terça-feira, 18 de setembro de 2012

Apólogo brasileiro sem véu de alegoria - Antônio de Alcântara Machado


O trenzinho recebeu em Maguari o pessoal do matadouro e tocou para Belém. Já era noite. Só se sentia o cheiro doce do sangue. As manchas na roupa dos passageiros ninguém via porque não havia luz. De vez em quando passava uma fagulha que a chaminé da locomotiva botava. E os vagões no escuro.
Trem misterioso. Noite fora noite dentro. O chefe vinha recolher os bilhetes de cigarro na boca. Chegava a passagem bem perto da ponta acesa e dava uma chupada para fazer mais luz. Via mal e mal a data e ia guardando no bolso. Havia sempre uns que gritavam:
 – Vá pisar no inferno! 
Ele pedia perdão (ou não pedia) e continuava seu caminho. Os vagões sacolejando.
O trenzinho seguia danado para Belém porque o maquinista não tinha jantado até aquela hora. Os que não dormiam aproveitando a escuridão conversavam e até gesticulavam por força do hábito brasileiro. Ou então cantavam, assobiavam. Só as mulheres se encolhiam com medo de algum desrespeito.
Noite sem lua nem nada. Os fósforos é que alumiavam um instante as caras cansadas e a pretidão feia caía de novo. Ninguém estranhava. Era assim mesmo todos os dias. O pessoal do matadouro já estava acostumado. Parecia trem de carga o trem de Maguari.
Porém aconteceu que no dia 6 de maio viajava no penúltimo banco do lado direito do segundo vagão um cego de óculos azuis. Cego baiano das margens do Verde de Baixo. Flautista de profissão, dera um concerto em Bragança. Parara em Maguari.
Voltava para Belém com setenta e quatrocentos no bolso. O taioca guia dele só dava uma folga no bocejo para cuspir.
Baiano velho estava contente. Primeiro deu uma cotovelada no secretário e puxou conversa. Puxou à toa porque não veio nada. Então principiou a assobiar. Assobiou uma valsa (dessas que vão subindo e depois descendo, vêm descendo), uma polca, um pedaço do “Trovador”. Ficou quieto uns tempos. De repente deu uma coisa nele. Perguntou para o rapaz:
– O jornal não dá nada sobre a sucessão presidencial?
O rapaz respondeu:
– Não sei: nós estamos nos escuro.
– No escuro?
– É.
Ficou matutando calado. Claríssimo que não compreendia bem. Perguntou de novo:
– Não tem luz?
Bocejo.
– Não tem.
 Cuspada.
Matutou mais um pouco. Perguntou de novo:
– O vagão está no escuro?
– Está.
De tanta indignação bateu com o porrete no soalho. E principiou a grita dele assim:
– Não pode ser! Estrada relaxada! Que é que faz que não acende? Não se pode viver sem luz! A luz é necessária! A luz é o maior Dom da natureza! Luz! Luz! Luz!
E a luz não foi feita. Continuou berrando:
– Luz! Luz! Luz!
Só a escuridão respondia.
Baiano velho estava fulo. Urrava. Vozes perguntaram dentro da noite:
– Que é que há?
Baiano velho trovejou:
– Não tem luz!
Vozes concordaram:
– Pois não tem mesmo.
Foi preciso explicar que era um desaforo. Homem não é bicho. Viver nas trevas é cuspir no progresso da humanidade. Depois a gente tem a obrigação de reagir contra os exploradores do povo. No preço da passagem está incluída a luz. O governo não toma providências? Não toma? A turba ignara fará valer seus direitos sem ele. Contra ele se necessário. Brasileiro é bom, é amigo da paz, é tudo quanto quiserem: mas bobo não. Chega um dia e a coisa pega fogo.
Todos gritavam discutindo com calor e palavrões. Um mulato propôs que se matasse o chefe do trem. Mas João Virgulino lembrou:
– Ele é pobre como a gente.
Outro sugeriu uma grande passeata em Belém com banda de música e discursos.
– Foguetes também?
– Foguetes também.
– Be-le-za!
Mas João Virgulino observou:
– Isso custa dinheiro.
– Que é que se vai fazer então?
Ninguém sabia. Isto é, João Virgulino sabia. Magarefe-chefe do matadouro de Maguari, tirou a faca da cinta e começou a esquartejar o banco de palhinha. Com todas as regras do ofício. Cortou um pedaço, jogou pela janela e disse:
– Dois quilos de lombo!
Cortou outro e disse:
– Quilo e meio de toicinho!
Todos os passageiros magarefes e auxiliares imitaram o chefe. Os instintos carniceiros se satisfazem plenamente. A indignação virou alegria. Era cortar e jogar pelas janelas. Parecia um serviço organizado. Ordens partiam de todos os lados. Com piadas, risadas, gargalhadas.
– Quantas reses, Zé Bento?
– Eu estou na quarta, Zé Bento!
Baiano velho quando percebeu a história pulou de contente. O chefe do trem correu quase que chorando.
– Que é isso? Que é isso? É por causa da luz?
Baiano velho respondeu:
– É por causa das trevas!
O chefe do trem suplicava:
– Calma! Calma! Eu arranjo umas velinhas.
João Virgulino percorria os vagões apalpando os bancos.
– Aqui ainda tem uns três quilos de colchão mole!
O chefe do trem foi para o cubículo dele e se fechou por dentro rezando. Belém já estava perto. Dos bancos só restava armação de ferro. Os passageiros de pé contavam façanhas. Baiano velho tocava a marcha de sua lavra chamada Às armas cidadãos! O taioquinha embrulhava no jornal a faca surrupiada na confusão.
Tocando a sineta o trem de Maguari fungou na estação de Belém. Em dois tempos os vagões se esvaziaram. O último a sair foi o chefe muito pálido.
Belém vibrou com a história. Os jornais afixaram cartazes. Era assim o título de um: Os passageiros no trem de Maguari amotinaram-se jogando os assentos ao leito da estrada. Mas foi substituído porque se prestava a interpretações que feriam de frente o decoro das famílias. Diante do teatro da paz houve um conflito sangrento entre populares.
Dada a queixa à polícia foi iniciado o inquérito para apurar as responsabilidades.
Perante grande número de advogados, representantes da imprensa, curiosos e pessoas gradas, o delegado ouviu vários passageiros. Todos se mantiveram na negativa menos um que se declarou protestante e trazia um exemplar da Bíblia no bolso. O delegado perguntou: 
– Qual a causa verdadeira do motim?
O homem respondeu:
– A causa verdadeira do motim foi a falta de luz nos vagões.
O delegado olhou firme nos olhos do passageiro e continuou:
– Quem encabeçou o movimento?
Em meio da ansiosa expectativa dos presentes o homem revelou:
– Quem encabeçou o movimento foi um cego!
Quis jurar sobre a Bíblia mas foi imediatamente recolhido ao xadrez porque com a autoridade não se brinca.

Histórias de humor. São Paulo: Scipione, 2004. 

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Quando penso em você



Quando penso em você
quero que penses em mim
não é humano a saudade doer assim....
Acredite no que eu falo, "eu gosto de você"
embora a vontade  de chorar e rir
venha me distrair...
Penso em você, sinto que pensas em mim, 
não é humano a saudade doer assim!

domingo, 16 de setembro de 2012

Ismália - Alphonsus de Guimaraens




Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

O repórter policial - Stanislaw Ponte Preta



Vi hoje a foto no jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Confesso que senti náuseas. A publicação dessa foto não poderia ser evitada? Por que tanta necessidade de sensacionalismo? Apenas para vender jornal? Agora eu encontrei a mesma foto no google. Aí está.
O texto abaixo, do Stanislaw Ponte Preta, ajuda a pensarmos um pouco sobre parte de nossa imprensa.
 
O reporter policial, tal como o locutor esportivo, é um camarada que fala uma língua especial. Imposta pela contingência: quanto mais cocoroca, melhor.
Assim como o locutor esportivo jamais chamou nada pelo nome comum, assim também o repórter policial é um entortado literario. Nessa classe, os que se prezam nunca chamariam um hospital de hospital. De jeito nenhum. É nosocômio. Nunca, em tempo algum, qualquer vítima de atropelamento, tentativa de morte, conflito, briga ou simples indisposição intestinal, foi parar num hospital. Só vai pra nosocômio.
 
E assim sucessivamente. Qualquer cidadão que vai à policia prestar declarações que possam ajudá-la numa diligência (apelido que eles puseram no ato de investigar), é logo apelidado de testemunha-chave. Suspeito é Mister X. advogado é causídico, soldado é militar, marinheiro é naval, copeira é doméstica e, conforme esteja deitada a vítima de um crime - de costas ou de barriga pra baixo - fica numa destas duas incômodas posições: decúbito dorsal ou decúbito ventral.
 
Num crime descrito pela imprensa sangrenta, a vítima nunca se vestiu. A vítima trajava. Todo mundo se veste, tirante a Luz del Fuego, mas basta virar vitima de crime, que a rapaziada sacha ignora o verbo comum e mete lá: a vítima trajava terno azul e gravata do mesmo tom. Eis, portanto, que é preciso estar acostumado ao metier para morar no noticiario policial. Como os locutores esportivos, a Delegacia do Imposto de Renda, os guardas de trânsito, as mulheres dos outros, os repórteres policiais nasceram para complicar a vida da gente. Se um porco morde a perna de um caixeiro de uma dessas casas da banha, por exemplo, é batata... a manchete no dia seguinte dá lá: Suíno atacou comerciante.
 
Outro detalhezinho interessante: se a vítima de uma agressão morre, tá legal, mas se - ao contrário - em vez de morrer fica estendida no asfalto, está indefectivelmente prostrada. Podia estar caída, derrubada ou mesmo derribada, mas um repórter de crime não vai trair a classe assim à toa. E castiga na página: "Naval prostrou desafeto com certeira facada". Desafeto - para os que são novos na turma devemos explicar que é inimigo, adversário etc. E mais: se morre na hora, tá certo; do contrário, morrerá invariavelmente ao dar entrada na sala de operações.
 
De como vive a imprensa sangrenta, é fácil explicar. Vive da desgraça alheia, em fotos ampliadas. Um repórter de polícia, quando está sem notícia, fica na redação, telefonando pras delegacias distritais ou para os hospitais, perdão, para os nosocomios, onde sempre tem um cumpincha de plantão. O cumpincha atende lá, e ele fala: "Alô, é do Quinto? Fala Fulano. Alguma novidade? O quê? Estupro? Oba! Vou já para aí. Ou então é pro pronto-socorro: Alô. É Fulano, da Luta. Sim. Atropelamento? Ah... mas sem fratura exposta não interessa. E há também a concorrência entre os coleguinhas da crônica sangrenta, primo Altamirando, quando trabalhou nesse setor, se fez notar pela sua indiscutível capacidade profissional para o posto. Um dia, ele telefonou para o secretario do jornal:

- Alô, quem está falando é Mirinho. Olha, manda um fotógrafo aqui na estação de Cordovil, pra fotografar um cara.
 - Que é que houve?

- Foi atropelado pelo trem, está todo esmigalhado. Vai dar uma fotografia linda para a primeira página.

- O cadáver está sem cabeça?
 
-Não.
 - Então não vale a pena.
 -Não diga isso, chefe. Mande o fotógrafo que, até ele chegar, eu dou jeito de arrancar a cabeça do falecido.
 
 
do livro  Dois amigos e um chato. São Paulo: Moderna, 1986.

Samba do approach - Zeca Baleiro




Venha provar meu brunch
Saiba que eu tenho approach
Na hora do rush
Eu ando de ferryboat...

Eu tenho savoir-faire
Meu temperamento é light
Minha casa é hi-tech
Toda hora rola um insight
Já fui fã do Jethro Tull
Hoje me amarro no Slash
Minha vida agora é cool
Meu passado é que foi trash...


Fica ligado no link
Que eu vou confessar, my love
Depois do décimo drink
Só um bom e velho engov
Eu tirei o meu green card
E fui pra Miami Beach
Posso não ser pop-star
Mas já sou um noveau riche...

Eu tenho sex-appeal
Saca só meu background
Veloz como Damon Hill
Tenaz como Fittipaldi
Não dispenso um happy end
Quero jogar no dream team
De dia um macho man
E de noite drag queen...

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...