, desorientado.          
   - Dar um passeio...
Vamos passar pelo túnel – resolveu.
 – A pé, você já passou pelo túnel a pé?           
  - Não – disse a menina, extasiada. Num passeio com o pai, tudo era motivo de prazer
– A gente pode?            
 - Pode. Tem um lugar do lado que é para a gente passar.             
- De que é feito o túnel, papai?          
   De que era feito o túnel? Essa era uma pergunta meio tola. Tinha oito anos e parecia inteligente... O túnel era um buraco na montanha, não era feito de nada.           
  - Ah...            
 De repente, porém, ela o surpreendeu:      
  - Túnel deprime muito a gente.             
- Deprime? Com quem você aprendeu isso?            
 - Com mamãe: nós duas andamos muito deprimidas.         
    Positivamente, a mulher deveria ter mais cuidado com o que falava. O que seria daquela menina, sem ela perto, para... para.          
   - E por que vocês andam deprimidas?             
- Não sei: acho que é porque não temos vontade de comer:            
 Era preciso falar – e falar com jeito, sem escandalizar a menina, assustá-la para a vida. Não dê motivo fútil – era o que recomendavam. O que uma menina de oito anos entenderia por motivo fútil?           
  - Aonde nós vamos, papai?          
   Saíram do túnel. O melhor era procurar um lugar calmo, sossegado. Uma confeitaria, talvez.            
 - Você quer tomar um sorvete?          
   - Mamãe disse que está muito frio.            
 - Não tem importância – disse ele apressadamente:
 - Vamos tomar um sorvete.            
 Satisfeitos ambos com a resolução, entraram num ônibus e saltaram à porta da confeitaria. Ela se deteve junto à vitrine:         
    - Olha, papai, que bonito.             Era uma horrorosa caixa de bombons em forma de coração.             
- Dou de presente, você quer? – e puxou-a pelo braço, em direção á entrada. Dar-lhe-ia tudo que quisesse, como a comprar sua simpatia para o que tinha a dizer.           
  Mamãe falou que não posso comer bombom senão não janto.          
  Hoje você pode, sim.         
    A mãe também estava exagerando, oprimindo a menina. Não tinha nada de mais comer um bombom de vez em quando. E aquele dia não era um dia comum – pensou sem perceber que violentava as regras intransigentes de educação da filha que ele próprio firmara e que a mulher agora não fazia senão obedecer. Oprimido a menina. Nós duas andamos muito deprimidas.         
    Pessoas entravam e saíam da confeitaria, movimentada àquela hora da tarde. Moças e rapazes esperavam mesa, conversando em grupos, alguns olharam aquele homem tímido, meio curvado, que entrava com uma menina pela mão. Sentiu-se constrangido no ambiente elegante da confeitaria, sentiu-se velho entre aqueles rapazes de suéter e aquelas moças de calça comprida, como rapazes. Em dez anos a filha estaria assim. Dez anos passam de pressa. Dez anos haviam passado.           
  - Aqui tem sorvete também. Não está bom?           
  A menina sacudiu a cabeça, submissa:         
    - Lá na frente era melhor..     
        Lá na frente não tem lugar.          
   - Mas aqui não tem bombom.             
- Ah, me esqueci de sua caixa de bombons! Espere aí que vou buscar.             Sentou-se a uma das mesas e ordenou ao garçom:             
- Traga um sorvete para esta menina, Que sorvete você quer, minha filha? De coco? Chocolate?         
    - Milk shake – disse ela, com displicência, o garçom logo a entendeu. O pai olhou-a espantado:            
 - Que é que você pediu?             
- Milk shake. Venho aqui sempre com a mamãe e ela pedi milk shake.           
  - Então espera aí direitinho que vou buscar seus bombons, volto já.           
  Passou à outra parte da confeitaria, dirigiu-se ao balcão:       
      - Quero aquela caixa de bombons que está ali na vitrine, aquela feia, em forma de coração.      
       De longe avistou a filha, perninhas dependuradas, a chupar o canudo do refresco, olhos vagos, distraídos, inconstantes – os olhos da mãe.           
  - Demorei? – e sentou-se ao lado dela.            
 - Fiquei com medo de você ir embora.           
  - Então eu ia fazer uma coisa dessas, minha filha, ir embora?          
   A menina apontou a mesa com os olhos, sem abandonar a palha do refresco:           
  - Pedi um milk shake para você.          
   Ele se ajeitou na cadeira e acendeu um cigarro. Chegara o momento – como começar?         
 - Você sentiu saudade do papai?        
- Não, porque demorou pouco. Comprou?    
  - Comprei, olha aqui – e exibiu-lhe o embrulho.      
 - Vou levar para mamãe – resolveu ela, subitamente inspirada.
– Pode?            
 - Pode – e ele passou a mão pelo rosto, desconcertado.
 – Um presente para ela.           
  - Meu, não: seu – fez a menina, como a experimentá-lo. Não respondeu. Ela voltara a chupar o canudo de palha, agora soprava para dentro do copo, fazendo espuma no refresco.        
  - Eu pergunto se você sentiu saudade de mim não foi agora não, foi quando estive viajando.      
 - Você esteve viajando mesmo?            
 Meu Deus, como começar? Era preciso começar, já se fazia tarde, o refresco se acabava, em pouco tinha de levá-la de volta para a mãe. Estivera viajando sim, por que haveria de mentir?            
 - E chegou assim, sem mala, sem nada?             
- É porque eu cheguei... Isto é... Olha aqui. Toma este outro também, papai não está com vontade – e passou-lhe o copo.             
- Assim não janto e mamãe zanga – disse ela, indecisa, a boca a meio caminho do segundo refresco.             
- Não tem importância. Diga que fui eu.            
 Não tinha importância – o importante era dizer, contar tudo, escandalizar, violentar a inocência da menina. Assim recomendavam todos hoje em dia: as crianças devem saber de tudo, porque senão inventam por conta própria, e é pior. O que não é capaz de inventar uma criança? Antigamente na escola, entre as amigas, a criança se sentia a única, mas hoje em dia podia-se dizer que era a regra, tantos casais separados! E sacudiam a cabeça, convictos: sobretudo não de motivos fútil.             - Escuta, minha filha, você é uma mocinha, já deve saber das coisas.            
 Voltava à formula da mocinha. Agora era continuar, custasse o que custasse. Daria tudo para não viver jamais aquele instante. Pensou se não era bom tomar antes um conhaque.           
  - Estive viajando sim, mas não é por isso que não estou morando mais com você. Agora, por exemplo, já cheguei e não vou dormir lá em casa.           
  - Onde é que você vai dormir?             
- Noutro lugar – respondeu ele, evasivo: não pensava em dizer onde estava morando, ela poderia querer ir com ele.             
- E quem é que vai dormir com a mamãe?             
A pergunta apanhou-o desprevenido, sentiu-se jogado de súbito naquela atmosfera de ansiedade que precedera a separação.             
- Me diga uma coisa, filhinha – ele não resistia, e se inclinava, ansioso, sobre a mesa, segurando a mão da filha:
- Você disse que vem sempre aqui com sua mãe... Sozinha? Não vem ninguém mais com vocês?             A menina limitou-se a negar com a cabeça, sempre tomando o refresco.             
- E lá em casa? Tem ido alguém visitar mamãe?             
Desta vez ela sacudiu a cabeça afirmativamente.             
- Quem?            
 Desgarrou os lábios da palha já amassada para responder:             
- Vovó.             
Ele chamou o garçom e pediu um conhaque. Voltou a acomodar-se na cadeira, perturbado. Não interessava! Tudo acabado para sempre. Agora restava contar para filha:             
- Sabe, filhinha, você já é uma... Bem, isso eu já disse. Quero dizer o seguinte: você sabe que papai gosta muito de sua mãe...             
Antes de mais nada, deixar bem a mãe: era também o que aconselhavam. Tomou de uma só vez o conhaque e prosseguiu:             
- Sua mãe é muito boa, sabe? Muito boa mesmo, gosta muito de você, você deve ser obediente e boazinha para ela.             Não, não era isso. Precisava dizer logo, ou não diria nunca:            
 - Papai gosta dele e ela do papai. Mas acontece sabe?, que ela é muito diferente do papai, gosta de uma coisa, papai de outra...             
Motivo fútil. O que não seria motivo fútil?             
- Bem, eu e sua mãe gostamos muito um do outro mas eu andava muito cansado, trabalhando o dia todo, sua mãe muito nervosa, nós vivíamos discutindo... brigando...             
- Se gostam, por que é que brigam?             
Foi a única vez que a menina o interrompeu. Dali por diante ficou calada, olhando para outro lado, e ele prosseguiu como pôde, dizendo: ela não tinha amiguinha no colégio? Não gostavam uma da outra? e de vez em quando não brigavam? Pois então? Com eles também era assim. E para viver junto era preciso não brigar nunca, era preciso ser muito bom um para o outro, era preciso...             
- Minha filha, você não está me escutando.             
- Estou sim, papai...             
A menina terminara o refresco e agora riscava distraidamente a mesa coma palha umedecida.             
- Que é que estou dizendo?             
Ela voltou-se para ele:             
- Está dizendo que você e mamãe vão se separar.             
Ele respirou fundo, num misto de angústia e alivio:             
- Mas vou visitar vocês sempre...             
- Eu se.            
 - Posso levar você para passear.             
-Sei.             
-Posso... Posso...             
Ela se levantou, puxando-o pela mão:             
- Papai, me leva embora que já está ficando tarde.             
- Minha filha – disse ele, confuso e comovido, e não resistiu, tomou-a no colo, abraçou-a com força, enquanto lágrimas lhe enchiam os olhos. Quis falar e as palavras se prenderam num engasgo. Um casal sentado ao fundo da confeitaria, mãos dadas sobre a mesa, voltou-se curiosamente para vê-lo. Ele depositou a menina no chão, sem que ela oferecesse resistência. Chamou o garçom, pagou, reteve a filha:            
 - Olha, você está esquecendo os bombons.            
 Saíram, e a menina o conduzia pela mão, como a um cego.    

quarta-feira, 20 de março de 2013

Piratinha


Piratinha, permita-me piratear tua vontade de viver.
O gesto de heroína, Piratinha, essa sede de alegria.
Deixe-me piratear o teu sorriso e roubar o novo dia.
Piratear a esperança no olhar, amor que embeleza e atravessa portas e e janelas.
Deixe-me piratear teu faz-de-conta, humor e fantasia.
Deixe-me roubar de volta o que - para ficarmos grandes - abandonamos um dia.
Piratinha, tenha pena de nós, marmanjos, que vivemos com pressa, dor no corpo e consciência, por causa dos negócios e das contas.
Deixe-me piratear o vento no rosto, viver o instante, sem o dever do novo dia.
Deixe-me piratear tua presença e liberdade, teu olhar que nos mostra o que realmente interessa.
Piratinha, nossos pés se acostumaram a ficar presos no mesmo chão. Cabeça, ombros, tudo se curva, são nossos medos que se apossaram de nós.
Felizes e infelizes, sem querer e querendo, vamos criando raízes e nos prendendo.
Piratinha, andamos perdidos. Vivos, temos medo do abismo, e muitas vezes nos assustamos com os caminhos que escolhemos.
Deixe-me piratear o susto, o espanto, mais do que um bocejo, um espreguiçamento.
Você é nosso canto, enquanto ainda sentimos o sopro do sol e do vento. 
Com carinho e amor, do Teco, o poeta sonhador. 


segunda-feira, 18 de março de 2013

Lua adversa - Cecília Meireles


Tenho fases, como a lua 
Fases de andar escondida, 
fases de vir para a rua... 
Perdição da minha vida! 
Perdição da vida minha! 
Tenho fases de ser tua, 
tenho outras de ser sozinha. 

Fases que vão e vêm, 
no secreto calendário 
que um astrólogo arbitrário 
inventou para meu uso. 

E roda a melancolia 
seu interminável fuso! 
Não me encontro com ninguém 
(tenho fases como a lua...) 
No dia de alguém ser meu 
não é dia de eu ser sua... 
E, quando chega esse dia, 
o outro desapareceu...

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...